O nosso Universo é pequeno demais e a velocidade da luz não chega. Aqui, o céu não é o limite, mas sim o ponto de partida para um (multi-)Universo que se quer sem preconceitos, leis chatas ou um destino do qual não se pode fugir.
quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010
sábado, 23 de janeiro de 2010
Passado - há 7 anos atrás, no DN Jovem

Quando era criança o mundo era tão diferente.
Quando era pequeno o mundo era grande
e eu falava com ele.
As estrelas eram as minhas melhores amigas
e as árvores as minhas confidentes.
Quando era pequeno havia histórias de encantar
que me faziam sorrir
antes de adormecer
e que me faziam sonhar com princesas e reinos distantes.
Mas tudo isso foi há tanto tempo.
Cresci, e o mundo ficou mais pequeno.
E a cada centímetro que crescia parecia que morria
uma princesa e parecia que desaparecia um reino
e parecia que havia menos uma história de encantar
e parecia que já não havia estrelas e já não havia árvores.
Só assim se explica este mundo minúsculo
no qual vivo eu e tu e todos
em que lá fora não há estrelas
e em que dentro de mim
todas as histórias de encantar
estão como os sorrisos
- mortos.
David Sobral, DN Jovem, 2003
A Árvore da Poesia
Gastaram-se as palavras para te definir
(a árvore da poesia secou)
talvez até restem alguns frutos
que heroicamente tenham sobrevivido
à queda de ramos que já não existem
porém já nem importam as sementes
(a árvore da poesia secou)
mesmo que uma outra germinasse
de restos de palavras
já não seria poesia.
Seria talvez a natureza
ou o céu - até o luar -
mas não, nunca a poesia,
essa morreu
partiu
secou
jamais voltará.
Gastaram-se as palavras para te definir
e por isso o silêncio
por isso o céu gelado e a noite eterna.
Gastaram-se as palavras para te descrever
e ainda assim
continuas a ser
um fogo de estrelas e de mar.
(a árvore da poesia secou)
talvez até restem alguns frutos
que heroicamente tenham sobrevivido
à queda de ramos que já não existem
porém já nem importam as sementes
(a árvore da poesia secou)
mesmo que uma outra germinasse
de restos de palavras
já não seria poesia.
Seria talvez a natureza
ou o céu - até o luar -
mas não, nunca a poesia,
essa morreu
partiu
secou
jamais voltará.
Gastaram-se as palavras para te definir
e por isso o silêncio
por isso o céu gelado e a noite eterna.
Gastaram-se as palavras para te descrever
e ainda assim
continuas a ser
um fogo de estrelas e de mar.
Poemas
foste sol e voaste pelo mundo
companheira da brisa e do luar
dissolveste-te no aroma de despertar pela manhã
e no oceano azul ondulaste as águas
com o teu corpo de suspiros contidos.
e deste a volta ao mundo inteiro
num sonho que era teu e das estrelas
e no final
cansada
para mais nada tiveste forças
senão para perguntar
- quem sou eu por detrás das palavras com que me escrevem?
David Sobral, 27/05/2005
companheira da brisa e do luar
dissolveste-te no aroma de despertar pela manhã
e no oceano azul ondulaste as águas
com o teu corpo de suspiros contidos.
e deste a volta ao mundo inteiro
num sonho que era teu e das estrelas
e no final
cansada
para mais nada tiveste forças
senão para perguntar
- quem sou eu por detrás das palavras com que me escrevem?
David Sobral, 27/05/2005
quarta-feira, 20 de janeiro de 2010
O futuro chegou ontem

Às vezes as palavras perdem o seu merecido lugar na nossa vida. As palavras, e as pausas, e os momentos, e tantas outras coisas. Tantas outras coisas para as quais declaramos abertamente que não temos tempo, ainda que, no mais profundo do nosso ser, essas sejam exactamente as coisas que mais nos fazem sentir realizados, felizes. Há um tic-tac lá fora que nos invade a mente, que nos hipnotiza totalmente, que nos incita a fazer parte da nascente, do rio, da foz, do mar. E não importa por que paisagens passámos, pois o tempo urge que independentemente dos caminhos e da foz - ou até do destino com que um dia sonhámos - no final, todos nós acabamos num mesmo oceano, perdidos numa imensidão que não só não compreendemos, mas que sobretudo nos faz sentir profundamente sós. A mais terrível de todas as solidões que alguma vez se poderia imaginar: o estar só no meio de milhares de milhões de pessoas sós. O futuro chegou ontem, e estamos sempre todos tão atrasados para o receber...
domingo, 18 de outubro de 2009
Retorno e Paz
Naquela manhã de Outono em que Joaquim voltou ao mundo que fora o seu Mundo durante quase 20 anos, era como se nada tivesse mudado. Havia ainda o sol a brilhar, o céu azul, o ar limpo e verde a soprar por entre os montes e planícies que se estendiam até ao infinito abraçado pelo seu olhar. Memórias e momentos passados; estava tudo ali, quase parado no tempo, na paz e tranquilidade da brisa que lhe tocava o rosto e lhe afagava os cabelos. Mas Joaquim não era o mesmo rapaz que por ali havia crescido, corrido, caído, sonhado e partido. A vida levara-o a correr o mundo, a chegar mais longe, a descobrir locais com os quais nunca havia sonhado. Os seus sonhos levaram-no para tão longe que, durante anos, foi como se tudo aquilo que Joaquim via, ouvia, sentia e cheirava de novo não fossem mais do que uma memória distante, ou um sonho de uma vida que nunca viveu. E tudo isso rebentava agora em ondas irregulares num oceano agitado de memórias, ora felizes ora de lágrimas. Até porque se os caminhos baldios que atravessavam a serra o lembravam dos risos e brincadeiras que o haviam entretido - a ele e aos seus primeiros amigos -, a porta da casa onde crescera sabia-lhe ainda à dor que havia carregado desde o dia em que vira os seus pais pela última vez, acenando-lhes um adeus que lhe soube como um até já, mas que acabou por ser um adeus para sempre. Isto porque quatro meses depois dessa despedida, a estrada que os havia conduzido até à cidade que visitavam pelo menos uma vez por semana durante décadas levou-os para um novo destino do qual nunca mais voltaram. Joaquim ficou de tal forma perturbado com a notícia que não mais voltara à casa que, desde esse dia, passara a ser sua. Afinal, como podia ele aceitar a morte dos seus pais que tinham ainda tanto para viver? Como podia ele voltar e não ouvir os passos da mãe pela casa, sempre atarefada; tornar a pisar os caminhos que percorrera com os seus pais e não os ouvir a dizer para caminhar mais devagar; ou cheirar as flores e as plantas e não ouvir as explicações e lições do seu pai:? Não, Joaquim não tinha como enfrentar essa realidade que se abatera sobre a sua vida: o peso era demasiado, a dor profunda demais, cortante.
A verdade é que foram precisos 11 anos para Joaquim voltar ao mundo que o fez crescer e sorrir, ao Universo a que, no mais genuíno do seu ser, ele chamava casa. E, ainda assim, Joaquim sabia que a sua casa já não existia - ou pelo menos a casa do rapaz que os campos viram partir havia 11 anos - essa ruíra no dia em que se tornou órfão. E, ainda assim, havia algo de seu ali. Algo que o fazia sentir o calor do sol de Outubro como um toque do destino, substância invisível que lhe sussurrar as palavras doces que uma mãe canta ao seu filho para o adormecer seguro e confiante. O mundo havia-lhe mostrado visões, sensações, locais e pessoas absolutamente fantásticos e inesquecíveis - e, ainda assim, nada nem ninguém lhe podia tocar tanto quanto este local. Talvez porque cada detalhe, ainda que envelhecido, deteriorado ou desenvolvido, tinha o toque do seu pai e da sua mãe, e dos seus pais antes deles; mais do que isso, cada pedaço do que agora o rodeara cheirava aos seus sonhos de miúdo, a tudo aquilo que o fizera sorrir só de pensar. Cada árvore de fruto, cada flor, cada caminho por entre as ervas que agora cresciam como nunca - em cada detalhe havia uma memória, uma palavra, um gesto. Sim, o mundo lá fora deu a Joaquim as folhas de uma árvore adulta, e a oportunidade de criar um tronco forte o suficiente para finalmente conseguir enfrentar tudo aquilo que a vida lhe tirou; mas era ali, naquele pedaço de terra em que pouco mais se ouvia para além de um silêncio profundo, que Joaquim tinha as suas raízes, o seu solo, a sua água.
A verdade é que foram precisos 11 anos para Joaquim voltar ao mundo que o fez crescer e sorrir, ao Universo a que, no mais genuíno do seu ser, ele chamava casa. E, ainda assim, Joaquim sabia que a sua casa já não existia - ou pelo menos a casa do rapaz que os campos viram partir havia 11 anos - essa ruíra no dia em que se tornou órfão. E, ainda assim, havia algo de seu ali. Algo que o fazia sentir o calor do sol de Outubro como um toque do destino, substância invisível que lhe sussurrar as palavras doces que uma mãe canta ao seu filho para o adormecer seguro e confiante. O mundo havia-lhe mostrado visões, sensações, locais e pessoas absolutamente fantásticos e inesquecíveis - e, ainda assim, nada nem ninguém lhe podia tocar tanto quanto este local. Talvez porque cada detalhe, ainda que envelhecido, deteriorado ou desenvolvido, tinha o toque do seu pai e da sua mãe, e dos seus pais antes deles; mais do que isso, cada pedaço do que agora o rodeara cheirava aos seus sonhos de miúdo, a tudo aquilo que o fizera sorrir só de pensar. Cada árvore de fruto, cada flor, cada caminho por entre as ervas que agora cresciam como nunca - em cada detalhe havia uma memória, uma palavra, um gesto. Sim, o mundo lá fora deu a Joaquim as folhas de uma árvore adulta, e a oportunidade de criar um tronco forte o suficiente para finalmente conseguir enfrentar tudo aquilo que a vida lhe tirou; mas era ali, naquele pedaço de terra em que pouco mais se ouvia para além de um silêncio profundo, que Joaquim tinha as suas raízes, o seu solo, a sua água.
quinta-feira, 1 de janeiro de 2009
Mas qual crise!?
Há dias em que apetece escrever. Em que a voz do mundo nos chega de uma forma tão impossivelmente ridícula, suja, corrupta e sem nexo que nos força a optar. Entre seguir a corrente ou opormo-nos a ela. Entre aceitar uma visão ridícula do mundo, ou ter a coragem e o discernimento de o olhar a sério, de todos os ângulos, com todas as cores. É de facto incompreensível constatar que, num mundo da suposta informação, numa sociedade que se supõe do conhecimento, e, sobretudo, num planeta com uma população humana tão elevada, são tantos, mas tantos!, aqueles que não fazem a menor ideia do que estão a fazer, do que são, do que são os “problemas” e o que podem vir a ser soluções.
Escrevam-me o poema do mundo actual e qualquer um saberá que o difícil será poetizar toda a temática da crise financeira, dos mercados financeiros, da banca, dos bancos, dos bancos a falir, do dinheiro, do dinheiro que não chega, dos biliões que já só são 40 biliões quando ontem eram 80 biliões, ainda que nem interesse a moeda ou a nota, porque no fim de contas eram só contas e projecções, as mesmas feitas pelos investidores e outros ladrões. Há que não esquecer petróleo e tudo o que daí vem ou devém, mas, claro, mesmo aí, há o lucro, essa tão fundamental lei da física que diz que o preço de consumo é sempre superior ao de produção pelo menos por um factor suficiente para com ele se comprar mil e uma coisas que não precisamos e que por isso são tão dispendiosas. Escrevam o poema do mundo actual e temos fartura de tiros e bombas, de atentados e mortes, de desgraças e catástrofes. Fartura de imprensa social, claro (pois oh meu deus, o mundo sem imprensa social é o maior pesadelo de qualquer terrorista e político mal intencionado - manda todos esses para o desemprego sem qualquer hipótese de sobrevivência no ramo!), mas, oh, como viveríamos nós sem o jovem de 14 anos que foi ontem baleado pelo filho de 3 a ser notícia de abertura e primeira página de todos os jornais? E sem o político lambido que garante que não existe outra opção para isto ou aquilo, que a crise é grave - ou, até, para ouvir os nossos maiores líderes referirem-se ao actual estado do país como de uma profunda desgraça, como se o tempo em que vivemos não fosse o melhor de sempre!
E é exactamente aí que o poema acabaria. No que a maioria interpretaria como ironia e crítica social, estaria a verdade: é a crise, é a crise, mas nunca estivemos melhor do que isto! Mas claro, quem pensa assim? Afinal, “no meu tempo é que era”, e isso, juntamente com o encher de peito que são os descobrimentos e a pseudo-grandeza de império passado, fazem sempre (quase) pensar que Portugal foi em tempos um país fantástico, sem fome, sem pobres, justo, onde tudo funciona fantasticamente: um exemplo para o mundo, até para a galáxia inteiro, o Universo!
O que dava mesmo mesmo jeito era saber fazer contas, perceber que quem manda no mundo e no seu destino somos nós - cada um de nós. E quem quiser queixar-se disto ou daquilo e depois passar os dias a ver televisão, beber cerveja, ou fumar todo o tabaco do mundo, sem sequer um esforço sincero que o faça - mas que pelo menos não fira os outros que se esforçam, que trabalham, que alcançam, que não desistem. Porque se ferem esses, então, meus amigos, aí é que temos a crise, mas nem importa a crise financeira ou económica, aí temos a crise real, a que importa - a crise que transforma a humanidade na raça mais estúpida do mundo.
Escrevam-me o poema do mundo actual e qualquer um saberá que o difícil será poetizar toda a temática da crise financeira, dos mercados financeiros, da banca, dos bancos, dos bancos a falir, do dinheiro, do dinheiro que não chega, dos biliões que já só são 40 biliões quando ontem eram 80 biliões, ainda que nem interesse a moeda ou a nota, porque no fim de contas eram só contas e projecções, as mesmas feitas pelos investidores e outros ladrões. Há que não esquecer petróleo e tudo o que daí vem ou devém, mas, claro, mesmo aí, há o lucro, essa tão fundamental lei da física que diz que o preço de consumo é sempre superior ao de produção pelo menos por um factor suficiente para com ele se comprar mil e uma coisas que não precisamos e que por isso são tão dispendiosas. Escrevam o poema do mundo actual e temos fartura de tiros e bombas, de atentados e mortes, de desgraças e catástrofes. Fartura de imprensa social, claro (pois oh meu deus, o mundo sem imprensa social é o maior pesadelo de qualquer terrorista e político mal intencionado - manda todos esses para o desemprego sem qualquer hipótese de sobrevivência no ramo!), mas, oh, como viveríamos nós sem o jovem de 14 anos que foi ontem baleado pelo filho de 3 a ser notícia de abertura e primeira página de todos os jornais? E sem o político lambido que garante que não existe outra opção para isto ou aquilo, que a crise é grave - ou, até, para ouvir os nossos maiores líderes referirem-se ao actual estado do país como de uma profunda desgraça, como se o tempo em que vivemos não fosse o melhor de sempre!
E é exactamente aí que o poema acabaria. No que a maioria interpretaria como ironia e crítica social, estaria a verdade: é a crise, é a crise, mas nunca estivemos melhor do que isto! Mas claro, quem pensa assim? Afinal, “no meu tempo é que era”, e isso, juntamente com o encher de peito que são os descobrimentos e a pseudo-grandeza de império passado, fazem sempre (quase) pensar que Portugal foi em tempos um país fantástico, sem fome, sem pobres, justo, onde tudo funciona fantasticamente: um exemplo para o mundo, até para a galáxia inteiro, o Universo!
O que dava mesmo mesmo jeito era saber fazer contas, perceber que quem manda no mundo e no seu destino somos nós - cada um de nós. E quem quiser queixar-se disto ou daquilo e depois passar os dias a ver televisão, beber cerveja, ou fumar todo o tabaco do mundo, sem sequer um esforço sincero que o faça - mas que pelo menos não fira os outros que se esforçam, que trabalham, que alcançam, que não desistem. Porque se ferem esses, então, meus amigos, aí é que temos a crise, mas nem importa a crise financeira ou económica, aí temos a crise real, a que importa - a crise que transforma a humanidade na raça mais estúpida do mundo.
quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008
A Vampira Vegetariana
Lea descobriu desde cedo que não era uma criança como todas as outras. Os pais sempre lhe disseram que ela era especial. Como eles. Porém, ela nunca compreendeu verdadeiramente a extensão de tal conceito. Afinal, os seus pais pareciam ser do género “demasiado protector”, e raramente a deixavam sair de casa. Culpavam o sol. Porque aumentava o risco de cancro, e porque era perigoso. Assim, Lea nunca tinha grande oportunidade de conhecer outras crianças, de brincar com elas, de saber do que gostavam, e como eram os seus pais. Talvez assim - pensava - seria mais fácil perceber por que razão ela era tão especial. Ou talvez nem sequer fosse. No fim de contas, talvez os seus pais lhe dissessem isso para que se sentisse melhor. Para se sentir realmente especial, quando, no fundo, ela talvez fosse tão especial como qualquer outra criança no mundo.
