domingo, 17 de abril de 2011

O sabor da escrita.


Não é a prática, por si só, que matura a escrita e lhe dá aquele sabor único a vida e a mar. A sal, a pimenta, a caril e a alecrim. A álcool. A água. Não é a insistência ou a persistência por si só que dá o sabor à escrita. Talvez lhe dê um certo perfume que atrai - e por um instante domina - mas não é isso, nunca é isso que salga a escrita.

O que verdadeiramente matura a escrita é a vida. Cada lágrima. Cada sorriso. Cada sonho. Cada desilusão. O mundo inteiro. Mil viagens. Lixo. limpeza.


O que matura a escrita é sentir o mundo. Ontem agora, amanhã. Desta, daquela, de todas as maneiras. Sem filtros, com filtros, com óculos, sem telecópios, aqui e além.


sábado, 16 de abril de 2011

Livros: uma espécie em vias de extinção


Será que ainda se escrevem livros a sério? Daqueles em que as palavras se criam numa dança de papel e tinta? Daqueles escritos ao luar, num beijo ao estalar da lareira, ou ao som do bater das ondas na areia?

E será que ainda se lêem livros a sério? Mão na mão, com pausas para respirar o papel, para sentir as páginas e ouvirmos a tinta no papel? Com tempo para respirar a criação de mundos e pensamento e Universos que, na verdade, nunca existirão? Ou seremos já nós mesmos, as máquinas que tanto temíamos?

Pensamentos à beira de todo o lado

I

Céu

Lá fora há vida, mas quase não há luz. Há verde. Talvez sorria a vida, lá fora. Com aquela felicidade que nos faz ser estrelas e vida e sonho. Mas está escuro. Não há sol e o céu é cinza. Escuro. Mas também não chove. Mas tu não estás aqui. Por isso está escuro. É por isso que está escuro.

II

Caledonian Crescent

Às vezes damos por nós em locais que não só não esperavamos estar, mas sobretudo lugares que nem sabiamos que existiam. Como hoje, aqui.

III

Há na força da Terra
expressa no som da água a correr como se o fosse fazer para sempre
algo profundamente atractivo. Natural.
Fascinante.

IV

Não importa que a palavra possa parecer esgotar-se. Que o cansaço pareça ganhar. De nada vale lutarmos de mais - desesperadamente, obsessivamente -, quando a luta se torna contra nós mesmos. E, às vezes, o que é preciso é respirar. Largar o peso que carregamos aos ombros e inspirar fundo. Olhar o mar, sentir o silêncio - as várias famílias e espécies de silêncio - ou o frenético buzinar do mundo. Afastarmo-nos do Universo para nos encontrarmos nele novamente. Para o podermos ver novamente. Senti-lo, cheira-lo, sabê-lo.

Por isso de nada vale a profunda inquietação. Não vale a pena gritar. De nada (ou pouco) vale seguirmos assim, nessa ânsia de chegar, de tal forma exaustos que já nem sabemos onde estamos, nem para onde vamos.

Por isso relaxa. Respira. Dá a mão a quem a estende. Estende a mão a quem precisa. Fecha os olhos e acredita. Amanhã, quando a Terra se virar novamente para o Sol, o mundo terá muitos mais sorrisos.

V

Às vezes perguntas-me
se as coincidências que por vezes chovem
são de uma água que não é daqui.
Se são fruto de um fruto
que não se fez aqui.
Por vezes há um dejá-vu
sem fim.
Um nome que retorna
um lugar que relembra.
Um mundo tão distante
e que nos é como a palma
da nossa mão.
E eu nunca te respondo verdadeiramente.
Sorrio apenas.
Sorrio, e partilho contigo
este arrepio profundo
que nos percorre o corpo
e nos explode a mente.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Antigamente


Antigamente, quando eramos pobres e in-evoluídos o suficiente para pisar a Lua e para sonhar com as estrelas, tinhamos - por vezes - visões aterradoras de um futuro que estava para vir. Uma Era dominada por robots e máquinas; um mundo em que a inteligência artificial tomaria conta do Mundo inteiro, transformando-o à sua imagem; cultivando apenas eficácia, produtividade, perfeição, crescimento (viva o FMI!). Sem espaço para a arte, ou a paixão. Sem espaço para um pôr-do-sol, ou uma noite quente de Verão.


