terça-feira, 4 de abril de 2017

Há dias assim - da velhice?

Há dias assim. Como se o tempo parasse ao nascer do Sol e a luz se prolongasse pelo horizonte das horas por vir. O António chama-lhe paz. A Maria diz que é da velhice. Eu olho-os apenas. Em silêncio de batidas lentas. Com a brisa suave a correr-lhes pelos vales e planícies que o tempo cavou nas suas faces.

Sei que o tempo não pára nunca. Que o horizonte não existe se não na nossa imaginação. E que o mundo de paz ou velhice (sabedoria até), não está nem em nós, nem à nossa volta, mas sim na arte de colher o inconjugável, de equilibrar o abstracto, de quebrar leis. Tudo, claro, por tão breves instantes que o Universo e tudo o resto se mantêm ignorantes das nossas fugazes tentativas.

E ainda assim, ao ver a Maria e o António a olharem o horizonte com todos os sonhos que ainda lhes restam, é como se a eternidade se tornasse algo facilmente inteligível. Como se um momento só, assim, rasgasse, no silêncio, um sorriso na minha pele não muito mais nova, não muito menos cavada, não menos vivida.

Nem todos envelhecemos da mesma forma. O António e a Maria eram translúcidos e simples. Verdadeiros na sua intensidade de viver. Sem questionarem demasiado, mas sem nunca abdicarem do que, sabiam, lhes provocava instantes de sorrisos. A idade apenas lhes dava mais intensidade.

Às vezes dizia-lhes que eles os dois juntos eram água-ardente velha, já sem se confundir de todo com água pelo tom do tempo, mas ainda translúcidos, e que apenas melhoravam com a idade. Já eu... talvez um vinho tinto de duvidável origem. Daqueles que não se sabe bem quem deu ou onde se foi buscar e que está para ali há anos. Daqueles em que a rolha tem aspecto de poder desintegrar-se por completo em mil pedaços, ao mínimo toque.

Posso sempre pensar no improvável. Que talvez não saiba, mas que se a garrafa de vinho que eu sou for aberta com os gestos certos, e sem perturbar os muitos e desagradáveis fundalhos da idade, talvez escondido à vista de todos possa estar um dos melhores vinhos "vintage" que já se bebeu este ano. Ou, como diz o António, que na sua transparência e simplicidade sabe sempre a verdade mais elementar da vida, "o mais provável numa garrafa antiga e que tresanda a mistério, é que o mistério azede mais do que o leite do mês passado."

Talvez por temer a minha própria natureza e sentindo a fragilidade de me conhecer e revelar, há anos que me fecho na minha garrafa fosca e sem brilho. Sem nunca ir longe demais, para não me voltar à boca o amargo e o ácido das memórias que pacientemente tentei que acalmassem. Não seremos todos assim, de certa maneira?

E há dias assim, em que ver o António e a Maria, partilhando um olhar, na ansiedade de um mundo que acaba sempre agora e nunca, me faz olhar e realmente ver. Sentir o calor do toque suave do Sol ao longe, a fugir ao horizonte, e saber. Saber que não importa que vinho somos, que idade se acumula no nosso fundo, ou quantos sonhos enterramos debaixo dos nossos pés. De manhã, aqui, nem que seja por um instante, seremos de novo novos e re-inventados, sempre. Do zero. Até ao dia em que não haverá um próximo. Há dias assim.


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