Afinal, o que havia de diferente na sua vida? Os seus pais trabalhavam bastante, e sobretudo de noite, mas de certo eram empregos fantásticos, porque em casa nunca faltava comida, e da mais deliciosa. De facto, a sopa era sempre tão fresca, e sabia sempre tão bem, embora nunca tivesse visto os seus pais a fazê-la. De qualquer forma, tinha que ser confeccionada por um chéf verdadeiramente fantástico, provavelmente um conhecido do emprego dos pais. Por outro lado, a sua família não era religiosa. Mas isso talvez fosse normal na sociedade moderna. Afinal, e tal como lhe diziam os pais, como é que se pode acreditar em deus, bem ou mal, quando existe a Ciência para mostrar a verdade, e quando as descobertas que se têm feito acerca do mundo não necessitam da existência de deus para as explicar.
Quando Lea completou 12 anos, os pais fizeram questão de a levar a visitar o local de trabalho. Afinal, parecia que queriam que ela continuasse o negócio de família quando crescesse. E, no fim de contas, por que não? Ver não magoava, e estava tão farta de ver os mesmos sítios todos os dias, que até visitar o emprego dos pais lhe parecia o melhor dos presentes de aniversário.
Saíram pouco depois do pôr-do-sol, no carro do pai. Roupas negras - de certo tratava-se da política da empresa em que trabalhavam. De qualquer forma, Lea estava demasiado curiosa para conter todas as perguntas que lhe brotavam na mente.
- Como é o vosso trabalho?
- Algo que começarás a fazer connosco em breve filha.
- Mas o que fazem.
- Trabalhamos bastante para conseguirmos a melhor comida para os três.
- Sim, a comida é sempre fantástica. É um amigo vosso que a faz?
- Que a faz?
- Sim, a sopa deliciosa que trazem sempre para casa depois do emprego. Nunca sabe exactamente ao mesmo, o que é óptimo porque nunca enjoamos, mas parece ter uma consistência fantástica. De certo trata-se da obra de um dos melhores cozinheiros da cidade.
- Bem, filhota, já começas a ser crescidinha. Está na altura de começares a compreender.
- Sim, digam.
- Não é sopa, filha.
- Não é sopa? Créme?
- Também não.
- Oh, então é um cozinheiro ainda mais sofisticado! De que país é?
- Não há nenhum cozinheiro, filhota. É sangue. Sangue humano.
- Como?
- Sim filha. Pensámos que pudesses descobrir por ti própria. Como eu ou o teu pai descobrimos. Mas talvez em nós o desejo de sangue era demasiado grande, e por isso os nossos pais tiveram que nos treinar bem mais cedo do que tu. Eu comecei ainda mais cedo do que o teu pai. E foi na caça que nos conhecemos. Antes de nasceres.
- Mas então nós...
- Somos vampiros filha, sim. Sempre te dissemos que éramos especiais. Mesmo muito. Por isso não te deixamos sair de dia, por isso nada de crucifixos, ou alho. Por isso o sangue.
- E o vosso trabalho é...
- Caça. Caçamos pessoas, e depois bebemos o sangue deles, ou então drenamos para levar para ti, ou para matar a fome durante o dia.
- Não acredito!
- Calma filhota.
- Calma, como posso ter calma?
- Talvez seja melhor voltarmos para casa?
- Sim, quero voltar para casa, e já!
Lea voltou para casa com os seus pais, e, assim que lá chegaram, correu de imediato para o seu quarto, e fechou a porta atrás de si. Como podia ela ser um vampiro? Matar pessoas para beber o seu sangue? Haveria algo mais horrível do que isso? Não, ela refusava-se a matar pessoas, nem que para isso tivesse que morrer ela mesmo.
- Lea, estás bem? Acalma-te, tens de tentar aceitar o que tu és. Nada te pode mudar.
- Deixei-me em paz! Odeio-vos. São os piores pais do mundo!
Lea passou 2 dias sem sair do seu quarto, ignorando todos os apelos dos seus pais, e por vezes vendo televisão. Até que, ao fim desse tempo, e com o estômago literalmente a dar horas, começou a passar um programa sobre vegetarianismo. Sobre a forma como era mais do que possível substituir toda a carne e peixe somente por vegetais. Era até mais saudável. Se ao menos ela fosse uma rapariga normal, então seria vegetariana. Matar humanos era horrível, mas não o era também matar um animal e comer a sua carne? Só o pensamento causava-lhe arrepios (mais do que o facto de ter bebido sangue de humanos ao longo de toda a sua vida).
Todavia, ao terceiro dia, Lea não conseguiu aguentar a fome que lhe corria no corpo. Precisava de sangue, de comida. Mais: precisava de uma caçada. Os seus pais estavam certos: tinha que aceitar quem era. Assim Lea saiu do quarto, sorridente, e, sem os seus pais saberem, saiu de casa. Para a sua primeira caçada.
Afinal, o que havia de diferente na sua vida? Os seus pais trabalhavam bastante, e sobretudo de noite, mas de certo eram empregos fantásticos, porque em casa nunca faltava comida, e da mais deliciosa. De facto, a sopa era sempre tão fresca, e sabia sempre tão bem, embora nunca tivesse visto os seus pais a fazê-la. De qualquer forma, tinha que ser confeccionada por um chéf verdadeiramente fantástico, provavelmente um conhecido do emprego dos pais. Por outro lado, a sua família não era religiosa. Mas isso talvez fosse normal na sociedade moderna. Afinal, e tal como lhe diziam os pais, como é que se pode acreditar em deus, bem ou mal, quando existe a Ciência para mostrar a verdade, e quando as descobertas que se têm feito acerca do mundo não necessitam da existência de deus para as explicar.
Quando Lea completou 12 anos, os pais fizeram questão de a levar a visitar o local de trabalho. Afinal, parecia que queriam que ela continuasse o negócio de família quando crescesse. E, no fim de contas, por que não? Ver não magoava, e estava tão farta de ver os mesmos sítios todos os dias, que até visitar o emprego dos pais lhe parecia o melhor dos presentes de aniversário.
Saíram pouco depois do pôr-do-sol, no carro do pai. Roupas negras - de certo tratava-se da política da empresa em que trabalhavam. De qualquer forma, Lea estava demasiado curiosa para conter todas as perguntas que lhe brotavam na mente.
- Como é o vosso trabalho?
- Algo que começarás a fazer connosco em breve filha.
- Mas o que fazem.
- Trabalhamos bastante para conseguirmos a melhor comida para os três.
- Sim, a comida é sempre fantástica. É um amigo vosso que a faz?
- Que a faz?
- Sim, a sopa deliciosa que trazem sempre para casa depois do emprego. Nunca sabe exactamente ao mesmo, o que é óptimo porque nunca enjoamos, mas parece ter uma consistência fantástica. De certo trata-se da obra de um dos melhores cozinheiros da cidade.
- Bem, filhota, já começas a ser crescidinha. Está na altura de começares a compreender.
- Sim, digam.
- Não é sopa, filha.
- Não é sopa? Créme?
- Também não.
- Oh, então é um cozinheiro ainda mais sofisticado! De que país é?
- Não há nenhum cozinheiro, filhota. É sangue. Sangue humano.
- Como?
- Sim filha. Pensámos que pudesses descobrir por ti própria. Como eu ou o teu pai descobrimos. Mas talvez em nós o desejo de sangue era demasiado grande, e por isso os nossos pais tiveram que nos treinar bem mais cedo do que tu. Eu comecei ainda mais cedo do que o teu pai. E foi na caça que nos conhecemos. Antes de nasceres.
- Mas então nós...
- Somos vampiros filha, sim. Sempre te dissemos que éramos especiais. Mesmo muito. Por isso não te deixamos sair de dia, por isso nada de crucifixos, ou alho. Por isso o sangue.
- E o vosso trabalho é...
- Caça. Caçamos pessoas, e depois bebemos o sangue deles, ou então drenamos para levar para ti, ou para matar a fome durante o dia.
- Não acredito!
- Calma filhota.
- Calma, como posso ter calma?
- Talvez seja melhor voltarmos para casa?
- Sim, quero voltar para casa, e já!
Lea voltou para casa com os seus pais, e, assim que lá chegaram, correu de imediato para o seu quarto, e fechou a porta atrás de si. Como podia ela ser um vampiro? Matar pessoas para beber o seu sangue? Haveria algo mais horrível do que isso? Não, ela refusava-se a matar pessoas, nem que para isso tivesse que morrer ela mesmo.
- Lea, estás bem? Acalma-te, tens de tentar aceitar o que tu és. Nada te pode mudar.
- Deixei-me em paz! Odeio-vos. São os piores pais do mundo!
Lea passou 2 dias sem sair do seu quarto, ignorando todos os apelos dos seus pais, e por vezes vendo televisão. Até que, ao fim desse tempo, e com o estômago literalmente a dar horas, começou a passar um programa sobre vegetarianismo. Sobre a forma como era mais do que possível substituir toda a carne e peixe somente por vegetais. Era até mais saudável. Se ao menos ela fosse uma rapariga normal, então seria vegetariana. Matar humanos era horrível, mas não o era também matar um animal e comer a sua carne? Só o pensamento causava-lhe arrepios (mais do que o facto de ter bebido sangue de humanos ao longo de toda a sua vida).
Todavia, ao terceiro dia, Lea não conseguiu aguentar a fome que lhe corria no corpo. Precisava de sangue, de comida. Mais: precisava de uma caçada. Os seus pais estavam certos: tinha que aceitar quem era. Assim Lea saiu do quarto, sorridente, e, sem os seus pais saberem, saiu de casa. Para a sua primeira caçada.
Livres
É preciso prendermo-nos para podermos voar
palavra por palavra para nos podermos calar
num silêncio de gritos sem fim
num sonho de mundos reais sem sentido.
É preciso morrermos para podermos viver.
palavra por palavra para nos podermos calar
num silêncio de gritos sem fim
num sonho de mundos reais sem sentido.
É preciso morrermos para podermos viver.
Grito da noite
É no grito da noite que o silêncio rebenta
em todas as suas cores
de luz e escuridão
é nele que as vozes se soltam enfim
sem medo
para se tornarem papel e tinta
na mente de quem sonha e vê
no céu de quem sabe que o mundo
não é o mundo
mas um mar inteiro
de si mesmo
um mar tão extenso e verdadeiro
que nem tão-pouco sabe
que o é.
em todas as suas cores
de luz e escuridão
é nele que as vozes se soltam enfim
sem medo
para se tornarem papel e tinta
na mente de quem sonha e vê
no céu de quem sabe que o mundo
não é o mundo
mas um mar inteiro
de si mesmo
um mar tão extenso e verdadeiro
que nem tão-pouco sabe
que o é.
Sem rumo
Sem norte nem espaço, nem tempo nem consciência
apenas o palpitar de um violino
o oscilar de uma corda
- talvez o grito de um piano
e uma brisa de uma voz profunda
de um poema sem dono
de uma praia sem gente.
Sem destino, sem rumo.
Sem início ou fim.
Na palavra nascemos
e no poema havemos de ter fim.
apenas o palpitar de um violino
o oscilar de uma corda
- talvez o grito de um piano
e uma brisa de uma voz profunda
de um poema sem dono
de uma praia sem gente.
Sem destino, sem rumo.
Sem início ou fim.
Na palavra nascemos
e no poema havemos de ter fim.
Sorriso
Na memória erguem-se cidades sem fim
muros de lágrimas e areia
que um dia construiste no meu olhar
como um sorriso que nos envolve num momento
e nos acompanha para sempre.
muros de lágrimas e areia
que um dia construiste no meu olhar
como um sorriso que nos envolve num momento
e nos acompanha para sempre.
Anúncio
No céu um horizonte
na brisa um anúncio.
Fogos de guerras por travar
num frio de branco de papel por escrever.
na brisa um anúncio.
Fogos de guerras por travar
num frio de branco de papel por escrever.
Chama
Às vezes no calor do sol sobre o gelo nos vales
ou na brisa de neve que cai sobre os ombros
há uma onda distante que chama
- sussurra -
como uma chama tímida que quase não aquece
mas ilumina.
Uma estrela no horizonte por achar
arco-íris distante
inalcansável
como um beijo que o tempo não apaga
ou um sorriso que a distância não cura.
ou na brisa de neve que cai sobre os ombros
há uma onda distante que chama
- sussurra -
como uma chama tímida que quase não aquece
mas ilumina.
Uma estrela no horizonte por achar
arco-íris distante
inalcansável
como um beijo que o tempo não apaga
ou um sorriso que a distância não cura.
segunda-feira, 14 de janeiro de 2008
Voar
Abraçar as mãos em asas
e voar
Como se os nossos dedos
unidos
fossem o poder do poema
como se as linhas
do nosso destino
fossem a magia de versos de luz
Abraçar as mãos em asas
e voar
pelos céus que criamos a cada toque
a cada carinho
num mundo só nosso.
Abraçar os nossos corpos em asas
e voar.
e voar
Como se os nossos dedos
unidos
fossem o poder do poema
como se as linhas
do nosso destino
fossem a magia de versos de luz
Abraçar as mãos em asas
e voar
pelos céus que criamos a cada toque
a cada carinho
num mundo só nosso.
Abraçar os nossos corpos em asas
e voar.
Matematicopoesia
Às vezes a noite traz uma inoportuna função
matemática que indesejadamente transforma
o isolamento em solidão. E talvez o mais triste
seja derivá-la e verificar que f linha, após f linha,
tudo o que se obtém são conjuntos vazios de lágrimas
que a matemática parece não compreender.
matemática que indesejadamente transforma
o isolamento em solidão. E talvez o mais triste
seja derivá-la e verificar que f linha, após f linha,
tudo o que se obtém são conjuntos vazios de lágrimas
que a matemática parece não compreender.
sábado, 5 de janeiro de 2008
A Humanidade em Três Mundos - Fast-food II
O mundo está hoje a mudar. De forma extraordinariamente rápida. Mesmo que os ditadores de gema se esforcem por reforçar o terrorismo e os conflitos que parecem rebentar por todo o lado, é nesse mesmo mundo que está a brotar a semente da verdadeira mudança. Com o conhecimento a estar acessível a cada vez mais, e sobretudo com o debate de ideias através da internet - e das comunidades formadas - são cada vez mais aqueles que estão a conseguir encontrar o que se pode considerar “o seu próprio caminho”. É verdade que a sociedade os condena e repreende, sempre que se mostram à luz do dia. Por vezes abandonam o caminho que haviam começado, unicamente para voltarem a sentir-se “parte” da comunidade. Mas esses, tal como muitos dos outros, sabem perfeitamente que um dos maiores problemas da sociedade, e uma das principais razões de tantos conflitos e problemas prende-se com o imenso sentimento de perda, de desorientação e de bases para viver.
Aqueles que sempre viveram o mundo seguindo à risca todas as regras e dogmas, e que os aceitaram como verdades profundas, matando a sua própria curiosidade, agindo com base neles e não no seu verdadeiro julgamento ou experiência estendida e não centrada em si mesmo ou na sua própria sociedade - esses são aqueles que ainda se mostram mais estáveis. Senhores de si. Afinal, estão em casa.
Por outro lado, talvez a maioria, neste momento - no mundo “ocidental” - não seja assim. Nascidos sobretudo a partir da geração anterior, os filhos dos dogmas tiveram a oportunidade de olhar o mundo, e ver um pouco mais longe, mas foram desde logo obrigados a fechá-los, e a seguir as regras da sua sociedade, dos seus pais, da sua família, da sua igreja, da sua crença. Mesmo quando perceberam que não faziam qualquer sentido. Para esses, o mundo normalmente não faz qualquer sentido. Consequentemente, as celebrações, as rotinas, o trabalho, tudo se resumo a algo quase completamente forçado, ensaiado - quase pura representação. E existe um limite, que muitos atingem. Depressão, suicídio, isolamento.
Outros, sob pressão, passam para um outro grupo. Um terceiro. Talvez fruto sobretudo da última geração, mas também da primeira: os que olharam longe, foram obrigados a fechar os olhos, mas voltaram a abri-los. Um conjunto de pessoas que, a uma dada altura das suas vidas teve a coragem necessária para saltar o muro, para navegar para um outro continente, para descobrir a lua e outros planetas, para ver para além da nossa perspectiva. Pessoas que, mesmo que acabem por agir tal como as primeiras, segundo determinadas regras, princípios ou crenças, foram capazes de as escolher com base em vivências e experiências diversas. Muitas, porém, vão longe de mais, e são de tal forma rejeitadas pela sociedade que acabam como as do segundo grupo. De qualquer forma, são capazes de pelo menos conseguir esboçar um caminho, definido por eles próprios, onde cada erro, cada decisão, cada viagem são tesouros que não se pode abdicar nunca. Para eles, o arrependimento é o sentimento de quem tem medo de olhar para fora de si mesmo e descobrir o mundo, e arrependem-se apenas do que não fizeram.
E hoje, num mundo ditatorial, onde parece que a grande maioria dos seus habitantes parece pertencer ao grupo dos filhos de gado com olhos de artistas cegos na infância, que futuro podemos esperar?
Aqueles que sempre viveram o mundo seguindo à risca todas as regras e dogmas, e que os aceitaram como verdades profundas, matando a sua própria curiosidade, agindo com base neles e não no seu verdadeiro julgamento ou experiência estendida e não centrada em si mesmo ou na sua própria sociedade - esses são aqueles que ainda se mostram mais estáveis. Senhores de si. Afinal, estão em casa.
Por outro lado, talvez a maioria, neste momento - no mundo “ocidental” - não seja assim. Nascidos sobretudo a partir da geração anterior, os filhos dos dogmas tiveram a oportunidade de olhar o mundo, e ver um pouco mais longe, mas foram desde logo obrigados a fechá-los, e a seguir as regras da sua sociedade, dos seus pais, da sua família, da sua igreja, da sua crença. Mesmo quando perceberam que não faziam qualquer sentido. Para esses, o mundo normalmente não faz qualquer sentido. Consequentemente, as celebrações, as rotinas, o trabalho, tudo se resumo a algo quase completamente forçado, ensaiado - quase pura representação. E existe um limite, que muitos atingem. Depressão, suicídio, isolamento.