E estávamos certos. Essa Era chegou, finalmente. Mas, ao mesmo tempo, errámos completamente. Não nas consequências, mas nos intervenientes. Porque neste mundo onde já não se pode nem deve sonhar; onde a produtividade e dedicação totais às actividades económicas é o que mais importa, e onde não há espaço para humanos, não existem robots de inteligência artificial avançada. Existem, isso sim, humanos de inteligência robótica. Skynet chegou, e é feita por cada um de nós que i-vive rodeado por um mundo que i-há-de i-controlar-nos a itodos.

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Palavras

As palavras são algo de exraordinário. Como uma vibração que se torna uma melodia, como uma textura que se torna uma forma; as palavras não existem e, ainda assim, fazem-nos sentido. As palavras, como os gestos e os sorrisos, são as pontes que ligam essas cidades estridentes e poluídas que somos todos nós. As palavras são algo de fantástico, porque ao criarmo-las reinventamo-nos, a nós, ao mundo em que vivemos, e ao Universo inteiro que nos acolhe e rodeia.

segunda-feira, 28 de março de 2011

O Regresso a Guinsberg

Guinsberg, data e hora desconhecidas

Ainda não acredito que consegui. Ao princípio pensei que fosse realmente como nos romances do Afonso, em que quando se morre se vai para o céu, e então tudo é como nas nossas memórias – límpido, cristalino, perfeito. Mas não. Tudo isto é real e é Guinsberg. Guinsberg, novamente! Guinsberg, finalmente!

Ainda assim, sinto-me como se tivesse sido atropelada (bolas, agora não consigo pensar em nada sem ser com uma analogia do século XXI!), e não consigo deixar de pensar no grito de Afonso. Afinal, aquilo que ele me contou aconteceu mesmo: o meu corpo foi destruído, mas felizmente isso só ocorreu quando a minha mente estava já bem longe. Todavia, sei que o Afonso acabará por descobrir que não morri, e que fui bem sucedida, no regresso a Guinsberg. No fim de contas, não foi essa a ideia que ele me transmitiu, quando me visitou, a partir do futuro? Foi, não foi? (E se isso não for verdade? E se o Afonso apenas me disse aquilo porque não queria que eu alterasse a minha vida e as minhas opções por ele? E se nunca mais nos voltarmos a encontrar?). Calo a voz da reflexão por agora, e concentro-me no mais importante, naquilo que ocupou tantas horas do meu pensamento desde que fui transferida para o Universo de Afonso: Guinsberg. Na prática, o mais importante é voltar para o computador central, até porque estou a utilizar um corpo falso, que gerei quando cheguei a Guinsberg e que, por isso, não possui qualquer nanorobô.

Caminho por uma rua da cidade, e de novo me maravilho com a perfeição Guinsberguiana, embora sejam poucos os carros que deslizam agora, ao longo dos carris magnéticos que não se vêem. Quanto a mim, tento encontrar algum ponto de vigilância central, com vista a comunicar com o computador central, mas, aparentemente, não consigo encontrar nenhum. Por momentos preocupo-me, por temer a vitória dos rebeldes, mas, ao aperceber-me da incrível ordem que se expressa por toda a parte, apercebo-me de que isso não pode ter acontecido.
Marcho durante alguns minutos, e começo a ficar preocupada, quando verifico que os pontos de vigilância permanentes estão todos no modo stand-by (porquê?). Quando olho à volta, acabo por descobrir que estou perto de um centro de teletransporte taquiónico. Por isso, excitada com a minha descoberta, entro rapidamente na unidade, através da introdução de um código secreto – a que tive acesso quando passei a integrar a missão de resistência – e dirijo-me, sem demoras, até ao teleportador. Para isso, vejo-me forçada a atravessar pelo menos uma dezena de corredores, até atingir a plataforma, todos eles absolutamente desertos e silenciosos. Quando estou prestes a atingi-la, há algo que me chama a atenção, no exterior. Ouço um ruído estranho, e a minha mente, treinada, nos últimos dias, para reagir a todos os estímulos, por mais primitivos que sejam, dirige rapidamente a minha atenção para a janela.
O que vejo, faz-me tremer profundamente, e recuar, até isso deixar de ser possível. Porque lá fora há um cenário assustador…

Lisboa, 40500 a.D.