Outros, sob pressão, passam para um outro grupo. Um terceiro. Talvez fruto sobretudo da última geração, mas também da primeira: os que olharam longe, foram obrigados a fechar os olhos, mas voltaram a abri-los. Um conjunto de pessoas que, a uma dada altura das suas vidas teve a coragem necessária para saltar o muro, para navegar para um outro continente, para descobrir a lua e outros planetas, para ver para além da nossa perspectiva. Pessoas que, mesmo que acabem por agir tal como as primeiras, segundo determinadas regras, princípios ou crenças, foram capazes de as escolher com base em vivências e experiências diversas. Muitas, porém, vão longe de mais, e são de tal forma rejeitadas pela sociedade que acabam como as do segundo grupo. De qualquer forma, são capazes de pelo menos conseguir esboçar um caminho, definido por eles próprios, onde cada erro, cada decisão, cada viagem são tesouros que não se pode abdicar nunca. Para eles, o arrependimento é o sentimento de quem tem medo de olhar para fora de si mesmo e descobrir o mundo, e arrependem-se apenas do que não fizeram.
E hoje, num mundo ditatorial, onde parece que a grande maioria dos seus habitantes parece pertencer ao grupo dos filhos de gado com olhos de artistas cegos na infância, que futuro podemos esperar?
Ditaduras, Fast-Food e Humanidade
Não escolhemos o momento em que nascemos. Tão-pouco o dia em que finalmente nos olhamos ao espelho e sabemos que a imagem que vemos nos pertence. Que somos quem somos e não quem pensamos que somos. Porém, muitos - senão a maioria - nunca nascerão. Fruto da sociedade, talvez. Da forma como se organiza. Uma necessidade, dirão muitos.
A verdade é que as regras, as crenças, os dogmas e o “bem” são conceitos extremamente úteis numa sociedade primitiva. Formas fantásticas de manter a ordem. Afinal, por que razão se alimentaram ditadores a ouro e prata ao longo da história da humanidade? A humanidade funciona tão facilmente quando não precisa de se olhar ao espelho, quando é simplesmente pastada, quando alguém lhe diz o que fazer, para onde ir, e por que motivo dar a sua vida.
Ao longo da história, a religião também assumiu um dos principais lugares nessa tarefa. Escravizar para dar um propósito e assim dar a sensação de pertença e felicidade, ao mesmo tempo que mantinha sociedades coesas. Mas a um preço. Ditaduras, regras e a lógica do rebanho são uma combinação barata e eficaz, do tipo fast-food. Porém, tal como em qualquer solução milagrosa, existem efeitos secundários. Guerras, conflitos, e toda uma parte da sociedade que simplesmente não consegue seguir a onda, o movimento comum. Revolucionários, perdidos, maus, hereges. Chamem-lhes o que quiserem. O que importa é que a lógica do deus pátria e família simplesmente não resulta com eles. Muitos tentam. Convencem-se a si mesmos de que sim, que se trata do melhor caminho. Mas a vida mostra-lhes que não.
Mas haverá uma outra forma? No fim de contas (dizem-nos sobretudo os apoiantes desta tradicional receita para governar o mundo), sempre que se tentou chegar mais longe, os fracassos foram totais. Regimes que começaram com a utópica filosofia comunista acabaram apenas por ser ditaduras com diferentes ingredientes. E sempre que se tentou conceder um pouco mais de liberdade, a maioria sentiu-se perdida. Sem rumo. E foi o caos.
Todavia, não será tudo isso fruto dos milhares de anos de regras ad-hoc, de dogmas sobre deuses e milagreiros que porventura não fazem qualquer sentido, e de homens com sede de poder que apenas pretendiam encontrar formas de dominar os próximos para atingir o seu lugar ao sol?
A verdade é que as regras, as crenças, os dogmas e o “bem” são conceitos extremamente úteis numa sociedade primitiva. Formas fantásticas de manter a ordem. Afinal, por que razão se alimentaram ditadores a ouro e prata ao longo da história da humanidade? A humanidade funciona tão facilmente quando não precisa de se olhar ao espelho, quando é simplesmente pastada, quando alguém lhe diz o que fazer, para onde ir, e por que motivo dar a sua vida.
Ao longo da história, a religião também assumiu um dos principais lugares nessa tarefa. Escravizar para dar um propósito e assim dar a sensação de pertença e felicidade, ao mesmo tempo que mantinha sociedades coesas. Mas a um preço. Ditaduras, regras e a lógica do rebanho são uma combinação barata e eficaz, do tipo fast-food. Porém, tal como em qualquer solução milagrosa, existem efeitos secundários. Guerras, conflitos, e toda uma parte da sociedade que simplesmente não consegue seguir a onda, o movimento comum. Revolucionários, perdidos, maus, hereges. Chamem-lhes o que quiserem. O que importa é que a lógica do deus pátria e família simplesmente não resulta com eles. Muitos tentam. Convencem-se a si mesmos de que sim, que se trata do melhor caminho. Mas a vida mostra-lhes que não.
Mas haverá uma outra forma? No fim de contas (dizem-nos sobretudo os apoiantes desta tradicional receita para governar o mundo), sempre que se tentou chegar mais longe, os fracassos foram totais. Regimes que começaram com a utópica filosofia comunista acabaram apenas por ser ditaduras com diferentes ingredientes. E sempre que se tentou conceder um pouco mais de liberdade, a maioria sentiu-se perdida. Sem rumo. E foi o caos.
Todavia, não será tudo isso fruto dos milhares de anos de regras ad-hoc, de dogmas sobre deuses e milagreiros que porventura não fazem qualquer sentido, e de homens com sede de poder que apenas pretendiam encontrar formas de dominar os próximos para atingir o seu lugar ao sol?
sexta-feira, 28 de dezembro de 2007
Espírito Tuga
País das maravilhas caídas do céu e dos grandes milagres que juntam mais pessoas do que muitas causas humanitárias. O lugar do negócio fácil e altamente lucrativo. Falcatruas, pequenos “desvios” de dinheiro, e ilegalidades e “pequenas” mentiras em praticamente todos os sectores da sociedade. O país do faz de conta. Carros topo-de-gama e casa própria, lado a lado com um saldo negativo que nem uma vida inteira de trabalho pode conseguir liquidar. Haverá outro senão Portugal? Bem, talvez sim, mas pelo menos Portugal, esse grande país de descobridores e da conquista do desconhecido é, de certo, um dos mais proeminentes.
Porém, ainda mais significativo é o discurso político. Tão próprio, tão característico. Tão nosso! O fado sem guitarra portuguesa, um mundo de lamentações e de sonhos heróicos de tempos que já lá vão (ou nunca foram). Um sebastianismo traçado com a crueldade da palavra saudade. Uma ambição que cresce na voz, mas que apenas se mantém nas gravações e em repetições televisivas.
E é neste mesmo país, em que todos se queixam de crises e crises; de faltas que qualificações espalhadas por toda a sociedade; neste pedaço de terra onde todos se queixam de inércia governamental (embora essa seja talvez a menor), e onde todos pedem mais dinâmica, dinamismo, maturidade - é neste mesmo país que pede jovens com essas características, que os forçamos a serem exactamente o contrário. Que os pais obrigam os filhos a concentrarem-se apenas na escola. A serem “doutores” porque isso lhes dará um estatuto mais elevado, e não porque os tornará mais conhecedores de si mesmos e do mundo à sua volta.
“É hora!”, dizia pessoa, a rematar a mensagem. Mas Portugal continua surdo.
Porém, ainda mais significativo é o discurso político. Tão próprio, tão característico. Tão nosso! O fado sem guitarra portuguesa, um mundo de lamentações e de sonhos heróicos de tempos que já lá vão (ou nunca foram). Um sebastianismo traçado com a crueldade da palavra saudade. Uma ambição que cresce na voz, mas que apenas se mantém nas gravações e em repetições televisivas.
E é neste mesmo país, em que todos se queixam de crises e crises; de faltas que qualificações espalhadas por toda a sociedade; neste pedaço de terra onde todos se queixam de inércia governamental (embora essa seja talvez a menor), e onde todos pedem mais dinâmica, dinamismo, maturidade - é neste mesmo país que pede jovens com essas características, que os forçamos a serem exactamente o contrário. Que os pais obrigam os filhos a concentrarem-se apenas na escola. A serem “doutores” porque isso lhes dará um estatuto mais elevado, e não porque os tornará mais conhecedores de si mesmos e do mundo à sua volta.
“É hora!”, dizia pessoa, a rematar a mensagem. Mas Portugal continua surdo.
domingo, 14 de janeiro de 2007
What really drives us?
Life is a strange place where there’s little chance to find ourselves, or something that completely suits us. But yet we go on. Day by day. Month by month. Year by year. Always chasing something, fighting for it. And sometimes we are so concerned about our purposes that we even forget what made them so important to us in the first place. On the other hand, life can be hard, as hard as anything can be. And when that happens, few can resist - so we often chose the easiest way: giving up.
In some sense, life has everything to do with Science. Well, not with “Science” as a “theoretical” or “philosophical” entity, but with the “real” Science. The human Science. The only Science that we know. But why is that? Well, to begin with, Science is “made” by humans, so all the cultural, religious, or even “artistic” background is “always” present in any research. Secondly, Science - unfortunately - is often driven more by unconscious human “emotions” than it is by the more fundamental thing - which is the search for the unanswered questions. This may well be controversial, but truth is also classified that way.
So what’s the purpose around all this thing? Simply to state that even Science - which was suppose to be “above” the every-day world, in the sense that is should respect a couple of “higher” principles - is as human as it could be. And that has a huge importance. Mainly because it implies that the knowledge never evolves as it “should be”. Therefore, we can get periods of time where there’s no more that controversy and argues between the science community - just to know “who” do this or that - and others where single individuals, or even big teams, can show us a better picture of a particular part of the world. In the meantime, new ideas are always being created, but they are often destroyed almost before they are really born. What does this mean? It means that they are neglected before being tested with a real experiment - just because they contradict the knowledge that we accept as absolutely correct. And this gets even “truer” when we get to the fundamental research, something that has so much math and imagination, that often forgets that Science is about the world, not about Maths, Complexity and “mathematical beauty”.
Science has everything to do with life. That’s why it is so interesting, and yet - sometimes - so boring. That’s why it is often driven - in the first place - by a stupid or crazy idea, or even by an unexpected error. And that’s the reason why in Science, as much as in the ordinary life, we need revolutionaries - people that are among the field but are not afraid to raise their voices, and to say what the others simply don’t want to hear. Making them see that we cannot get passionate about the ideas that worked in the past, even when they look so “nice” and “beautiful”. Because if we do that, we will get lost from the real path that can give us the answers about the real world. Answers that we have been looking almost since we became human. And the answers about the real world are not the ones that our mind is expecting!
In the end, it doesn’t matter if those revolutionary men or women “achieve” something in life, in the ordinary meaning of it - because just for defying the system in which they are, exposing its problems and malfunctions, all of these people - along the human history - are real heroes. Some are considered eccentrics, others are seen as the materialization of the word arrogance, and others are hope and religious symbols. But they should all be considered as the engines of human progress and evolution.
In some sense, life has everything to do with Science. Well, not with “Science” as a “theoretical” or “philosophical” entity, but with the “real” Science. The human Science. The only Science that we know. But why is that? Well, to begin with, Science is “made” by humans, so all the cultural, religious, or even “artistic” background is “always” present in any research. Secondly, Science - unfortunately - is often driven more by unconscious human “emotions” than it is by the more fundamental thing - which is the search for the unanswered questions. This may well be controversial, but truth is also classified that way.
So what’s the purpose around all this thing? Simply to state that even Science - which was suppose to be “above” the every-day world, in the sense that is should respect a couple of “higher” principles - is as human as it could be. And that has a huge importance. Mainly because it implies that the knowledge never evolves as it “should be”. Therefore, we can get periods of time where there’s no more that controversy and argues between the science community - just to know “who” do this or that - and others where single individuals, or even big teams, can show us a better picture of a particular part of the world. In the meantime, new ideas are always being created, but they are often destroyed almost before they are really born. What does this mean? It means that they are neglected before being tested with a real experiment - just because they contradict the knowledge that we accept as absolutely correct. And this gets even “truer” when we get to the fundamental research, something that has so much math and imagination, that often forgets that Science is about the world, not about Maths, Complexity and “mathematical beauty”.
Science has everything to do with life. That’s why it is so interesting, and yet - sometimes - so boring. That’s why it is often driven - in the first place - by a stupid or crazy idea, or even by an unexpected error. And that’s the reason why in Science, as much as in the ordinary life, we need revolutionaries - people that are among the field but are not afraid to raise their voices, and to say what the others simply don’t want to hear. Making them see that we cannot get passionate about the ideas that worked in the past, even when they look so “nice” and “beautiful”. Because if we do that, we will get lost from the real path that can give us the answers about the real world. Answers that we have been looking almost since we became human. And the answers about the real world are not the ones that our mind is expecting!
In the end, it doesn’t matter if those revolutionary men or women “achieve” something in life, in the ordinary meaning of it - because just for defying the system in which they are, exposing its problems and malfunctions, all of these people - along the human history - are real heroes. Some are considered eccentrics, others are seen as the materialization of the word arrogance, and others are hope and religious symbols. But they should all be considered as the engines of human progress and evolution.
quarta-feira, 10 de janeiro de 2007
Blogo
Visitem http://pwp.netcabo.pt/d.sobral ou www.words.web.pt para novos posts e textos deste blog :)
terça-feira, 12 de dezembro de 2006
Santiago de Chile
E acabou-se a conferência em Santiago, no Chile. A 4th Advanced Chilean School of Astrophysics: "Interferometry in the Epoch of ALMA and VLTI". Foram 7 dias memoráveis, que começaram com uma mala que ficou em Madrid e acabaram com videos e fotografias pseudo-artísticas de Lisboa, vista do ar. Pelo caminho ficou o caos tão barulhento mas ao mesmo tempo único de toda a cidade, o metro com pneus de "última tecnologia" (lol), a estação de Santa Luzia, com a decoração doada pelo Metro de Lisboa, os muitos e muitas sul americanos porreiros e que até percebiam português. O pior foi mesmo a estranha noção de "distância" dos chilenos e chilenas, sobretudo com as palavras "perto" ou "rápido" :P. Mas distâncias à parte, ainda deu para ver o céu do hemisfério sul e tudo, a cerca de um quilómetro e meio de altura, com um telescópio nada mau (cerca de 50 cm de abertura, ou seja, um belo monstrinho amador).
Para já ficam algumas das melhores fotos :)
quinta-feira, 7 de dezembro de 2006
Metro de Santiago
segunda-feira, 4 de dezembro de 2006
segunda-feira, 20 de novembro de 2006
Olhar
Para trás
Tudo o que era ficou para trás quando parti. Todos os sonhos, as ambições – e até os pesadelos. Deixei os medos com a mesma naturalidade com que abandonei o amor dos contos de fadas, e matei as memórias felizes com a mesma crueza com que lidei com as mais horripilantes. Despi-me de mim mesmo. Cortei os membros, o peito. Retirei o meu próprio coração. Fiz-me e desfiz-me em pedaços. E, por isso, quando parti, não restava nada de mim. E tudo ficou para trás. Para sempre.
Prosa
Há quantos séculos não falamos, poema?
Há tantos, que provavelmente até tu
te deixaste cair
na inércia de seres
prosa.
Apenas prosa.
Para sempre prosa.
Há tantos, que provavelmente até tu
te deixaste cair
na inércia de seres
prosa.
Apenas prosa.
Para sempre prosa.
Escrevo
Escrevo, sim. Ou talvez. Já nem importa. Escrevo apenas, mesmo sem saber se o faço, ou por que o faço. Por mim? Por ti? Por ela? Por ele? Ou por quem mais? Talvez por nada. Sim, escrevo por nada, mas nem sequer penso demasiado nisso, para não o concretizar, para me manter no nada. Do nada para o nada não é preciso movimento, translação, viagens. E, por isso, posso ficar aqui, abrigado no seio destas palavras que não sei o que dizem ou significam, mas sei – ou penso – que existem em mim ou em algo que penso que sou eu. Escrevo, sim. Ou talvez não.
Vida
É incrível como podemos passar o dia a dia completamente imersos em pensamentos sobre o que há-de vir, concentrados no futuro e em tudo aquilo que queremos vir a conseguir. Podem até ser as coisas mais simples e inocentes, como a "felicidade", ou até coisas mais terra-a-terra. Porém, a verdade é que, muitas vezes, fixamo-nos de tal modo nesse dia-a-dia de procura que acabamos por nos perder em argumentos tão ridículos como a "falta de tempo", ou a "falta de paciência". Corremos e suamos, por vezes passamos noites sem dormir. Às vezes irritamo-nos pelas razões mais ridículas e criamos conflitos onde antes parecia haver apenas amizade. E, no final, estamos tão cansados de acharmos que estamos cansados, e tão agarrados à nossa procura e ao "futuro", que nem sequer temos tempo para pensar no presente. Para nos apercebermos de que a vida é este instante em que alguém escreve, em que alguém lê. Este instante em que podemos disfrutar de cada inspiração e expiração. Este momento, este segundo, esta hora, em que nos podemos sentir vivos. A vida é aqui e agora.
terça-feira, 14 de novembro de 2006
The World where poetry is dead
I stand alone, starring in the dark.
Loneliness comes. She whispers me a sad song
Which the angels did not sing.
Suffering hearts! How they scream for love!
But war and pain is what they get from above
In this world, where Poetry is dead,
Buried in the hearths which no longer dream.
I close my eyes, losing myself,
Hoping for a miracle to happen
But even miracles are forbidden in this reality!
I hear my hearth beat, as if it was the last thing
I would hear in this world of pain
And everything is impossible to overcome…
I fall apart with a dead hearth whispering for salvation
Hoping I would have been a star, twinkling in a constellation
Far… Far away from this nightmare.
If only there was a bit of Poetry left…
It would be so easy to dry all tears
To make stars from bleeding scars
And smiles from the deepest fears…
Loneliness comes. She whispers me a sad song
Which the angels did not sing.
Suffering hearts! How they scream for love!
But war and pain is what they get from above
In this world, where Poetry is dead,
Buried in the hearths which no longer dream.
I close my eyes, losing myself,
Hoping for a miracle to happen
But even miracles are forbidden in this reality!
I hear my hearth beat, as if it was the last thing
I would hear in this world of pain
And everything is impossible to overcome…
I fall apart with a dead hearth whispering for salvation
Hoping I would have been a star, twinkling in a constellation
Far… Far away from this nightmare.
If only there was a bit of Poetry left…
It would be so easy to dry all tears
To make stars from bleeding scars
And smiles from the deepest fears…
segunda-feira, 13 de novembro de 2006
Se... (2003)
Se para isso tivesse voz e se houvesse mundo suficiente
Gritaria alto como um trovão e terno como uma carícia
E, entoando teu nome, toda a Terra se cobriria de amor
E a esperança cairia dos céus, estremecendo todo o planeta
E a água e o fogo, a terra e o ar voltar-se-iam a amar.
Se tivesse para isso asas e se Mundo para isso houvesse,
Correria rápido como o desejo e veloz como um arrepio
E correndo em teu nome, toda a Terra se cobriria de ternura
E o sonho voltaria em coração dos Homens, estremecendo o planeta
E a água e o fogo, a terra e o ar, voltar-se-iam a amar...
Gritaria alto como um trovão e terno como uma carícia
E, entoando teu nome, toda a Terra se cobriria de amor
E a esperança cairia dos céus, estremecendo todo o planeta
E a água e o fogo, a terra e o ar voltar-se-iam a amar.
Se tivesse para isso asas e se Mundo para isso houvesse,
Correria rápido como o desejo e veloz como um arrepio
E correndo em teu nome, toda a Terra se cobriria de ternura
E o sonho voltaria em coração dos Homens, estremecendo o planeta
E a água e o fogo, a terra e o ar, voltar-se-iam a amar...
O Dia em que me viste (2003)
A Brisa tocava o mundo tão docemente,
Enquanto o Sol o iluminava, dando-lhe vida.
O Céu, esse, era espelho de azul magnífico
E na Terra tudo se iluminava à tua passagem!
Impossível! Magia das Magias! Feitiço!
Entre teus passos cuidadosos e encantadores
Paraste, com todo o teu brilho, sorrindo
Fazendo desmaiar cravos e rosas de amores!
Meus olhos eram flores do sol
E só a estrela maior me faria deixar meu estado errante!
Mas como podes tu, estrela incrível,
Dares-me vida, se sou tão pequeno, insignificante?
Mas deste-me! Foste luz onde só o negro imperava!
Pois um só olhar teu ilumina tudo o que existe!
O teu olhar, que tudo cega com esse brilho imenso.
O teu olhar... que tudo apaixona, que é feitiço intenso!
O vento soprou forte e incessante!
O coração bateu forte, mais forte... e de rompante...
O que era, que seria? Tamanho espantar!
Eras tu, a Beleza do mundo, com tua presença de encantar!
Enquanto o Sol o iluminava, dando-lhe vida.
O Céu, esse, era espelho de azul magnífico
E na Terra tudo se iluminava à tua passagem!
Impossível! Magia das Magias! Feitiço!
Entre teus passos cuidadosos e encantadores
Paraste, com todo o teu brilho, sorrindo
Fazendo desmaiar cravos e rosas de amores!
Meus olhos eram flores do sol
E só a estrela maior me faria deixar meu estado errante!
Mas como podes tu, estrela incrível,
Dares-me vida, se sou tão pequeno, insignificante?
Mas deste-me! Foste luz onde só o negro imperava!
Pois um só olhar teu ilumina tudo o que existe!
O teu olhar, que tudo cega com esse brilho imenso.
O teu olhar... que tudo apaixona, que é feitiço intenso!
O vento soprou forte e incessante!
O coração bateu forte, mais forte... e de rompante...
O que era, que seria? Tamanho espantar!
Eras tu, a Beleza do mundo, com tua presença de encantar!
A Era dos Descobrimentos Espaciais (I)
A espera revelou-se extremamente recompensadora para Sernot, o comandante-geral da Eva, no dia 1 de Janeiro do ano 2306 da era moderna. Ao fim de tantos anos de construção e preparação da nave, e depois de meses dispendidos na escolha e preparação de toda a equipa tripulante, o maior sonho de juventude de Sernot era então a concretização do mais notável e ambicioso projecto concebido pela humanidade. E Sernot, mais do que qualquer um, sabia o quão árdua tinha sido toda essa extensa etapa do projecto Eva, que chegava ao fim com os últimos preparativos que antecipavam o lançamento. Porém, e ainda que não conseguisse esconder a emoção e alegria que lhe corriam como um fluido pelo sistema nervoso, era também ele o mais cauteloso nas declarações telepáticas à imprensa. "Afinal", pensava Sernot para si mesmo, "mais do que orgulho, devo sentir a tremenda responsabilidade que, quer queira quer não, está depositada em mim".
E não era para menos. Sobretudo porque, ainda que a humanidade olhasse agora para Eva como a salvação de toda uma espécie, e para Sernot como o seu Messias, a verdade é que a missão, prestes a começar, estava longe de poder ser considerada um sucesso. É óbvio que era essa a vontade de todos os intervenientes, directos ou indirectos, mas, dado o objectivo final, a promessa de êxito nunca poderia ser muito mais do que uma simples promessa política dos tempos primitivos.
Todavia, nada disso importava à comunicação social, quase toda ela entusiasmo e confiança. Era de facto extraordinária a diferença de discurso que se verificava entre aquele utilizado para descrever a nave – e tudo o que ela significava – e o utilizado para revelar a "horrível descoberta", feita poucos anos antes, e que, ainda que tivesse dado um empurrão decisivo no projecto Eva, foi também motivo para um pessimismo que nunca antes se abatera sobre a humanidade. Havia sido descoberto o prazo de validade da Terra e – diziam os estudos – a data de expiração aproximava-se a passos larguíssimos. "A Resposta, a Salvação", noticiara o diário wireless World News, no dia do arranque oficial do projecto de Sernot, "chama-se Eva".
- Cidadãs e cidadãos de todo o mundo, é com enorme prazer que vos comunico, enquanto responsável pelo projecto Eva, e na qualidade de comandante-geral, que, tal como previsto, o lançamento da nave espacial Eva, com destino ao planeta SD-GS2056, será realizado amanhã, no horário previamente estabelecido. Assim, e em nome de toda a tripulação, compete-me assegurar que de tudo faremos para agarrar esta fantástica oportunidade de sobrevivência da espécie humana, mas também alertar para todos os perigos e possibilidades de insucesso que teremos de enfrentar. Todavia, e ainda que o calculismo nos obrigue a temer o pior, todos nós sentimos de forma intensíssima que este é o momento, e que não falharemos. Amanhã, cidadãs e cidadãos, começa o nosso maior desafio. Até breve!
E não era para menos. Sobretudo porque, ainda que a humanidade olhasse agora para Eva como a salvação de toda uma espécie, e para Sernot como o seu Messias, a verdade é que a missão, prestes a começar, estava longe de poder ser considerada um sucesso. É óbvio que era essa a vontade de todos os intervenientes, directos ou indirectos, mas, dado o objectivo final, a promessa de êxito nunca poderia ser muito mais do que uma simples promessa política dos tempos primitivos.
Todavia, nada disso importava à comunicação social, quase toda ela entusiasmo e confiança. Era de facto extraordinária a diferença de discurso que se verificava entre aquele utilizado para descrever a nave – e tudo o que ela significava – e o utilizado para revelar a "horrível descoberta", feita poucos anos antes, e que, ainda que tivesse dado um empurrão decisivo no projecto Eva, foi também motivo para um pessimismo que nunca antes se abatera sobre a humanidade. Havia sido descoberto o prazo de validade da Terra e – diziam os estudos – a data de expiração aproximava-se a passos larguíssimos. "A Resposta, a Salvação", noticiara o diário wireless World News, no dia do arranque oficial do projecto de Sernot, "chama-se Eva".
- Cidadãs e cidadãos de todo o mundo, é com enorme prazer que vos comunico, enquanto responsável pelo projecto Eva, e na qualidade de comandante-geral, que, tal como previsto, o lançamento da nave espacial Eva, com destino ao planeta SD-GS2056, será realizado amanhã, no horário previamente estabelecido. Assim, e em nome de toda a tripulação, compete-me assegurar que de tudo faremos para agarrar esta fantástica oportunidade de sobrevivência da espécie humana, mas também alertar para todos os perigos e possibilidades de insucesso que teremos de enfrentar. Todavia, e ainda que o calculismo nos obrigue a temer o pior, todos nós sentimos de forma intensíssima que este é o momento, e que não falharemos. Amanhã, cidadãs e cidadãos, começa o nosso maior desafio. Até breve!
Horizonte por achar
rasgo o mar por entre os sonhos
buscando talvez a razão de procurar
aquilo que só há no não existir
e encontrar
venço a fúria de querer ter o que não há
desfazendo a inércia de não ser luz
como quem crê no infinito
e em o olhar
mas no final do tempo há um relógio que desperta
- o mundo recomeçou
buscando talvez a razão de procurar
aquilo que só há no não existir
e encontrar
venço a fúria de querer ter o que não há
desfazendo a inércia de não ser luz
como quem crê no infinito
e em o olhar
mas no final do tempo há um relógio que desperta
- o mundo recomeçou
Vida
a vida esgota-se a cada instante
rodopia dançando ao sabor
da ilusão do tempo
e escorre-se por entre os dedos
sempre que a tentamos agarrar
rodopia dançando ao sabor
da ilusão do tempo
e escorre-se por entre os dedos
sempre que a tentamos agarrar
Sempre
foi sempre assim
o rio aqui e tu tão longe
a lareira a crepitar em sonhos
e o mundo inalcansável
o rio aqui e tu tão longe
a lareira a crepitar em sonhos
e o mundo inalcansável
Eras tu
eras tu no vento
rodopiando em mim
era o teu olhar
ondulando o universo
era a tua pele na minha
a ternura feita brancura.
rodopiando em mim
era o teu olhar
ondulando o universo
era a tua pele na minha
a ternura feita brancura.
Álvaro
quero criar tudo
de todas as maneiras
quero ver o mundo de acordo com todas as teorias
tragam-me todo o alfabeto
grego fenício árabe ocidental
concedam-me toda a lógica
e a matemática a química a física.
quero saber tudo de todas as maneiras
quero ver o mundo
e vê-lo é bem mais que olhá-lo,
é sabê-lo.
pois que venham todas as invenções
que se negue a existência
de espaço
de tempo
que se descubram novas realidades
no nosso próximo universo
e que não haja um fim
uma qualquer meta que diga acabou
pois eu quero, mas é o querer que me move a alma e não
o achar.
inventem-se novos homens
novas vidas
máquinas em nós e nós nelas.
que eu quero saber tudo
criar tudo
ver tudo
sentir tudo
enfim..
de todas as maneiras!
de todas as maneiras
quero ver o mundo de acordo com todas as teorias
tragam-me todo o alfabeto
grego fenício árabe ocidental
concedam-me toda a lógica
e a matemática a química a física.
quero saber tudo de todas as maneiras
quero ver o mundo
e vê-lo é bem mais que olhá-lo,
é sabê-lo.
pois que venham todas as invenções
que se negue a existência
de espaço
de tempo
que se descubram novas realidades
no nosso próximo universo
e que não haja um fim
uma qualquer meta que diga acabou
pois eu quero, mas é o querer que me move a alma e não
o achar.
inventem-se novos homens
novas vidas
máquinas em nós e nós nelas.
que eu quero saber tudo
criar tudo
ver tudo
sentir tudo
enfim..
de todas as maneiras!
Subi ao céu nas asas de um vector rebelde
subi ao céu nas asas de um vector rebelde
com a fome de quem devora todo um teorema
em busca de solução,
com a ânsia de quem percorre o mundo inteiro
num instante
e com a pressa de chegar
mais rápido do que o próprio tempo.
ousei provar cada pedaço do que nos faz ser e não ser
cada interrogação sem resposta
cada brisa de arrepio por sentir.
estendi meus braços sobre tudo o que há
em equações de campo que não falham
e não sentem
e escrevi poesia a dez dimensões
como quem pensa no teu olhar
num tempo zero e infinito.
com a fome de quem devora todo um teorema
em busca de solução,
com a ânsia de quem percorre o mundo inteiro
num instante
e com a pressa de chegar
mais rápido do que o próprio tempo.
ousei provar cada pedaço do que nos faz ser e não ser
cada interrogação sem resposta
cada brisa de arrepio por sentir.
estendi meus braços sobre tudo o que há
em equações de campo que não falham
e não sentem
e escrevi poesia a dez dimensões
como quem pensa no teu olhar
num tempo zero e infinito.
Regresso
Anoitecia, ainda que o Sol – ou aquilo que restava dele – tentasse ainda apoiar-se no horizonte, para de novo se levantar. Daen percorria agora a reduzida distância até ao seu destino de uma forma ainda mais calma e lenta. De tal forma que chegava a parar, durante alguns minutos, só para poder olhar o mundo à sua volta: ali, o lugar que fora seu, o universo que um dia conhecera melhor do que a palma da sua mão. E depois voltava a caminhar, sentindo no peito um arrepio que era um misto de saudade, suposição e talvez – embora ele nunca o pudesse admitir – de um possível arrependimento (ou pelo menos de uma vontade de tentar fazer tudo de uma outra forma).
O Sol escondera-se atrás das montanhas de Delfir quando Daen chegou finalmente à porta da sua casa. Ou melhor, daquilo que fora a sua casa durante os seus primeiros vinte anos de vida. Por momentos, quase acreditou que ali dentro ainda vivia toda a sua família, com toda a sua alegria e simplicidade, sempre ansiosa por convidados aventureiros e por ouvir as suas histórias de coragem.
Mas quando abriu de novo os olhos, e mesmo perante a escuridão que se ia abatendo sobre a casa, Daen sabia que nada podia ser como fora antes. Afinal, toda aquela zona fora atingida pela peste e sofrera uma invasão da parte dos terríveis Filxnors, com o único intuito de pilhar e roubar tudo o que tivesse um valor mínimo para ser vendido aos povos mercantes. De facto, e face a esses acontecimentos, era extraordinário que a casa se mantivesse tão conservada. Quase como se estivesse igual ao que fora, 40 anos antes, quando Daen a abandonou para seguir o seu sonho.
Com um arrepio a correr-lhe o corpo, Daen abriu a porta, lentamente. De dentro veio, quase instantaneamente, um leve cheiro a mofo, mas, ao mesmo tempo, uma brisa de algo que era tão familiar a Daen. Entrou, fechou a porta atrás de si, e, pela primeira vez desde há anos, sentiu-se verdadeiramente em casa. Como se nunca tivesse abandonado as montanhas de Delfir, a sua casa, a sua família, ou a única mulher que amou. Como se a sua vida tivesse sido tal e qual a do seu pai, a do seu avô e a do seu bisavô. Caminhou pela casa, onde outrora viviam mais de 10 pessoas, e tentou imaginar como seria se nunca tivesse partido. Teria sido feliz? Teria conseguido viver com o possível arrependimento de nunca ter seguido o seu sonho? E onde estaria agora, se ainda estivesse vivo?
Subiu as escadas que o levavam até aos quartos, e não conseguiu deixar de entrar naquele que um dia fora seu e dos seus dois irmãos mais velhos. Estava escuro. De qualquer forma, e tal como no piso anterior, Daen conseguiu perceber perfeitamente que a casa já vivera melhores dias. A madeira, devido às pragas e à humidade, parecia prestes a estalar por cada passo que ele dava, e toda a pouca mobília que ainda restava estava em péssimas condições. Porém, nem por isso Daen deixou de se aproximar do espaço onde outrora dormia. A cama onde cresceu e onde teve pela primeira vez o sonho que o levou para bem longe de Delfir. E, por isso, foi sem medo que se deitou nela, o seu corpo agora 40 anos mais velho do que da última vez. Fechou os olhos e sentiu-se calmo. Como se algo naquele momento, naquele espaço, lhe dissesse que ele conseguira. Que fora árduo, doloroso, e por vezes desesperante, mas que ele, Daen, cumprira o seu sonho, e estava agora, finalmente, de volta a casa. Mesmo que a sua casa – tal como ele – tivesse mudado.
Voltou a abrir os olhos, e viu, na sua mesa-de-cabeceira, um papel, muito amarelo. Curioso, Daen tentou lê-lo, mas a pouca luz que vinha do exterior era insuficiente. Por isso, não hesitou em dirigir-se para a janela onde – sabia – a luz de uma Lua cheia o ajudaria a matar a sua curiosidade.