Finsk tinha toda a razão quando disse que o cocktail que iríamos beber era o mais forte de sempre. E que o diga a minha cabeça, que ainda não parou de se queixar desde que acordei. Felizmente, parece que não fiquei inconsciente por muito mais do que alguns minutos, mas, ainda assim, não posso perder tempo: é preciso concretizar o propósito que me trouxe até aqui. Preciso de encontrar tecnologia gravitacional – nem que seja um mero protótipo que ainda não esteja a ser desenvolvido. Só esse tipo de tecnologia – e nas mãos de Finsk – pode ajudar Natasha a voltar a Guinsberg…
O mais estranho é que este lugar não tem nada que ver com os filmes de ficção científica. Quer dizer, pelo menos com aqueles que têm por objectivo mostrar um futuro aterrador, no qual a tecnologia conseguiu destruir o mundo inteiro, e onde tudo é fumo, lixo e destruição. Até porque – garanto – há muito que não estava num local tão verde e tão limpo. Como se aqui nem sequer existisse uma civilização humana (sinto um arrepio, mas depois calo os meus próprios pensamentos).
Decido caminhar um pouco, depois de fazer umas roupas improvisadas com algumas folhas. Afinal, para quê preocupar-me? Devo estar num parque natural, só isso. Num futuro avançado, de certeza que será facílimo conceber algo como o que estou a presenciar, num abrir e fechar de olhos (certo?). Todavia, a verdade é que este parque parece não ter fim. Para onde quer que olhe há apenas um conjunto enorme de árvores, e todas com a mesma forma, tamanho e disposição, de maneira que parece impossível conseguir obter um bom ponto de referência. Felizmente é de dia, e o sol ainda vai demorar a pôr-se, o que me confere uma vantagem preciosa em termos de orientação. Ainda que pareça um pouco mais laranja do que seria de esperar (será que viajei assim tanto no tempo para me conseguir aperceber da diferença de actividade do sol?).
Ainda me sinto um pouco zonzo do cocktail de Finsk, mas, lentamente, apercebo-me de que as minhas capacidades mentais se vão restabelecendo totalmente. Por isso, agora que me começo a enervar seriamente com a quantidade aparentemente infinita de árvores, paro, e tento perceber o que é que continua a não fazer sentido para mim. Coço a cabeça, e, quando me apercebo de algo elementar, quase tenho vontade de bater com a cabeça contra todos estes troncos de árvore. Afinal, viajei no tempo, e não no espaço, pelo que tenho de estar em Lisboa… Mas onde está a cidade? Será possível que o futuro a tenha apagado do mapa?
Será que o cocktail de Finsk é assim tão forte para me ter levado para lá do limiar da extinção humana? É verdade que não encontro qualquer sinal de actividade humana, mas tudo me parece demasiado ordenado… como se tivesse sido concebido por uma inteligência que só pode dever-se à acção humana. Por outro lado, será que Finsk se enganou na fórmula, e fui enviado para um passado distante, em que Lisboa era ainda uma terra virgem?

sábado, 26 de março de 2011

Não é o Mundo que Precisa de Mudança - somos nós!

Por vezes tornamo-nos de tal forma obcecados com a "necessidade de mudar" para "melhorar" que nem sequer nos apercebemos que o verdadeiro problema é a constante tentativa de mudança. "Sejamos sinceros" (para dar um tom mais sério à coisa): um mundo melhor, mais justo, capaz de dar respostas e estimular (e promover) os nossos sonhos e felicidade não é um mundo que muda de mês a mês, de ano a ano. É como achar que alguém pode conseguir bater o record dos 100m quando a meta está sempre num sítio diferente - por vezes com obstáculos, outras vezes com poças de águas; umas vezes com vento, outras vezes sob uma chuva intensa. A sério: quando é que nos vamos aperceber de que não é a "mudança" que vai "mudar" (para "melhor") o mundo em que vivemos? Não há problema nenhum num mundo que muda lenta e muito mais naturalmente - quem tem que ir mudando muito mais somos nós - as nossas atitudes, a nossa motivação, a nossa capacidade de entre-ajuda. Já chega de mudarmos as regras a cada segundo que passa - não são regras fantásticas que fazem um mundo fantástico. Não são leis e "reformas" bestiais que fazem um mundo bestial. O mundo faz-se de cada um de nós. Na forma como agimos. Dia após dia.