Daen pegou no papel amarelado e gasto pelo tempo (quase tanto quanto a sua pele), e abriu-o, à luz da lua, e perante a brisa que soprava das montanhas. Não fazia a mínima ideia do que poderia ser, mas o seu coração, ainda há pouco tão calmo, batia agora com ansiedade e entusiasmo. Afinal, ali estava algo que ainda o podia ligar à sua vida de há 40 anos atrás, e a tudo aquilo que, mesmo tendo de abandonar, nunca deixara de amar com toda a sua vida.
Era um bilhete. Uma mensagem para ele, Daen, escrita por ela, Aelen, a mulher com quem sonhara toda a sua vida, e a razão pela qual o seu sonho nunca o tinha feito sentir-se pleno, mesmo depois de o realizar quase na íntegra. Porque há 40 anos atrás, quando ele lhe falou no seu sonho, ela decidiu ficar. Decidiu que não interferiria com o caminho de Daen, e que ela, Aelen, ficaria para sempre em Delfir, pois era esse o seu lugar.
Agora, porém, o coração de Daen batia ainda mais forte. Nas suas mãos estava algo escrito por ela. Uma mensagem, uma carta. E, pela primeira vez desde há 40 anos, ele poderia contemplar a sua letra. Ler os seus pensamentos. Sentir as suas preocupações, os seus sentimentos para com ele. Como se de novo pudesse cair nos seus braços, abraçar o seu corpo, ou sentir os seus lábios.
Para Daen, se alguma vez voltares,
A semana passada começou com notícias terríveis para todo o povo de Delfir. Ao que parece, uma peste incurável está já a matar os nossos compatriotas, e dirige-se para cá. E, como se não bastasse, também há boatos de que os Filxnors planeiam invadir-nos, unicamente para nos roubarem, destruírem, e depois partirem. De resto, já ouvi dizer que foram os Filxnors que trouxeram a peste para a nossa terra, com o intuito de nos deixarem ainda mais assustados e frágeis perante o seu feroz ataque.
E por onde estarás tu? Será possível que ainda te encontres vivo? E que estarás tu a fazer? Terás conseguido realizar o teu sonho quase impossível? Quem me dera poder saber…
Fazes-me falta, Daen. Por mais que tenha tentado parecer decidida, quando partiste, hoje tenho a maturidade suficiente para dizer que estou tremendamente arrependida. Se fosse hoje o dia da tua partida, teria até suplicado para que me levasses contigo. Para que me deixasses estar sempre perto de ti.
Todos me dizem que é inútil deixar-te esta mensagem. Que estás morto há muito, e que, em breve, também nós morreremos. E dizem-me que esta casa, a casa onde deixo este bilhete, e onde tu cresceste, não será mais do que um conjunto de ruínas, quando for totalmente destruída. Mas nem por isso deixo de ter esperança. Afinal, ainda recordo as tuas palavras: sonhar nada custa.
De qualquer forma, Daen, escrevo para que saibas que estou prestes a alistar-me no regimento de defesa de Delfir, pois sei que é o que farias, se aqui estivesses. A ti – ao contrário de mim e de muitos de nós – nunca faltou a coragem para enfrentar os maiores perigos e desafios, e por isso sei que esta é a decisão mais acertada de toda a minha vida.
Por tudo isso, e mesmo na eventualidade de esta casa sobreviver o suficiente para guardar este bilhete, e de tu voltares para o ler, o mais provável é que tenha sido violentamente morta por uma besta Filxnor. Porém, quando o for, sei que estarei mais perto de ti do que nunca, porque não só segui a tua coragem e exemplo, como também lutei para proteger tudo aquilo que sempre amaste em Delfir.
Para sempre tua,
Aelen.
O Sol escondera-se atrás das montanhas de Delfir quando Daen chegou finalmente à porta da sua casa. Ou melhor, daquilo que fora a sua casa durante os seus primeiros vinte anos de vida. Por momentos, quase acreditou que ali dentro ainda vivia toda a sua família, com toda a sua alegria e simplicidade, sempre ansiosa por convidados aventureiros e por ouvir as suas histórias de coragem.
Mas quando abriu de novo os olhos, e mesmo perante a escuridão que se ia abatendo sobre a casa, Daen sabia que nada podia ser como fora antes. Afinal, toda aquela zona fora atingida pela peste e sofrera uma invasão da parte dos terríveis Filxnors, com o único intuito de pilhar e roubar tudo o que tivesse um valor mínimo para ser vendido aos povos mercantes. De facto, e face a esses acontecimentos, era extraordinário que a casa se mantivesse tão conservada. Quase como se estivesse igual ao que fora, 40 anos antes, quando Daen a abandonou para seguir o seu sonho.
Com um arrepio a correr-lhe o corpo, Daen abriu a porta, lentamente. De dentro veio, quase instantaneamente, um leve cheiro a mofo, mas, ao mesmo tempo, uma brisa de algo que era tão familiar a Daen. Entrou, fechou a porta atrás de si, e, pela primeira vez desde há anos, sentiu-se verdadeiramente em casa. Como se nunca tivesse abandonado as montanhas de Delfir, a sua casa, a sua família, ou a única mulher que amou. Como se a sua vida tivesse sido tal e qual a do seu pai, a do seu avô e a do seu bisavô. Caminhou pela casa, onde outrora viviam mais de 10 pessoas, e tentou imaginar como seria se nunca tivesse partido. Teria sido feliz? Teria conseguido viver com o possível arrependimento de nunca ter seguido o seu sonho? E onde estaria agora, se ainda estivesse vivo?
Subiu as escadas que o levavam até aos quartos, e não conseguiu deixar de entrar naquele que um dia fora seu e dos seus dois irmãos mais velhos. Estava escuro. De qualquer forma, e tal como no piso anterior, Daen conseguiu perceber perfeitamente que a casa já vivera melhores dias. A madeira, devido às pragas e à humidade, parecia prestes a estalar por cada passo que ele dava, e toda a pouca mobília que ainda restava estava em péssimas condições. Porém, nem por isso Daen deixou de se aproximar do espaço onde outrora dormia. A cama onde cresceu e onde teve pela primeira vez o sonho que o levou para bem longe de Delfir. E, por isso, foi sem medo que se deitou nela, o seu corpo agora 40 anos mais velho do que da última vez. Fechou os olhos e sentiu-se calmo. Como se algo naquele momento, naquele espaço, lhe dissesse que ele conseguira. Que fora árduo, doloroso, e por vezes desesperante, mas que ele, Daen, cumprira o seu sonho, e estava agora, finalmente, de volta a casa. Mesmo que a sua casa – tal como ele – tivesse mudado.
Voltou a abrir os olhos, e viu, na sua mesa-de-cabeceira, um papel, muito amarelo. Curioso, Daen tentou lê-lo, mas a pouca luz que vinha do exterior era insuficiente. Por isso, não hesitou em dirigir-se para a janela onde – sabia – a luz de uma Lua cheia o ajudaria a matar a sua curiosidade.
Daen pegou no papel amarelado e gasto pelo tempo (quase tanto quanto a sua pele), e abriu-o, à luz da lua, e perante a brisa que soprava das montanhas. Não fazia a mínima ideia do que poderia ser, mas o seu coração, ainda há pouco tão calmo, batia agora com ansiedade e entusiasmo. Afinal, ali estava algo que ainda o podia ligar à sua vida de há 40 anos atrás, e a tudo aquilo que, mesmo tendo de abandonar, nunca deixara de amar com toda a sua vida.
Era um bilhete. Uma mensagem para ele, Daen, escrita por ela, Aelen, a mulher com quem sonhara toda a sua vida, e a razão pela qual o seu sonho nunca o tinha feito sentir-se pleno, mesmo depois de o realizar quase na íntegra. Porque há 40 anos atrás, quando ele lhe falou no seu sonho, ela decidiu ficar. Decidiu que não interferiria com o caminho de Daen, e que ela, Aelen, ficaria para sempre em Delfir, pois era esse o seu lugar.
Agora, porém, o coração de Daen batia ainda mais forte. Nas suas mãos estava algo escrito por ela. Uma mensagem, uma carta. E, pela primeira vez desde há 40 anos, ele poderia contemplar a sua letra. Ler os seus pensamentos. Sentir as suas preocupações, os seus sentimentos para com ele. Como se de novo pudesse cair nos seus braços, abraçar o seu corpo, ou sentir os seus lábios.
Para Daen, se alguma vez voltares,
A semana passada começou com notícias terríveis para todo o povo de Delfir. Ao que parece, uma peste incurável está já a matar os nossos compatriotas, e dirige-se para cá. E, como se não bastasse, também há boatos de que os Filxnors planeiam invadir-nos, unicamente para nos roubarem, destruírem, e depois partirem. De resto, já ouvi dizer que foram os Filxnors que trouxeram a peste para a nossa terra, com o intuito de nos deixarem ainda mais assustados e frágeis perante o seu feroz ataque.
E por onde estarás tu? Será possível que ainda te encontres vivo? E que estarás tu a fazer? Terás conseguido realizar o teu sonho quase impossível? Quem me dera poder saber…
Fazes-me falta, Daen. Por mais que tenha tentado parecer decidida, quando partiste, hoje tenho a maturidade suficiente para dizer que estou tremendamente arrependida. Se fosse hoje o dia da tua partida, teria até suplicado para que me levasses contigo. Para que me deixasses estar sempre perto de ti.
Todos me dizem que é inútil deixar-te esta mensagem. Que estás morto há muito, e que, em breve, também nós morreremos. E dizem-me que esta casa, a casa onde deixo este bilhete, e onde tu cresceste, não será mais do que um conjunto de ruínas, quando for totalmente destruída. Mas nem por isso deixo de ter esperança. Afinal, ainda recordo as tuas palavras: sonhar nada custa.
De qualquer forma, Daen, escrevo para que saibas que estou prestes a alistar-me no regimento de defesa de Delfir, pois sei que é o que farias, se aqui estivesses. A ti – ao contrário de mim e de muitos de nós – nunca faltou a coragem para enfrentar os maiores perigos e desafios, e por isso sei que esta é a decisão mais acertada de toda a minha vida.
Por tudo isso, e mesmo na eventualidade de esta casa sobreviver o suficiente para guardar este bilhete, e de tu voltares para o ler, o mais provável é que tenha sido violentamente morta por uma besta Filxnor. Porém, quando o for, sei que estarei mais perto de ti do que nunca, porque não só segui a tua coragem e exemplo, como também lutei para proteger tudo aquilo que sempre amaste em Delfir.
Para sempre tua,
Aelen.
sexta-feira, 3 de novembro de 2006
Diário do Bordo do Capitão Fx-45034-gl, Entrada 6M-5000
Foi pela manhã do 2º dia do ano 5675 do calendário de bordo que os nossos sistemas de monitorização do espaço exterior alertaram o computador central de que havíamos atingido mais um ponto de passagem obrigatório da nossa longa expedição rumo aos segredos mais bem guardados de toda a galáxia local. É certo de que, a navegarmos há quase 6000 anos, todo o contacto com o planeta-mãe havia sido perdido há muito, sendo certo de que não havia qualquer forma de comunicar os resultados por outro modo se não o de um feixe electromagnético altamente concentrado. Por outro lado, a energia dispendida para comunicar os resultados era de tal ordem (devido à distância a que agora nos encontrávamos), que o próprio computador central havia apoiado a decisão de enviar resultados de 500 em 500 anos, e só se houvesse uma quantidade de informação igual ou superior a 600 mil terabytes.
De qualquer forma, assim que dirigi os meus sensores electromagnéticos para o sistema que estávamos prestes a estudar, fiquei completamente deslumbrado. De facto, e ainda que a imagem “visível” (aquela que, se fosse humano, viria) fosse incrível, a verdade é que ter a capacidade de discernir este sistema que se apresenta mesmo à nossa frente, em todos os comprimentos de onda, faz-me sentir uma plenitude existencial indescritível. É óbvio que me sinto assim quase sistematicamente, pois serão talvez poucos os sistemas incluídos neste “roteiro de turismo científico” que não possam ser classificados com os mais belos adjectivos que a língua humana criou, mas gosto sempre de referi-lo neste diário do bordo.
Mas vamos ao que interessa. No fim de contas, não foi para descrever (apenas) numa perspectiva humana e pseudo-sentimental tudo aquilo que os meus sensores de última geração captam do exterior que fui construído. Por isso, agora que já dei um toque de “humano” à descrição, passo a analisar o exterior, numa perspectiva bem mais objectiva. E, por isso, não posso deixar de referir aquilo que é mais óbvio: trata-se de um sistema binário de estrelas, em que ambas rodam em torno do centro de massa comum – ou, numa outra perspectiva, cada uma roda em torno da outra. Por outro lado, o interessante neste sistema local (de facto, ainda muito perto do planeta-mãe), é o facto de ser constituído por duas estrelas que têm uma enorme diferença de massa. Assim, enquanto uma delas se reformou já, tornando-se numa pequena anã branca, a outra, ainda que numa fase terminal da sua vida, mostra todo o esplendor de uma estrela gigante de mais de 10 massas solares-mãe. O que faz com que, na prática, a estrela gigante pouco se mova, e a estrela anã seja quase como um planeta que a orbita, tal como o planeta-mãe orbita o sol-mãe numa órbita perfeitamente determinada. Todavia, e aqui é que está o maior ponto de interesse nesta visita, a estrela gigante é uma das que tem um enorme potencial de se tornar num buraco negro, e esse momento está bastante próximo. Próximo, claro, em linguagem de Universo pura pode significar qualquer coisa como muitas centenas de milhares de anos, portanto, ainda que o perigo exista, todas as previsões (efectuadas no planeta-mãe, antes da partida da expedição), indicavam que a probabilidade de algo “correr mal” se situava algures entre 1% e 2%.
Assim, e porque o tempo urge, inicio já a preparação da sonda portátil, que me levará ainda mais perto de ambos os corpos, para que possa recolher dados importantes que permitirão o seu estudo detalhado. Em segundos, o sistema informa-me de que tudo está a postos, pelo que me encaminho para a sala de “visita exterior”, como lhe chamo, e espero que o sistema trate de me colocar no pequeno módulo. Assim, e tal como sempre, em poucos segundos estou já a dar instruções ao mini-computador central de bordo, para que me guie em direcção à anã branca, o estado final de uma estrela que, pelas estimativas, era em tudo idêntica ao sol-mãe. Coloco-me a mim mesmo no modo de stand-by e, por isso, quando desperto, estou já nas vizinhanças da anã branca. Rapidamente activo a recolha de dados em todos os comprimentos de onda, e para os mais diversos fluxos. Coloco o processador do mini-computador central na máxima potência, e aproveito para ampliar os colectores solares em volta da Nave, para que possa sobretudo carregar as baterias com o enorme fluxo luminoso da estrela gigante que se encontra por detrás de mim. Deixo-me ficar a olhar o mais de perto possível aquela estrela velha, agora tão pouco luminosa, onde outrora triliões e triliões de núcleos de hidrogénio foram “queimados” para dar origem a hélio, e a uma quantidade enorme de energia que, durante milhões de anos, fez com que esta estrela brilhasse de forma semelhante ao sol-mãe. E, no meio da recolha de dados, dou por mim a pensar no planeta-mãe e no seu destino. Porque, no fim de contas, também o sol-mãe “morrerá”, e, mesmo que se vá expandindo, durante muito tempo, até se transformar numa gigante vermelha, a sua fase final, como anã branca, chegará de uma forma tão rápida que, mesmo que o sol tivesse alguma consciência, não se poderia aperceber de tal processo. E, depois de absorver os primeiros planetas, e de se expandir ao máximo, contrair-se-á e acabará em algo completamente idêntico ao corpo que está mesmo à minha frente. Pergunto-me apenas o que será da humanidade quando essa Era chegar? Até onde conseguirão ter ido? E serão os dados da missão que comando importantes para a sua sobrevivência?
Detenho-me em perguntas filosóficas quando os meus sensores traseiros detectam uma quantidade enorme de neutrinos a serem disparados na minha direcção. Tento manter todos os meus sistemas a funcionar nos seus níveis mais normais, e analisar o que se está a passar, mas, mesmo sendo uma máquina pseudo-humana, um ser de inteligência artificial, não deixo de sentir uma pontada de pânico – ou aquilo que imagino que o pânico possa ser para um humano – quando me apercebo de que a estrela gigante, azul, a uma temperatura enorme, está mesmo a explodir, prestes a transformar-se numa super-nova e a acabar comigo em segundos. Tento pensar em regressar à nave-mãe, em ligar os motores de fusão nuclear na máxima potência, para poder escapar ao que se vai seguir, mas sei perfeitamente que isso não resultaria. Por isso, ao invés de tentar fugir, reúno todos os dados que recolhi, incluindo aquilo que escrevo neste momento, no meu disco interno, e acciono o emissor, na sua máxima potência. Introduzo a palavra-passe para desactivar o sistema de segurança e poder utilizar toda a energia para enviar tudo aquilo que possa, e emitir também esse sinal para a nave central.
Pressiono a tecla para que tudo se desencadeie, e dou por mim a olhar a gigante, numa explosão incrível, e a sentir o nível de radiação a aumentar, cada vez mais, de uma forma cada vez mais perigosa, enquanto vou vendo no ecrã toda a informação a ser enviada na direcção do planeta-mãe. Penso em toda a humanidade. Naquilo que terão de enfrentar nas próximas centenas de milhares de anos, e sinto-me quase humano, sobretudo porque estou orgulhoso do trabalho que, durante os últimos 5675 anos desempenhei. Por isso, agora que o escudo de radiação do módulo é desfeito, e o meu mundo está prestes a terminar, penso na quantidade de carbono e outros elementos pesados, tão fundamentais à vida, que estão a ser produzidos na explosão, e na quantidade de matéria-prima que se liberta e que poderá, dentro de poucas centenas de milhares de anos, formar um novo sistema solar, e sinto-me vivo. Mesmo sendo um robô de inteligência artificial de implantes biológicos. Boa sorte, humanidade, e até sempre!