Não, o Mundo não precisa de Mudança, deixem-no em paz! (pelo menos por alguns instantes) - quem precisa de ir mudando, e com urgência, somos nós.

sábado, 12 de março de 2011

Visões de Um Outro Mundo: o início

Escolhi uma engraçada caneta amarela que me sorria da prateleira da papelaria Strings. Por momentos rodei-a na minha mão, e não resisti a comprá-la. Quando dei por mim, caminhava já pela rua do Ouro, olhando o céu como uma criança que o vê pela primeira vez.

Ao princípio neguei por completo a possibilidade que se pintava na minha mente, por cada vez que me deparava com a caneta amarela recém-comprada. Achava ridículo um objecto poder ter tamanha influência sobre alguém, ao ponto de me fazer sentir actuado por uma força inexplicável. Contudo, ao fim de duas semanas, cheguei à conclusão de que era inevitável ceder ao aparente capricho da caneta. Ela fora feita para criar.

Por mais idiota que possa parecer, foi assim que iniciei esta coisa (primeiro chamei-lhe conto, agora já nem sei o que é), depois de um qualquer exercício de campos electromagnéticos me ter cansado a mente. Peguei em folhas totalmente virgens, inspirei fundo, e, como um verdadeiro explorador do século XV, mergulhei no desconhecido da escrita. Ultimamente tinha lido bastante. Autores conhecidos. Outros nem por isso. Contudo, tais leituras mostraram-se bastante importantes, não propriamente como fontes de ideias a nível de argumento, ou até de vocabulário, mas sim como formas de descobrir o que sente alguém quando toda a vida lhe sai das mãos e vai fecundar o papel.

Na verdade, foi ao pensar nisso que atribuí o primeiro título à minha prosa, que podem ler em cima. Foi assim que ele nasceu, muito antes de saber tudo o que iria ocorrer daí em diante. E não mais o quis alterar. Talvez por isso estranhem o facto de haver dois títulos. Paciência: já se devem ter apercebido de que não sou nenhum escritor a sério. O que talvez não saibam é que, desde a primeira palavra, tudo começou a mudar – a minha vida, o meu mundo, até eu próprio. Foi como se algo subitamente ganhasse vida e me invadisse sem sequer pedir autorização. A vida que surgia a partir de mim parecia tornar-se independente, a cada frase que elaborava.

Antes de iniciar esta tentativa literária, eu era um brilhante aluno de engenharia física tecnológica, e os meus sonhos expressavam-se, frequentemente, em relações quantitativas. Na verdade, todos os fenómenos que me rodeavam pareciam tão bem explicados, matematicamente, que não conseguia duvidar de Galileu, quando me sussurrava ao ouvido “o grande Livro da Natureza está escrito em linguagem matemática”.

Assim, quando me deixei seduzir pelo papel em branco, não fazia a mínima noção do que era viver uma verdadeira aventura, daquelas que nos fazem colocar tudo em causa e nos transformam totalmente. Todavia, sabia que algo em mim ansiava pela adrenalina do desconhecido. E havia também o facto de as relações matemáticas, embora belas, serem apresentadas pelos professores de uma forma muito pouco artística. Ambicionava mais.

Se soubesse as consequências que tal coragem me traria, talvez tivesse hesitado quando coloquei a minha caneta amarela entre os dedos, cedendo à sua vontade e à minha curiosidade pelo desconhecido. Porém, de nada me arrependo. Muito pelo contrário. E, claro, mesmo que o fizesse, de que me serviria, agora?

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

O Mundo.

O mundo fala uma língua que ninguém entende. Nem mesmo o próprio mundo. Sussurros suaves, quase-palavras. Olá. Adeus. Mas quem as escuta demasiado perto perde-lhes o sentido. Como um sonho lúcido que se tenta controlar e acaba. Sim, o Universo inteiro fala e diz coisas que ninguém entende: grita estrelas e murmura galáxias; canta super-novas (e solta risos em planetas). E às vezes, às vezes prende-se num silêncio de escuridão. Num momento. Na eternidade.

sábado, 23 de outubro de 2010

Tic-tac

Hoje podemos olhar o céu em vertigem,
Nas asas de uma fera de metal.
E sorrir para o algodão que atravessamos.