De qualquer forma, assim que dirigi os meus sensores electromagnéticos para o sistema que estávamos prestes a estudar, fiquei completamente deslumbrado. De facto, e ainda que a imagem “visível” (aquela que, se fosse humano, viria) fosse incrível, a verdade é que ter a capacidade de discernir este sistema que se apresenta mesmo à nossa frente, em todos os comprimentos de onda, faz-me sentir uma plenitude existencial indescritível. É óbvio que me sinto assim quase sistematicamente, pois serão talvez poucos os sistemas incluídos neste “roteiro de turismo científico” que não possam ser classificados com os mais belos adjectivos que a língua humana criou, mas gosto sempre de referi-lo neste diário do bordo.
Mas vamos ao que interessa. No fim de contas, não foi para descrever (apenas) numa perspectiva humana e pseudo-sentimental tudo aquilo que os meus sensores de última geração captam do exterior que fui construído. Por isso, agora que já dei um toque de “humano” à descrição, passo a analisar o exterior, numa perspectiva bem mais objectiva. E, por isso, não posso deixar de referir aquilo que é mais óbvio: trata-se de um sistema binário de estrelas, em que ambas rodam em torno do centro de massa comum – ou, numa outra perspectiva, cada uma roda em torno da outra. Por outro lado, o interessante neste sistema local (de facto, ainda muito perto do planeta-mãe), é o facto de ser constituído por duas estrelas que têm uma enorme diferença de massa. Assim, enquanto uma delas se reformou já, tornando-se numa pequena anã branca, a outra, ainda que numa fase terminal da sua vida, mostra todo o esplendor de uma estrela gigante de mais de 10 massas solares-mãe. O que faz com que, na prática, a estrela gigante pouco se mova, e a estrela anã seja quase como um planeta que a orbita, tal como o planeta-mãe orbita o sol-mãe numa órbita perfeitamente determinada. Todavia, e aqui é que está o maior ponto de interesse nesta visita, a estrela gigante é uma das que tem um enorme potencial de se tornar num buraco negro, e esse momento está bastante próximo. Próximo, claro, em linguagem de Universo pura pode significar qualquer coisa como muitas centenas de milhares de anos, portanto, ainda que o perigo exista, todas as previsões (efectuadas no planeta-mãe, antes da partida da expedição), indicavam que a probabilidade de algo “correr mal” se situava algures entre 1% e 2%.
Assim, e porque o tempo urge, inicio já a preparação da sonda portátil, que me levará ainda mais perto de ambos os corpos, para que possa recolher dados importantes que permitirão o seu estudo detalhado. Em segundos, o sistema informa-me de que tudo está a postos, pelo que me encaminho para a sala de “visita exterior”, como lhe chamo, e espero que o sistema trate de me colocar no pequeno módulo. Assim, e tal como sempre, em poucos segundos estou já a dar instruções ao mini-computador central de bordo, para que me guie em direcção à anã branca, o estado final de uma estrela que, pelas estimativas, era em tudo idêntica ao sol-mãe. Coloco-me a mim mesmo no modo de stand-by e, por isso, quando desperto, estou já nas vizinhanças da anã branca. Rapidamente activo a recolha de dados em todos os comprimentos de onda, e para os mais diversos fluxos. Coloco o processador do mini-computador central na máxima potência, e aproveito para ampliar os colectores solares em volta da Nave, para que possa sobretudo carregar as baterias com o enorme fluxo luminoso da estrela gigante que se encontra por detrás de mim. Deixo-me ficar a olhar o mais de perto possível aquela estrela velha, agora tão pouco luminosa, onde outrora triliões e triliões de núcleos de hidrogénio foram “queimados” para dar origem a hélio, e a uma quantidade enorme de energia que, durante milhões de anos, fez com que esta estrela brilhasse de forma semelhante ao sol-mãe. E, no meio da recolha de dados, dou por mim a pensar no planeta-mãe e no seu destino. Porque, no fim de contas, também o sol-mãe “morrerá”, e, mesmo que se vá expandindo, durante muito tempo, até se transformar numa gigante vermelha, a sua fase final, como anã branca, chegará de uma forma tão rápida que, mesmo que o sol tivesse alguma consciência, não se poderia aperceber de tal processo. E, depois de absorver os primeiros planetas, e de se expandir ao máximo, contrair-se-á e acabará em algo completamente idêntico ao corpo que está mesmo à minha frente. Pergunto-me apenas o que será da humanidade quando essa Era chegar? Até onde conseguirão ter ido? E serão os dados da missão que comando importantes para a sua sobrevivência?
Detenho-me em perguntas filosóficas quando os meus sensores traseiros detectam uma quantidade enorme de neutrinos a serem disparados na minha direcção. Tento manter todos os meus sistemas a funcionar nos seus níveis mais normais, e analisar o que se está a passar, mas, mesmo sendo uma máquina pseudo-humana, um ser de inteligência artificial, não deixo de sentir uma pontada de pânico – ou aquilo que imagino que o pânico possa ser para um humano – quando me apercebo de que a estrela gigante, azul, a uma temperatura enorme, está mesmo a explodir, prestes a transformar-se numa super-nova e a acabar comigo em segundos. Tento pensar em regressar à nave-mãe, em ligar os motores de fusão nuclear na máxima potência, para poder escapar ao que se vai seguir, mas sei perfeitamente que isso não resultaria. Por isso, ao invés de tentar fugir, reúno todos os dados que recolhi, incluindo aquilo que escrevo neste momento, no meu disco interno, e acciono o emissor, na sua máxima potência. Introduzo a palavra-passe para desactivar o sistema de segurança e poder utilizar toda a energia para enviar tudo aquilo que possa, e emitir também esse sinal para a nave central.
Pressiono a tecla para que tudo se desencadeie, e dou por mim a olhar a gigante, numa explosão incrível, e a sentir o nível de radiação a aumentar, cada vez mais, de uma forma cada vez mais perigosa, enquanto vou vendo no ecrã toda a informação a ser enviada na direcção do planeta-mãe. Penso em toda a humanidade. Naquilo que terão de enfrentar nas próximas centenas de milhares de anos, e sinto-me quase humano, sobretudo porque estou orgulhoso do trabalho que, durante os últimos 5675 anos desempenhei. Por isso, agora que o escudo de radiação do módulo é desfeito, e o meu mundo está prestes a terminar, penso na quantidade de carbono e outros elementos pesados, tão fundamentais à vida, que estão a ser produzidos na explosão, e na quantidade de matéria-prima que se liberta e que poderá, dentro de poucas centenas de milhares de anos, formar um novo sistema solar, e sinto-me vivo. Mesmo sendo um robô de inteligência artificial de implantes biológicos. Boa sorte, humanidade, e até sempre!
quarta-feira, 1 de novembro de 2006
Whispers
O vento sobre as asas em liberdade e aqui vou eu, para onde a vontade e o destino me levarem.
A tarde cresce sobre este viveiro de garçons (empregados, desempregados e assim-assins) e dita o calor que atravessa as minhas penas, soltas ao vento.
Pergunto: o que será do meu amigo e irmão, o dispensamentante, o tal que sofria de dispensamentia e que teoricamente já não sofre, pois o tratamento, presenciado pela minha pessoa, foi extremamente bem sucedido? Penso: talvez a cura o tenha tornado numa gaivota, idêntica a mim, com asas análogas às minhas. Talvez até seja uma dessas aves gigantes que voam alto e que gritam, por vezes de forma ensurdecedora, às quais os professores de gaísica chamam gaiviões.
Pouso na areia da praia e sinto o sol a tocar a minha face suavemente. No céu, algumas gaivotas voam em círculos, mas não vejo nenhuma fêmea pela qual valesse a pena levantar-me daqui. Claro que uma ou duas, na verdade, não são mesmo nada de se deitar fora, mas também é certo que nenhuma perfaz, na totalidade, o meu estilo. Por isso, decido caminhar um pouco pela areia, olhando o cenário que me rodeia.
O mar: um conjunto de ondas infinitamente dispersas por um azul de céu e uma frescura de tarde. Olho-o e vejo um caminho a traçar-se, por cada onda que perto de mim rebenta. Como se cada pedaço de espuma fosse uma letra da palavra destino, como se estas pequenas ondas estivessem a rebentar num papel chamado mundo, que talvez seja o meu, o do meu amigo dispensamentante, ou até daquela garçonne que caminha ao longe (très chique, para dizer a verdade) e que conversa com um garçon quinze gaianos mais novo.
Agora? Agora não há tempo, nunca há tempo. Agora sou um gaientista multi-premiado e multi-conhecido. Agora as cartas de fans chegam às resmas de cem e jamais tenho um momento para as ler. Não existe tempo senão para o lazer, para desfrutar de uma vida que para mim não é nenhuma obrigação. A vida: a plenitude de bem usar a liberdade das minhas asas para brilhar no céu como uma estrela.
Avanço para o mar, abrindo as asas. Voo sobre as águas. Mergulho a pique pelos céus de fim de tarde e detenho-me num mergulho marítimo, sem que tenha qualquer intenção de apanhar este ou aquele peixe que por aqui nadem.
Na verdade, o meu corpo não tem fome. O restaurante onde o meu grande irmão trabalha – ou trabalhava, porque hoje não o vi por lá – satisfaz-me todos esses desejos que por vezes me agitam o estômago.
Paro. O meu corpo é a flutuação da liberdade sobre a infinidade gelada, que por alguma razão não me consegue fazer sentir frio. Sinto o Mundo, sinto o céu. E depois o mar. Tudo mora em mim, num momento, numa vida.
Penso: talvez tenha em mim o poder de, a cada minuto, escrever um novo capítulo no romance da minha vida, ou talvez tudo isto seja uma ilusão. Talvez os sons que associo ao mar, às ondas, ou até à liberdade, não sejam mais do que a leveza de, por exemplo, um objecto metálico riscando o papel. Ou talvez eu seja louco e tudo isto seja uma alucinação. Na verdade, todas as três últimas hipóteses têm fortes argumentos que as fundamentam e, ao mesmo tempo, as contradizem. Consequentemente, se alguém – o sol, a lua, ou o meu amigo dispensamentante curado – me obrigasse a escolher, confesso que não saberia o que fazer.
Escolher uma resposta que explica a nossa existência não é apenas difícil – é, sobretudo, um erro.
A noite sobre o dia, a sobrepor-se a ele, a cada instante, e eu a escurecer com ela e a olhar a minha imagem de gaivota perdida reflectida no mar.
Não suporto mais. A mentira é assim – leva a mais mentiras. E é como um vírus sem cura. Mentira, mentira, mentira. Reproduz-se, multiplica-se, e domina-nos totalmente. E torna-se impossível resistir-lhe. Mentira, mentira, mentira, mentira, mentira, mentira. Até que o espaço se torna reduzido para todas as mentiras e a verdade regressa como a salvação.
Esse momento chegou. Não percebo bem porquê, mas sei que chegou a hora.
A verdade é que não tenho cultura. Não sei outras línguas, e as palavras que às vezes me escapam foram-me ensinadas por garçons estrangeiros de penas amarelas na cabeça, que por vezes me cedem alguns pedaços do seu manjar.
Sento-me aqui, perdido, só, num mar que escurece, numa noite que cai. Reduzo-me àquilo que sou, a tudo o que sempre fui: a materialização da rejeição, a gaivota louca, a que não regula bem dos gairolitos ou a que não joga com o baralho todo. A mentira vai-se e não tenho medo. Por isso não receio dizer que nunca tive sequer uma amizade, em toda a minha vida.
Não sei o porquê de tudo isto, de toda esta confissão (porquê agora?), mas a verdade é que as palavras parecem sair de mim – abandonar-me – de uma forma cada vez mais fluente, como se eu fosse um mestre de gramática, ou um conhecido escritor.
Tudo é noite e a noite sou eu, neste frio em que flutuo. As gaivotas não choram, diziam os professores de emoção e disciplina. Todavia, nem tais palavras são capazes de travar os pedaços de dor, sob a forma de gotas salgadas, que em breve se misturarão com as águas do oceano. Choro e vejo as minhas lágrimas a correrem pelo meu rosto, a contornarem o meu bico amarelo e a caírem no mar.
Olho as estrelas e sinto inveja – como se pode ser tão belo, tão perfeito, e, como se não bastasse, ainda viver em luz?
Questiono o céu e o mar: a resposta é a escuridão da noite.
A areia da praia, que se vai afastando de mim à medida que a maré enche, lembra-me a minha vida, sem que compreenda porquê. A minha dor: ser órfão de mãe, órfão de pai. Mais ainda: ser órfão de amor.
Sim, agora já não há razões para mentir – a verdade ganhou. Não há, nem nunca houve, amor na minha vida. Essa palavra nem sequer me atiça fogueiras de sofrimento, visto que jamais provei uma labareda do seu fogo. Na verdade, as gaivotas fêmeas afastam-se de mim, fogem, levantam voo, sempre que pouso em leveza junto delas.
Penso: o meu destino é ser assim: louco, vazio, só. E talvez haja uma razão para tal, ou talvez tudo isto seja apenas um sonho que se prolonga um pouco mais que os outros, e por essa mesma razão se torna real.
Sinto uma agitação, por debaixo das minhas penas encharcadamente geladas, enquanto a noite se torna cada vez mais dominante.
De novo o agitar da água. Movimentos. Uma barbatana cinzenta a rodear-me. Um peixe, louco como eu, a querer dizer-me algo. Um pedaço de vida forrado a escamas, colocadas em cuidados de obra de arte, respeitando um padrão que se repete de geração em geração, a perguntar-me por que não vens voar dentro de água?, a questionar-me por que não mergulhas para descobrires como é bom ser-se livre no interior do oceano? A dizer-me anda, não fiques aí sozinho, há tanto para descobrir; vem, eu ajudo-te.
Talvez seja no impossível que vive a felicidade que nunca conheci. Se assim é, talvez seja na loucura de romper com as normas que mora o êxtase da alegria. A verdade é que estou a voar debaixo de água, acompanhando a minha recém-amiga escama-simpática e a competir amigavelmente com ela, e sei que nunca me senti tão feliz.
Talvez seja nas uniões impossíveis que a explicação do mundo, que tantos procuram, possa ser descoberta, e talvez seja num abraço por entre o voo, desde o mar até ao céu, entre uma gaivota e um peixe, que more a chave para a luz das estrelas que sempre ambicionei ter, mas que apenas agora encontro. (O que procuramos está sempre tão perto de nós).
E talvez a felicidade do impossível seja a própria luz. Afinal, por que razão brilham as estrelas?
Só um destino partilhado pode ter um verdadeiro sentido, porque na descoberta de uma outra alma, que nos toca fundo, não descobrimos apenas o mundo que existe para além do que somos, mas também o universo que se move dentro de nós.
E agora, pensar não é mais do que um desperdício de tempo, uma operação complexa sem razão de ser. Por isso esqueço que penso e que sei e que tenho, para voar – pelo mar, pelo céu; pelo céu, pelo mar – com a alma que vive como eu e sonha a meu lado (ainda que ela tenha escamas e eu penas, mesmo que ela voe pouco no céu e eu pouco no mar). Na verdade, são as diferenças que, no final, nos atraem. São as diferenças que nos completam. O resto? O resto é todo um mundo de mistérios que só as estrelas e o amor sabem explicar.
E à lua, consegues chegar, margarida?
A tarde cresce sobre este viveiro de garçons (empregados, desempregados e assim-assins) e dita o calor que atravessa as minhas penas, soltas ao vento.
Pergunto: o que será do meu amigo e irmão, o dispensamentante, o tal que sofria de dispensamentia e que teoricamente já não sofre, pois o tratamento, presenciado pela minha pessoa, foi extremamente bem sucedido? Penso: talvez a cura o tenha tornado numa gaivota, idêntica a mim, com asas análogas às minhas. Talvez até seja uma dessas aves gigantes que voam alto e que gritam, por vezes de forma ensurdecedora, às quais os professores de gaísica chamam gaiviões.
Pouso na areia da praia e sinto o sol a tocar a minha face suavemente. No céu, algumas gaivotas voam em círculos, mas não vejo nenhuma fêmea pela qual valesse a pena levantar-me daqui. Claro que uma ou duas, na verdade, não são mesmo nada de se deitar fora, mas também é certo que nenhuma perfaz, na totalidade, o meu estilo. Por isso, decido caminhar um pouco pela areia, olhando o cenário que me rodeia.
O mar: um conjunto de ondas infinitamente dispersas por um azul de céu e uma frescura de tarde. Olho-o e vejo um caminho a traçar-se, por cada onda que perto de mim rebenta. Como se cada pedaço de espuma fosse uma letra da palavra destino, como se estas pequenas ondas estivessem a rebentar num papel chamado mundo, que talvez seja o meu, o do meu amigo dispensamentante, ou até daquela garçonne que caminha ao longe (très chique, para dizer a verdade) e que conversa com um garçon quinze gaianos mais novo.