Cidadãos de uma sorte que não reconhecemos
Num mundo que faz tic-tac
Depressa demais.

domingo, 10 de outubro de 2010

A Esquizofrenia que Veste Sempre Tanga: Portugal, a Telenovela da Semana

Hoje em dia são muitos os documentários e séries emitidos directamente dos mais de 67 planetas espalhados pela Galáxia e que nos vão chegando a casa todos os dias. Desde os desenvolvimentos tecnológicos sem precedentes de Guinsberg, aos constantes conflitos do sistema planetário de Orion, a escolha é imensa. Esta semana, porém, decidimos analisar um dos programas que nos chega directamente do terceiro planeta do sistema solar 45-G, a Terra. Mais concretamente de uma das suas pequenas regiões: Portugal, onde o vasto elenco que lá reside protagoniza uma telenovela irónica do melhor que se pode encontrar em toda a Via Láctea. Como referiu recentemente RX-4567, o galardoado comentador-robot de telenovelas alienígenas: “os actores da telenovela Portugal são tão excepcionais que quase acreditamos que se trata, de facto, de uma sociedade em crise, quando, na verdade, vivem no seio de uma abundância do melhor que há”.


Portugal: a sociedade da Tanga quase podia ser baseada no popular romance de Firnsjkirji, “Uma Sociedade Esquizofrénica”. De facto, para Firnsjkirji, recentemente entrevistado pelo “El Galaxia”, a telenovela Portugal relata, tal como o seu livro, “uma sociedade que, embora tenha uma imensidão de recursos necessários para se desenvolver, acredita que se encontra na mais profunda crise, e essa convicção é tão forte que leva à perda de noção da realidade”. É talvez nessa ironia explícita que reside a chave para o sucesso da telenovela. “Eu acho que é uma telenovela absolutamente genial”, conta-nos o seu realizador, Marcus Lei, “a acção desenrola-se num cenário que é invejado por qualquer civilização galáctica: uma costa que cobre quase toda a área e cheia de energia, uma área com uma capacidade imensa para a agricultura e portanto capaz de alimentar toda a população sem depender do exterior, suficientes matérias primas para o desenvolvimento tecnológico e para a construção de todas as infra-estruturas necessárias, uma taxa de exposição solar diária do melhor que há no planeta, uma população saudável suficientemente numerosa e um clima que não requer gastos energéticos insustentáveis”. E, mesmo perante tudo isto, “os habitantes de Portugal estão de tal forma obcecados com o conceito de dinheiro e riqueza - uma espécie de unidade de valor completamente desregulada e sem sentido usada no planeta Terra - que acreditam que, por não terem quantidades industriais dele, estão numa profunda crise”. “Uma sociedade com um parafuso a menos, por isso o riso é garantido”, remata Marcus.

“Eu acho muito giro, porque às vezes parece um documentário da vida selvagem, sobretudo quando é aquela parte dos políticos”, conta-nos GH-45, de 5 anos, “passam a vida a discutir e a reclamar e andam sempre à procura daquela coisa do dinheiro e a pedir emprestado, para depois comprarem coisas de muito má qualidade e que já têm ou tinham. São tótós e por isso é muito giro, dá muita vontade de rir”. Portugal é uma telenovela transmitida no canal 456748 da rede Galaxy, com transmissão em directo 24 horas por dia.

domingo, 26 de setembro de 2010

Instante .

Há um livro que nos desfolha. Páginas feitas de letras que são vida. Páginas com mil dimensões. Com parágrafos do tamanho de mundos.
Há um céu que se estende para além de nós. Uma distância que sentimos infinita. Um mistério. Um sentido?
E há um instante. Há sempre um instante. Eu e tu. A cada sorriso. A cada ponto de luz. Nós. A cada respirar. Uma nova palavra, uma palavra que não serve, um ponto final. Um novo parágrafo, um começo. Um horizonte. Uma viagem.
E eu e tu estamos aqui. Somos um instante. Neste momento que talvez já tenha sido.
E nesta insignificância abraçamos o nada e sonhamos com tudo. Porque o céu é alto, tão alto que nunca o poderemos alcançar, mas nos nossos sonhos - nos nossos sonhos que duram ainda menos do que um instante - tu e eu sabemos que, juntos, um momento é suficiente para durar para sempre .