Agora? Agora não há tempo, nunca há tempo. Agora sou um gaientista multi-premiado e multi-conhecido. Agora as cartas de fans chegam às resmas de cem e jamais tenho um momento para as ler. Não existe tempo senão para o lazer, para desfrutar de uma vida que para mim não é nenhuma obrigação. A vida: a plenitude de bem usar a liberdade das minhas asas para brilhar no céu como uma estrela.
Avanço para o mar, abrindo as asas. Voo sobre as águas. Mergulho a pique pelos céus de fim de tarde e detenho-me num mergulho marítimo, sem que tenha qualquer intenção de apanhar este ou aquele peixe que por aqui nadem.
Na verdade, o meu corpo não tem fome. O restaurante onde o meu grande irmão trabalha – ou trabalhava, porque hoje não o vi por lá – satisfaz-me todos esses desejos que por vezes me agitam o estômago.
Paro. O meu corpo é a flutuação da liberdade sobre a infinidade gelada, que por alguma razão não me consegue fazer sentir frio. Sinto o Mundo, sinto o céu. E depois o mar. Tudo mora em mim, num momento, numa vida.
Penso: talvez tenha em mim o poder de, a cada minuto, escrever um novo capítulo no romance da minha vida, ou talvez tudo isto seja uma ilusão. Talvez os sons que associo ao mar, às ondas, ou até à liberdade, não sejam mais do que a leveza de, por exemplo, um objecto metálico riscando o papel. Ou talvez eu seja louco e tudo isto seja uma alucinação. Na verdade, todas as três últimas hipóteses têm fortes argumentos que as fundamentam e, ao mesmo tempo, as contradizem. Consequentemente, se alguém – o sol, a lua, ou o meu amigo dispensamentante curado – me obrigasse a escolher, confesso que não saberia o que fazer.
Escolher uma resposta que explica a nossa existência não é apenas difícil – é, sobretudo, um erro.
A noite sobre o dia, a sobrepor-se a ele, a cada instante, e eu a escurecer com ela e a olhar a minha imagem de gaivota perdida reflectida no mar.
Não suporto mais. A mentira é assim – leva a mais mentiras. E é como um vírus sem cura. Mentira, mentira, mentira. Reproduz-se, multiplica-se, e domina-nos totalmente. E torna-se impossível resistir-lhe. Mentira, mentira, mentira, mentira, mentira, mentira. Até que o espaço se torna reduzido para todas as mentiras e a verdade regressa como a salvação.
Esse momento chegou. Não percebo bem porquê, mas sei que chegou a hora.
A verdade é que não tenho cultura. Não sei outras línguas, e as palavras que às vezes me escapam foram-me ensinadas por garçons estrangeiros de penas amarelas na cabeça, que por vezes me cedem alguns pedaços do seu manjar.
Sento-me aqui, perdido, só, num mar que escurece, numa noite que cai. Reduzo-me àquilo que sou, a tudo o que sempre fui: a materialização da rejeição, a gaivota louca, a que não regula bem dos gairolitos ou a que não joga com o baralho todo. A mentira vai-se e não tenho medo. Por isso não receio dizer que nunca tive sequer uma amizade, em toda a minha vida.
Não sei o porquê de tudo isto, de toda esta confissão (porquê agora?), mas a verdade é que as palavras parecem sair de mim – abandonar-me – de uma forma cada vez mais fluente, como se eu fosse um mestre de gramática, ou um conhecido escritor.
Tudo é noite e a noite sou eu, neste frio em que flutuo. As gaivotas não choram, diziam os professores de emoção e disciplina. Todavia, nem tais palavras são capazes de travar os pedaços de dor, sob a forma de gotas salgadas, que em breve se misturarão com as águas do oceano. Choro e vejo as minhas lágrimas a correrem pelo meu rosto, a contornarem o meu bico amarelo e a caírem no mar.
Olho as estrelas e sinto inveja – como se pode ser tão belo, tão perfeito, e, como se não bastasse, ainda viver em luz?
Questiono o céu e o mar: a resposta é a escuridão da noite.
A areia da praia, que se vai afastando de mim à medida que a maré enche, lembra-me a minha vida, sem que compreenda porquê. A minha dor: ser órfão de mãe, órfão de pai. Mais ainda: ser órfão de amor.
Sim, agora já não há razões para mentir – a verdade ganhou. Não há, nem nunca houve, amor na minha vida. Essa palavra nem sequer me atiça fogueiras de sofrimento, visto que jamais provei uma labareda do seu fogo. Na verdade, as gaivotas fêmeas afastam-se de mim, fogem, levantam voo, sempre que pouso em leveza junto delas.
Penso: o meu destino é ser assim: louco, vazio, só. E talvez haja uma razão para tal, ou talvez tudo isto seja apenas um sonho que se prolonga um pouco mais que os outros, e por essa mesma razão se torna real.
Sinto uma agitação, por debaixo das minhas penas encharcadamente geladas, enquanto a noite se torna cada vez mais dominante.
De novo o agitar da água. Movimentos. Uma barbatana cinzenta a rodear-me. Um peixe, louco como eu, a querer dizer-me algo. Um pedaço de vida forrado a escamas, colocadas em cuidados de obra de arte, respeitando um padrão que se repete de geração em geração, a perguntar-me por que não vens voar dentro de água?, a questionar-me por que não mergulhas para descobrires como é bom ser-se livre no interior do oceano? A dizer-me anda, não fiques aí sozinho, há tanto para descobrir; vem, eu ajudo-te.
Talvez seja no impossível que vive a felicidade que nunca conheci. Se assim é, talvez seja na loucura de romper com as normas que mora o êxtase da alegria. A verdade é que estou a voar debaixo de água, acompanhando a minha recém-amiga escama-simpática e a competir amigavelmente com ela, e sei que nunca me senti tão feliz.
Talvez seja nas uniões impossíveis que a explicação do mundo, que tantos procuram, possa ser descoberta, e talvez seja num abraço por entre o voo, desde o mar até ao céu, entre uma gaivota e um peixe, que more a chave para a luz das estrelas que sempre ambicionei ter, mas que apenas agora encontro. (O que procuramos está sempre tão perto de nós).
E talvez a felicidade do impossível seja a própria luz. Afinal, por que razão brilham as estrelas?
Só um destino partilhado pode ter um verdadeiro sentido, porque na descoberta de uma outra alma, que nos toca fundo, não descobrimos apenas o mundo que existe para além do que somos, mas também o universo que se move dentro de nós.
E agora, pensar não é mais do que um desperdício de tempo, uma operação complexa sem razão de ser. Por isso esqueço que penso e que sei e que tenho, para voar – pelo mar, pelo céu; pelo céu, pelo mar – com a alma que vive como eu e sonha a meu lado (ainda que ela tenha escamas e eu penas, mesmo que ela voe pouco no céu e eu pouco no mar). Na verdade, são as diferenças que, no final, nos atraem. São as diferenças que nos completam. O resto? O resto é todo um mundo de mistérios que só as estrelas e o amor sabem explicar.
E à lua, consegues chegar, margarida?
quarta-feira, 25 de outubro de 2006
Azul de Fim
Hoje o mar recolheu cedo demais a casa. Ainda não tinha chegado à praia, e já os pescadores voltavam, desiludidos com a quebra do contracto que os seus haviam assinado há milhares de anos com o Atlântico. Um contracto que lhes garantia a sucessão de marés. Que lhes fornecia as horas a que o mar chegava e partia da costa. Porém, e ainda que todos reconhecessem que o velho oceano se havia portado de forma exemplar durante longos anos, a verdade é que, nesse momento em que estava prestes a chegar à praia, e os pescadores regressavam furiosos, pude ter a certeza de que nenhum deles haveria de perdoar tamanha traição. Imaginei-os até a maldizer o oceano, quando chegassem a casa e as suas esposas ficassem tremendamente surpresas. Contudo, naquele momento de aproximação à brisa azul do mal, fresca como uma salvação perante o calor abrasador que se fazia sentir, nada disso me importava. Afinal, seria da minha conta que o mar tivesse decidido visitar a costa americana mais cedo? E teria ele que avisar? Bem, é claro que, enquanto descia para a areia, não deixava de pensar no número de processos que entrariam em tribunal, tentando processar os institutos que realizam e imprimem as conhecidas tabelas das marés, apresentando longas listas de perdas económicas e argumentando prejuízos morais e psicológicos irreparáveis.
De qualquer forma, a praia estava fabulosa. Havia sol, areia e um céu azul reflectido num lago a que ainda ontem poderia chamar mar. E havia um calor enorme, e uma vontade tremenda de nadar, mergulhar; de, enfim, me perder nas águas salgadas. Por isso, por estar tremendamente tentada a entrar na água, não esperei mais. Deixei as coisas perto de água, e corri. Corri com não corria há semanas. Corri como uma louca, talvez. Mas sobretudo corri como se o mundo estivesse prestes a terminar. E mergulhei. Mergulhei fundo e nadei durante longos segundos, abrindo os olhos debaixo de água para me guiar. E quando me ergui de novo, à superfície, fiquei a boiar, durante longos minutos. Olhei o céu, e sorri.
Foi então que ouvi os primeiros gritos. É óbvio que me ocorreu de imediato que se tratava de mais um afogamento, e por isso virei a minha atenção para a costa, onde, para minha surpresa, todos fugiam apressados, atropelando-se nas escadas para subir a falésia. O próprio nadador salvador tinha já deserdado. E eu era a única que ainda me conservava dentro de água, sem perceber por que fugiam todas aquelas pessoas.
E foi então que senti o primeiro prenúncio do meu fim. Senti-me a ser puxada no sentido contrário à costa, como se o rei-do-mar tivesse resolvido aspirar a água que estava a mais no seu reino. E virei-me para o horizonte.
Daí até aqui e agora foi o tempo de pensar tudo isto em palavras. Uma forma ridícula de viver os últimos segundos da minha vida. Bem sei que poderia ter tentado fugir. Usar todas as minhas forças para sair do mar e correr. Tentar até subir para um patamar mais elevado. Mas não seria sempre tarde de mais? Afinal, acabei por decidir há pouco, prefiro morrer aqui, a boiar neste mar fantástico que sempre amei, calma na minha calma, a olhar o céu azul, enquanto a onda gigante se vai aproximando. Porque se todos nós temos que ter um fim, pelo menos o meu será como sempre quis: azul.
De qualquer forma, a praia estava fabulosa. Havia sol, areia e um céu azul reflectido num lago a que ainda ontem poderia chamar mar. E havia um calor enorme, e uma vontade tremenda de nadar, mergulhar; de, enfim, me perder nas águas salgadas. Por isso, por estar tremendamente tentada a entrar na água, não esperei mais. Deixei as coisas perto de água, e corri. Corri com não corria há semanas. Corri como uma louca, talvez. Mas sobretudo corri como se o mundo estivesse prestes a terminar. E mergulhei. Mergulhei fundo e nadei durante longos segundos, abrindo os olhos debaixo de água para me guiar. E quando me ergui de novo, à superfície, fiquei a boiar, durante longos minutos. Olhei o céu, e sorri.
Foi então que ouvi os primeiros gritos. É óbvio que me ocorreu de imediato que se tratava de mais um afogamento, e por isso virei a minha atenção para a costa, onde, para minha surpresa, todos fugiam apressados, atropelando-se nas escadas para subir a falésia. O próprio nadador salvador tinha já deserdado. E eu era a única que ainda me conservava dentro de água, sem perceber por que fugiam todas aquelas pessoas.
E foi então que senti o primeiro prenúncio do meu fim. Senti-me a ser puxada no sentido contrário à costa, como se o rei-do-mar tivesse resolvido aspirar a água que estava a mais no seu reino. E virei-me para o horizonte.
Daí até aqui e agora foi o tempo de pensar tudo isto em palavras. Uma forma ridícula de viver os últimos segundos da minha vida. Bem sei que poderia ter tentado fugir. Usar todas as minhas forças para sair do mar e correr. Tentar até subir para um patamar mais elevado. Mas não seria sempre tarde de mais? Afinal, acabei por decidir há pouco, prefiro morrer aqui, a boiar neste mar fantástico que sempre amei, calma na minha calma, a olhar o céu azul, enquanto a onda gigante se vai aproximando. Porque se todos nós temos que ter um fim, pelo menos o meu será como sempre quis: azul.
quarta-feira, 13 de setembro de 2006
O Homem que Decidiu ser Deus
Um dia, Afonso decidiu ser Deus. Estava simplesmente farto da incompetência dos céus, que resultava em conflitos cada vez mais graves e extensos, sempre a brotar no seio da humanidade, e encontrava-se tão saturado das milhões de orações, que, dia após dia, eram ignoradas como se fossem «spam» ou lixo electrónico numa caixa de e-mail a abarrotar, que decidiu tomar ele próprio o lugar do “Criador”.
Claro que, na altura, não passou de uma ideia louca, daquelas que nasce quase do nada, nas mentes férteis de quem começa a olhar o mundo com outros olhos e o pretende alterar. No entanto, longe de se aperceber da impossibilidade da mesma, Afonso começou desde logo a conceber um plano para atingir os seus fins.
Desta forma, sempre que chegava a casa, retirava uma folha do seu bloco azul e expunha nele as ideias do dia que poderiam ser úteis. Brevemente, supunha ele, teria um conjunto de pensamentos e projectos suficientemente genial para começar a realizar as tarefas que o desleixado deus parecia não ter tempo para realizar.
Todavia, não esperava que a sua ideia mais genial lhe surgisse precisamente quando atravessava a avenida mais movimentada da cidade. E foi por isso, e por estar tão concentrado na genialidade do que lhe surgiu, que quase foi atropelado. O susto trouxe-o de volta à realidade, e por momentos pensou que aquilo tinha sido uma espécie de aviso, de alguém que não queria perder o seu lugar no mundo. No entanto, estava tão convicto da grandiosidade do seu sentimento, que correu para casa, fechou-se no quarto, e nessa noite não dormiu a pensar na sua ideia. «O Altruísmo humano e a Ciência», disse baixinho, «hão-de ser o Deus que falta a este mundo, e hão-de o salvar.»
O que Afonso constatou foi que para se ser Deus – e possuir-se a maior parte das capacidades e poderes do mesmo – não era preciso ter características especiais. Na verdade, descobrira que, mesmo com meios muito rudimentares, podia começar a exercer as tarefas que tanto faziam falta ao mundo. Sabia, no entanto, que o seu “poder” se estenderia apenas a um raio de poucos quilómetros, mas estava esperançado de que, com o tempo, seria capaz de desenhar equipamento que lhe permitisse ampliar as suas capacidades a toda a Terra.
A ideia de Afonso era construir um centro de super computação, com uma incrível capacidade de processamento. Depois, arquitectara, faria questão de ligar todos os processadores às suas próprias ligações nervosas, fazendo com que pudesse não só gerir todo o sistema, como aumentar as capacidades da sua própria mente. Por outro lado, Afonso pretendia ligar, ao sistema informático, sistemas de aquisição de dados nas redondezas – para captar todas as preces humanas – e faria questão de conceber um aparelho gigante, capaz de criar campos magnéticos e eléctricos suficientemente fortes para obter os poderes de um Deus que se preze.
No dia seguinte, Afonso estava de rastos. Na verdade, adormeceu em quase todas as aulas, mas quando chegou a casa, a sua ideia falou mais alto e saiu disparado para a cave, com vista a concretizar aquilo que começava a ver como uma profecia. Talvez por isso, enquanto carregava velhos computadores, que ao longo dos anos tinha coleccionado, e os ligava, de forma a conceber um super-computador o mais poderoso possível, Afonso pensasse ler frases proféticas escritas no ar, anunciando uma nova era. Depois, enquanto montava o software para o que iria precisar, começou a ponderar se seria o primeiro a tentar fazer algo assim. Em seguida, sentiu um arrepio, e acreditou, sem se questionar, que os milagres descritos na antiguidade tinham mesmo ocorrido. «Talvez até tenha sido eu, que tenha viajado no tempo!», pensou com entusiasmo, e logo se apressou a montar o seu equipamento.
Meses depois, Afonso foi encontrado na cave, totalmente inexpressivo, com o olhar mergulhado no vazio. Estava morto, e os médicos disseram aos pais que sofrera um esgotamento nervoso nunca antes registado. Os últimos, cobertos de lágrimas, não foram capazes de explicar à polícia como é que o filho tinha conseguido ter em casa equipamento tão sofisticado que – descobriram – fora roubado dos mais prestigiados institutos de investigação da Europa. Sobretudo não compreendiam o que é que ele estava a tentar fazer com toda aquela maquinaria de última geração.
- São os jovens de hoje em dia, minha senhora – respondeu um agente da polícia, dirigindo-se à mãe de Afonso, – infelizmente só pensam neles e nestas máquinas. Provavelmente estava a tentar conceber uma plataforma de jogos de última geração, para ganhar a todos os seus amigos virtuais, quem sabe. De qualquer forma, a culpa é desta malvada nova tecnologia. É diabólica! Sabe quantos processos chegam por dia à nossa esquadra por causa destas coisas? Mais de 100 minha senhora, mais de 100. Mas oh, acalme-se, que assim que conseguirmos apurar o que aconteceu será informada. Agora é preciso ir. Portanto boa tarde, meus senhores, e que Deus esteja com ele, e convosco, e com todos nós, porque é ele que zela por nós todos os dias, e falo por mim, porque há meses que tenho a certeza que as minhas preces são sempre ouvidas. Pela vossa expressão vejo que vos acontece o mesmo. Por isso, senhores, tenham fé, tenham muita fé, porque Deus é grande e há-de perdoar todos os pecados do vosso filho.