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

O silêncio das Palavras

Sempre que pegava no computador para escrever mil e uma histórias sobre os mundos que viviam no seu mundo, havia vento, havia um ruído e havia uma escuridão que apagavam a luz que, num momento, quase parecia clara. Às vezes quase pensava que a doença estava nas palavras que ele escrevia. Em si. Talvez o seu tempo tivesse passado; ou talvez nunca tivesse sequer chegado. Talvez todas as histórias que se contavam na sua mente não fossem realmente histórias que valessem a pena serem contadas (ou talvez nem estivessem realmente na sua mente). Talvez as personagens que viviam nas histórias que viviam nele não estivessem vivos. Talvez não passassem de espectros, sombras, ilusões, projecções criadas a partir de outros personagens (esses sim, vivos). Ou talvez fosse a imaginação (ou falta dela?). A idade (adulta?) transformara-a. Tornara-a rígida, exigente, metódica e, por isso, ainda que tudo parecesse como antigamente, assim que ele confrontava as ideias com as palavras, tudo se tornava cinzento, feito de sombras; um conjunto de nadas.

Mas depois pegou numa caneta velha amarela e num pedaço de papel com qualquer coisa escrita de um dos lados mas que não interessava a ninguém, e disse what the hell. Disse que se lixe, e colocou a música no máximo. Até o som ser tudo o que existia. E fechou os olhos em palavras e voou nas palavras. E no âmago de um som que tudo dominava voltou a ouvir o respirar das palavras. O silêncio das palavras. E as palavras voltaram, tão ou mais vivas do que nunca. Do que sempre. Às suas mãos.

terça-feira, 20 de julho de 2010

Sentido

Passamos vidas inteiras à procura dele. Ou pelo menos de uma das suas facetas. Nem que seja apenas um sinal da sua presença. Sentido. E sem ele sentimo-nos perdidos. Sem rumo. Como se o mundo girasse cada vez mais rápido e nos deixasse para trás. Outras vezes, porém, temos quase a certeza de que estamos perto. Muito perto. Como se conseguissemos identificar as suas pegadas e soubessemos imediatamente que foi há muito pouco tempo que elas foram dadas. Como se quase o conseguissemos agarrar, como se o seu perfume, a sua voz, a sua presença estivessem mesmo ali, ao nosso alcance.

Outras vezes - embora cada vez mais raramente - paramos para pensar. Talvez à beira-mar. Ou no meio de um campo alentejano (ok, não tem que ser alentejano, nem tem que ser campo, mas tem que ser como um campo alentejano). Às vezes somos capazes de ouvir o silêncio e de nele escutarmos apenas o que se pode escutar no silêncio: o silêncio, e a vida que em nós corre. E é talvez aí - nesses momentos cada vez mais raros (até porque, diga-se, quem é que "tem tempo [ou quem é que é capaz de parar para viver um pouco, em vez de se queixar a toda a hora e não fazer mais do que sobreviver]"?) - que somos capazes de conceber uma vida bem mais simples. Uma existência em que se vive num bem-estar com o mundo e com os outros. Num mundo em que não é preciso ser-se mais forte, mais atraente, mais rico, mais poderoso, mais desejado, ou mais talentoso. Num mundo em que não é preciso haver um alvo, um objectivo. Num mundo em que, no fim de contas, o sentido não se procura - cria-se.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

O sabor amargo das vitórias

Chamo-me Luís, e sempre que chegava em primeiro ficava de rastos. Como se o mundo inteiro me tivesse passado por cima e tudo o que restasse de mim fosse uma fina tira horizontal de carne desfeita. Cada vitória era uma ferida que nunca sarava.

Na verdade, foi ainda em pequeno que aprendi o sabor amargo do sucesso. Por sorte – diziam os meus pais – parecia ter nascido para ser um vencedor. Obrigavam-me a participar em tudo o que eram provas desportivas e – segundo eles – safava-me sempre bem. Tão bem que cheguei a ter uma parede inteira cheia de medalhas minhas, pedaços de metal que os meus pais mostravam com orgulho a todos os vizinhos que nos visitavam. Por outro lado, na escola as coisas corriam igualmente bem, ou até melhor, e choviam bolsas de estudo e prémios de quase todos os cantos.

Contudo, por cada medalha que me colocavam ao pescoço e por cada prémio que vencia, havia um sabor amargo que se tornava cada vez mais difícil de ignorar. Como se cada gota de suor que me corria pelo corpo me esfaqueasse numa violência cada vez mais intensa e essa dor crescesse continuamente em mim. E essa tortura, descobri então, provinha das faces de desilusão dos meus colegas, das suas expressões de ódio para comigo e dos olhares baixos e vencidos que tinham por causa os meus triunfos.

Desta forma, o tempo era para mim o pior inimigo. Porque trazia sempre mais olhares que desesperavam por não terem conseguido o lugar que me fora atribuído, ou a medalha que eu vencera. Por isso, um dia tomei uma decisão. Ergui-me pela manhã e decidi que havia de abandonar tudo. De que me servia o sucesso se não conseguia viver com as desilusões que a minha existência causava? De que serviam as vitórias, se a felicidade que me davam era feita de lágrimas e sofrimento?

Na noite do dia em que decidi mudar a minha vida, disse aos meus pais que nunca mais queria competir com ninguém. Disse-lhes que as vitórias me custavam demasiado e que preferia ser um perdedor para toda a vida. Nessa noite que nunca esquecerei, o meu pai, frustrado com os assuntos do trabalho, chamou-me de vergonha da família e disse-me que se fizesse isso deixaria de ser seu filho, porque estaria a desprezar tudo aquilo que conseguira com a sua ajuda. Eu olhei-o e disse-lhe que a vida se faz numa escolha e que essa é de cada um de nós e saí, sem que o deixasse ver que na minha face se esboçavam pequenas lágrimas de incerteza que só o tempo poderia secar.

Hoje, ainda que muita água tenha corrido pelo rio do tempo, sei que os meus pais continuam a não perceber por que razão me vi forçado a desistir de um caminho tão seguro. Porque eles, como quase toda a gente no mundo, esquecem-se que por cada vencedor há um derrotado, e que sempre que alguém chega mais alto, há um outro que fica pelo caminho. Por isso me custava tanto cortar a meta em primeiro, e por isso o aroma amargo que cada vitória me deixava na consciência. Porque sabia que atrás de mim ficava alguém cheio de sonhos que por minha causa se haviam desfeito na espuma da desilusão.

Agora, ao sabor do sol desta tarde de Verão, sei que finalmente ocupo o meu lugar no cosmos, porque não sou absolutamente ninguém para todas as pessoas que por mim passam. Talvez me chamem vagabundo. Talvez até me desprezem. Mas a verdade é que não há melhor situação do que a de um sem-abrigo para poder devolver a tantas pessoas os sonhos que um dia se perderam delas, ainda que tal tarefa se apresente muitas vezes como algo extraordinariamente difícil.

Agora, tantos anos depois, a vida começa finalmente a fazer sentido. E, pela primeira vez desde há muito, sinto-me verdadeiramente parte deste mundo imperfeito e sou feliz, porque vivo para a vitória de todos aqueles que sonham verdadeiramente com ela e sei que não estou só.

Doce é a medalha a que se renuncia por livre vontade.

As melhores histórias

As melhores histórias são aquelas que nascem sem destino, sem propósito. Esqueçam as histórias planeadas, encomendadas, esquematizadas. Essas podem ser aceitáveis, até boas, mas nunca serão as melhores. E as melhores histórias são também aquelas que não precisam que se diga que são as melhores -- são-no e pronto. Não há que “educar” o gosto, ou “aprender” a apreciar este ou aquele estilo - isso só se aplica às histórias mais-ou-menos, ou a tantos textos que de tão concentrados neles próprios nem sequer contam uma história. E as histórias são importantes. O conteúdo é importante. Porque sem conteúdo - e mesmo que em nome da arte - o texto perde humanidade, perde alma, perde vida; por mais que ganhe em “inovação”, ou discutível estética. Mais do que isso: os textos sem história são como pessoas que, de tão “profundas” e “intelectuais”, acabam por se tornar ou completamente inacessíveis.