Claro que, na altura, não passou de uma ideia louca, daquelas que nasce quase do nada, nas mentes férteis de quem começa a olhar o mundo com outros olhos e o pretende alterar. No entanto, longe de se aperceber da impossibilidade da mesma, Afonso começou desde logo a conceber um plano para atingir os seus fins.
Desta forma, sempre que chegava a casa, retirava uma folha do seu bloco azul e expunha nele as ideias do dia que poderiam ser úteis. Brevemente, supunha ele, teria um conjunto de pensamentos e projectos suficientemente genial para começar a realizar as tarefas que o desleixado deus parecia não ter tempo para realizar.
Todavia, não esperava que a sua ideia mais genial lhe surgisse precisamente quando atravessava a avenida mais movimentada da cidade. E foi por isso, e por estar tão concentrado na genialidade do que lhe surgiu, que quase foi atropelado. O susto trouxe-o de volta à realidade, e por momentos pensou que aquilo tinha sido uma espécie de aviso, de alguém que não queria perder o seu lugar no mundo. No entanto, estava tão convicto da grandiosidade do seu sentimento, que correu para casa, fechou-se no quarto, e nessa noite não dormiu a pensar na sua ideia. «O Altruísmo humano e a Ciência», disse baixinho, «hão-de ser o Deus que falta a este mundo, e hão-de o salvar.»
O que Afonso constatou foi que para se ser Deus – e possuir-se a maior parte das capacidades e poderes do mesmo – não era preciso ter características especiais. Na verdade, descobrira que, mesmo com meios muito rudimentares, podia começar a exercer as tarefas que tanto faziam falta ao mundo. Sabia, no entanto, que o seu “poder” se estenderia apenas a um raio de poucos quilómetros, mas estava esperançado de que, com o tempo, seria capaz de desenhar equipamento que lhe permitisse ampliar as suas capacidades a toda a Terra.
A ideia de Afonso era construir um centro de super computação, com uma incrível capacidade de processamento. Depois, arquitectara, faria questão de ligar todos os processadores às suas próprias ligações nervosas, fazendo com que pudesse não só gerir todo o sistema, como aumentar as capacidades da sua própria mente. Por outro lado, Afonso pretendia ligar, ao sistema informático, sistemas de aquisição de dados nas redondezas – para captar todas as preces humanas – e faria questão de conceber um aparelho gigante, capaz de criar campos magnéticos e eléctricos suficientemente fortes para obter os poderes de um Deus que se preze.
No dia seguinte, Afonso estava de rastos. Na verdade, adormeceu em quase todas as aulas, mas quando chegou a casa, a sua ideia falou mais alto e saiu disparado para a cave, com vista a concretizar aquilo que começava a ver como uma profecia. Talvez por isso, enquanto carregava velhos computadores, que ao longo dos anos tinha coleccionado, e os ligava, de forma a conceber um super-computador o mais poderoso possível, Afonso pensasse ler frases proféticas escritas no ar, anunciando uma nova era. Depois, enquanto montava o software para o que iria precisar, começou a ponderar se seria o primeiro a tentar fazer algo assim. Em seguida, sentiu um arrepio, e acreditou, sem se questionar, que os milagres descritos na antiguidade tinham mesmo ocorrido. «Talvez até tenha sido eu, que tenha viajado no tempo!», pensou com entusiasmo, e logo se apressou a montar o seu equipamento.
Meses depois, Afonso foi encontrado na cave, totalmente inexpressivo, com o olhar mergulhado no vazio. Estava morto, e os médicos disseram aos pais que sofrera um esgotamento nervoso nunca antes registado. Os últimos, cobertos de lágrimas, não foram capazes de explicar à polícia como é que o filho tinha conseguido ter em casa equipamento tão sofisticado que – descobriram – fora roubado dos mais prestigiados institutos de investigação da Europa. Sobretudo não compreendiam o que é que ele estava a tentar fazer com toda aquela maquinaria de última geração.
- São os jovens de hoje em dia, minha senhora – respondeu um agente da polícia, dirigindo-se à mãe de Afonso, – infelizmente só pensam neles e nestas máquinas. Provavelmente estava a tentar conceber uma plataforma de jogos de última geração, para ganhar a todos os seus amigos virtuais, quem sabe. De qualquer forma, a culpa é desta malvada nova tecnologia. É diabólica! Sabe quantos processos chegam por dia à nossa esquadra por causa destas coisas? Mais de 100 minha senhora, mais de 100. Mas oh, acalme-se, que assim que conseguirmos apurar o que aconteceu será informada. Agora é preciso ir. Portanto boa tarde, meus senhores, e que Deus esteja com ele, e convosco, e com todos nós, porque é ele que zela por nós todos os dias, e falo por mim, porque há meses que tenho a certeza que as minhas preces são sempre ouvidas. Pela vossa expressão vejo que vos acontece o mesmo. Por isso, senhores, tenham fé, tenham muita fé, porque Deus é grande e há-de perdoar todos os pecados do vosso filho.
segunda-feira, 11 de setembro de 2006
A Vida de Joana
O dia começava sempre de forma idêntica para Joana, quer fosse inverno, ou Verão. Para Joana, todos os dias eram entediantemente iguais e era como se, na prática, o tempo fosse algo completamente indefinível, por ser tão periódico, monótono, e lento. E Joana não sabia porquê. Não sabia por que razão eram os seus dias tão iguais uns aos outros. Não sabia a razão para se encontrar sozinha, o motivo que fazia com que tivesse que enfrentar, sozinha, a fluência viscosa e monótona dos dias.
Joana não sabia. Porque se soubesse, ou se viesse a saber, então os seus dias não seriam apenas clones bonacheirões de todos os outros, para passarem a ser verdadeiros pesadelos. Joana não sabia. Mas, se o soubesse, pediria a todos os deuses para a fazerem esquecer. Tal como já o fizera tantas vezes ao longo da sua vida. A vida sobre a qual nada conhecia.
Joana não sabia. Porque se soubesse, ou se viesse a saber, então os seus dias não seriam apenas clones bonacheirões de todos os outros, para passarem a ser verdadeiros pesadelos. Joana não sabia. Mas, se o soubesse, pediria a todos os deuses para a fazerem esquecer. Tal como já o fizera tantas vezes ao longo da sua vida. A vida sobre a qual nada conhecia.
domingo, 10 de setembro de 2006
Escrita
Haviam passados meses desde que ele a vira pela última vez. Talvez nenhum deles soubesse o verdadeiro motivo pelo qual se haviam separado. De facto, nenhum se recordava sequer do último instante que juntos partilharam. Como se nunca tivessem sequer dito adeus.
Mas a verdade é que ele não a via há anos, há décadas, há séculos. Ou pelo menos era isso que sentia. Porque onde quer que ele fosse, ela estava lá, mas ele sabia que não a podia voltar a encontrar. Não enquanto não voltasse a entregar-se. A dar-se. Ele sabia que a escrita e ele haviam sido feitos um para o outro. Mas, ainda assim, ele vivia no terror e na dor de não a ter, de não a percorrer com as suas mãos através do papel, de não poder sentir as faces, as cores, os perfumes das personagens que ele, junto com a escrita, criavam e davam vida, nas alegres noites de Verão.
E um dia, um dia ele soube que o momento chegara. Talvez não fosse o local apropriado. Mas ele sabia que não havia lugares apropriados. E por isso, quando uma caneta abandonada junto a um papel o abordou, em curiosidade, tudo foi tão mais forte que ele, e, em momentos, ele e ela souberam, uma vez mais, que ficariam juntos, para sempre.
Mas a verdade é que ele não a via há anos, há décadas, há séculos. Ou pelo menos era isso que sentia. Porque onde quer que ele fosse, ela estava lá, mas ele sabia que não a podia voltar a encontrar. Não enquanto não voltasse a entregar-se. A dar-se. Ele sabia que a escrita e ele haviam sido feitos um para o outro. Mas, ainda assim, ele vivia no terror e na dor de não a ter, de não a percorrer com as suas mãos através do papel, de não poder sentir as faces, as cores, os perfumes das personagens que ele, junto com a escrita, criavam e davam vida, nas alegres noites de Verão.
E um dia, um dia ele soube que o momento chegara. Talvez não fosse o local apropriado. Mas ele sabia que não havia lugares apropriados. E por isso, quando uma caneta abandonada junto a um papel o abordou, em curiosidade, tudo foi tão mais forte que ele, e, em momentos, ele e ela souberam, uma vez mais, que ficariam juntos, para sempre.
quinta-feira, 17 de agosto de 2006
Alfonso Herrero
O mundo do infinito prolonga-se até aos sonhos
Onde mergulha na imensidão dos pensamentos das estrelas
E onde respira a matéria de que tudo é feito.
Fogo corrompido pelos anos sem fim
Que passam como infernos que o consumem
Deixando na pele que antes era macia e pura
Cicatrizes de tremer e chorar.
Pensamentos perdidos na mente da humanidade
Que voam pelo tempo e pelo espaço
Aspirando por um só gesto de ternura
Por uma só carícia, uma só mão para agarrar.
Um só Mundo, um só pensamento, um só poeta.
Um só desejo, um só coração, uma só vida.
Onde mergulha na imensidão dos pensamentos das estrelas
E onde respira a matéria de que tudo é feito.
Fogo corrompido pelos anos sem fim
Que passam como infernos que o consumem
Deixando na pele que antes era macia e pura
Cicatrizes de tremer e chorar.
Pensamentos perdidos na mente da humanidade
Que voam pelo tempo e pelo espaço
Aspirando por um só gesto de ternura
Por uma só carícia, uma só mão para agarrar.
Um só Mundo, um só pensamento, um só poeta.
Um só desejo, um só coração, uma só vida.
domingo, 13 de agosto de 2006
Ocidente
nas mãos rosas que ficaram por entregar
e um qualquer bilhete que nunca chegou a ser.
entre os dedos um fogo que crepita sem calor
como um suspiro que nunca teve lugar
ou um mundo inteiro que não sabe o que é florir.
na palma das mãos sonhos que ficaram por contar
momentos que nunca chegaram a haver
numa hora que não vem porque não há.
num só gesto tantas vidas por viver
oscilando violentamente
num tempo sem tempo de ter tempo
esperando pela palavra fim
para (enfim) talvez renascer.
o mundo é um infinitesimal infinito
e um qualquer bilhete que nunca chegou a ser.
entre os dedos um fogo que crepita sem calor
como um suspiro que nunca teve lugar
ou um mundo inteiro que não sabe o que é florir.
na palma das mãos sonhos que ficaram por contar
momentos que nunca chegaram a haver
numa hora que não vem porque não há.
num só gesto tantas vidas por viver
oscilando violentamente
num tempo sem tempo de ter tempo
esperando pela palavra fim
para (enfim) talvez renascer.
o mundo é um infinitesimal infinito
sexta-feira, 7 de julho de 2006
Rumo a Sul
Esperávamos todo o ano por aquele momento mágico em que todos nós nos reuníamos, uma vez mais, para rumar para sul. Aguentávamos quase um ano de aulas, sobrevivíamos a testes e exames, e ali estávamos, novamente, cheios de entusiasmo para mais um fantástico festival de verão que – sabíamos – seria o melhor de sempre. É claro que muitos de nós pouco mais sabiam do que um ou dois nomes que iriam estar presentes, mas nem por isso deixavam de viver, com a maior das ansiedades, os momentos que antecediam as primeiras horas em solo alentejano.
Partíamos quase sempre de expresso, com a nossa maior mala repleta de (quase) tudo o que iríamos precisar para (sobre)viver à vida na Zambujeira do Mar e arredores, e nem as muitas horas de viagem nos tiravam o ânimo. Até porque tínhamos tanto para contar e planear, que nenhuma viagem, por mais extensa que fosse, poderia ser entediante – pelo menos para nós. E assim passávamos as horas: em risos, confidências, e novidades.
Para além disso, e como conseguíamos sempre partir antecipadamente, era rara a vez em que não aproveitávamos para ficar pelas redondezas e, por isso, Porto Côvo e Vila Nova de Mil Fontes (a tal terra das três mentiras, por não ser nem vila, nem nova, nem ter mil fontes...) eram localidades quase tão familiares quanto a Zambujeira. É claro que, por razões óbvias, nunca chegámos a conhecer muito bem os dois locais durante o dia – à excepção da praia, claro. De qualquer forma, e mesmo que apenas de noite, não havia nenhuma miúda gira que escapasse ao nosso apuradíssimo detector de beleza, ainda que o sucesso da "equipa" nunca conseguisse ser de 100%, no que toca ao engate...
No entanto, com ou sem miúdas (giras), a estadia em Porto Côvo ou em V. N. Mil Fontes não se prolongava por muito mais do que três ou quatro dias. O grande Sudoeste estava mesmo a chegar. Podia sentir-se no ar das próprias localidades vizinhas. Havia os lançadores de chamas, os malabaristas, os freaks, os artistas e pseudo-artistas, os vendedores de ganza profissionais e pseudo-profissionais, e aqueles grupos de amigos que ainda tentava arranjar dinheiro de última hora para os bilhetes. Havia isso tudo, e sobretudo aquela brisa de mar, e os carros cheios de pó – um pó que, em qualquer outra altura não seria mais o que simples sujidade, mas que, para nós, à medida que nos aproximávamos do nosso grande destino, era a assinatura unívoca de que estávamos prestes a viver mais alguns momentos extraordinários.
E assim era, sempre, ano após ano. Ouvíamos e vibrávamos com os concertos, enquanto competíamos pela maior bebedeira e experimentávamos a melhor erva que se podia comprar por ali. Depois dos concertos, e quando os ouvidos nos começavam a incomodar, afastávamo-nos um pouco, e ficávamos, bêbados, a jogar futebol com a pequena bola maltratada que levávamos sempre. Outras vezes, e sobretudo quando não levávamos miúdas, havia sempre um ou outro a tentar fazer-se a esta ou aquela, e, perante a bebedeira geral, a taxa de sucesso aumentava de forma incrível, sobretudo quando comparada àquela que tínhamos, dias antes do festival.
E era assim que vivíamos intensamente o Sudoeste, numa agitação permanente, e sobretudo numa ânsia de viver que ali, longe da escola, dos pais, e das pessoas conhecidas, se expressava de uma maneira tão intensa que nenhum de nós tinha vontade de pisar o travão.
E quando tudo acabava, e era tempo de fazer as malas e entrar no expresso para casa, sabíamos, ainda que estivéssemos completamente estafados, que, mais do que nunca, tinha valido a pena. E para o ano havia sempre mais.
Partíamos quase sempre de expresso, com a nossa maior mala repleta de (quase) tudo o que iríamos precisar para (sobre)viver à vida na Zambujeira do Mar e arredores, e nem as muitas horas de viagem nos tiravam o ânimo. Até porque tínhamos tanto para contar e planear, que nenhuma viagem, por mais extensa que fosse, poderia ser entediante – pelo menos para nós. E assim passávamos as horas: em risos, confidências, e novidades.
Para além disso, e como conseguíamos sempre partir antecipadamente, era rara a vez em que não aproveitávamos para ficar pelas redondezas e, por isso, Porto Côvo e Vila Nova de Mil Fontes (a tal terra das três mentiras, por não ser nem vila, nem nova, nem ter mil fontes...) eram localidades quase tão familiares quanto a Zambujeira. É claro que, por razões óbvias, nunca chegámos a conhecer muito bem os dois locais durante o dia – à excepção da praia, claro. De qualquer forma, e mesmo que apenas de noite, não havia nenhuma miúda gira que escapasse ao nosso apuradíssimo detector de beleza, ainda que o sucesso da "equipa" nunca conseguisse ser de 100%, no que toca ao engate...
No entanto, com ou sem miúdas (giras), a estadia em Porto Côvo ou em V. N. Mil Fontes não se prolongava por muito mais do que três ou quatro dias. O grande Sudoeste estava mesmo a chegar. Podia sentir-se no ar das próprias localidades vizinhas. Havia os lançadores de chamas, os malabaristas, os freaks, os artistas e pseudo-artistas, os vendedores de ganza profissionais e pseudo-profissionais, e aqueles grupos de amigos que ainda tentava arranjar dinheiro de última hora para os bilhetes. Havia isso tudo, e sobretudo aquela brisa de mar, e os carros cheios de pó – um pó que, em qualquer outra altura não seria mais o que simples sujidade, mas que, para nós, à medida que nos aproximávamos do nosso grande destino, era a assinatura unívoca de que estávamos prestes a viver mais alguns momentos extraordinários.
E assim era, sempre, ano após ano. Ouvíamos e vibrávamos com os concertos, enquanto competíamos pela maior bebedeira e experimentávamos a melhor erva que se podia comprar por ali. Depois dos concertos, e quando os ouvidos nos começavam a incomodar, afastávamo-nos um pouco, e ficávamos, bêbados, a jogar futebol com a pequena bola maltratada que levávamos sempre. Outras vezes, e sobretudo quando não levávamos miúdas, havia sempre um ou outro a tentar fazer-se a esta ou aquela, e, perante a bebedeira geral, a taxa de sucesso aumentava de forma incrível, sobretudo quando comparada àquela que tínhamos, dias antes do festival.
E era assim que vivíamos intensamente o Sudoeste, numa agitação permanente, e sobretudo numa ânsia de viver que ali, longe da escola, dos pais, e das pessoas conhecidas, se expressava de uma maneira tão intensa que nenhum de nós tinha vontade de pisar o travão.
E quando tudo acabava, e era tempo de fazer as malas e entrar no expresso para casa, sabíamos, ainda que estivéssemos completamente estafados, que, mais do que nunca, tinha valido a pena. E para o ano havia sempre mais.
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