Diário de uma Guinsberguiana

Guinsberg, ano 503, mês 4, dia 20

Ainda não compreendi muito bem por que razão decidi começar a escrever. Talvez devesse recorrer à unidade de cuidados mentais do computador central, contando-lhe as estranhas sensações que tenho tido, ou talvez o melhor fosse mesmo dirigir-me ao hospital de normalização, já ali ao lado. Estou certa de que qualquer uma das anteriores opções desembocaria na solução optimizada para o que sinto. Ficaria mais calma, segura de mim – poderia até voltar a olhar o mundo inteiro num sentimento de perfeição, como sempre o fiz. Mas não. Por incrível que pareça, e pela primeira vez na minha vida, acho que estou a agir contra os princípios fundamentais que tanto prezo, respeito e adoro. E talvez seja por isso que sinto uma vontade tão imensa de desabafar, de expor os meus problemas sem que me normalizem de imediato, ou me critiquem cruelmente.

Assim, aqui estou eu, Qu-4579-Al, a planar magneticamente no meu quarto e a operar sobre o meu computador quântico utilizando apenas o pensamento. Penso em ideias e palavras, e a projecção holográfica diante de mim mostra-me conjuntos de símbolos que interpreto como letras. Algo verdadeiramente ridículo. Mas nem por isso cesso de escrever. Porque no fundo de mim há algo que me fala com a voz de quem passou toda uma vida encerrado num calabouço. Há algo que deseja despertar-me. E eu cedo e deixo-me levar por este corrupio de ideias totalmente ilegais – pelo menos até o computador central de Guinsberg enviar o sinal diário para que todos iniciem as suas tarefas produtivas. Até lá são menos de duas mil batidas de coração.

Se a perfeição existe, então a sua concretização chama-se Guinsberg, a maior e mais bela cidade da galáxia Fitacita, o local onde nasci e onde resido. Onde me posso realizar totalmente trabalhando para o bem comum e sabendo que todos os sistemas trabalham o mais afincadamente possível para me manter sempre a 100%. Em Guinsberg, nada foi feito ao acaso. Embora erguida sobre um imenso pântano, há mais de 500 anos, a cidade mantém-se totalmente inalterável e na vanguarda citadina no que diz respeito às 4 galáxias plenamente colonizadas. Aqui não existe microorganismo algum que possa pôr em risco a saúde dos 250 mil milhões de habitantes que nela residem. Não só porque todos os Guinsberguianos têm direito a mais de 1 milhão de nanorobôs na sua circulação sanguínea, mas também por esses estarem em permanente contacto com a maior base de dados alguma vez concebida: o computador central de Guinsberg.

Existem tantas razões para se viver aqui que todos os dias os computadores fronteiriços da Cidade se enchem de milhões de candidaturas. Vêm maioritariamente de sistemas solares da galáxia, mas muitos – extra-galácticos – chegam a mostrar-se dispostos e percorrer todo o meio intergaláctico para se mudarem para a Cidade. Todavia, o perfeito funcionamento da cidade condiciona totalmente as novas admissões, e, nos meus 22 anos de existência, foram menos de mil aqueles que conseguiram a tão desejada cidadania Guinsberguiana.

Na verdade, o principal entrave à entrada de estrangeiros é o próprio sistema político vigente na cidade, que, pelo que sei, é único em todo o Universo. O seu ideólogo, Gh-58096-00, chamou-lhe iqualitismo-produtivismo e, desde então, não há ninguém que duvide de que ele é a concretização de uma utopia com que a minha espécie sempre sonhou. Sobretudo porque em Guinsberg não há qualquer necessidade de eleições – muito menos de políticos. Assim, a gestão de toda a cidade está a cargo do computador central, que a todo o instante inquere as milhares de milhões de mentes em Guinsberg e toma as decisões tendo em vista todas as opiniões. Por isso, só Guinsberg vive num clima verdadeiramente democrático, onde os cidadãos não precisam de fantoches intermediários para defender as suas posições, ou opiniões.

De súbito, sinto o sinal telepático do computador central a percorrer-me a mente e a fazer-me sentir uma enorme vontade de sair deste meu quarto. Por isso, desligo todo o equipamento com que escrevo, da forma mais rotineira possível, com vista a mostrar que não estive a fazer nada de ilegal e calo todos os meus pensamentos até que regresse do trabalho.

Visões de Um Outro Mundo: Cap1.2

“O fim depende sempre do início”, escreveu um pequeno extraterrestre no meu sonho, sorrindo e fitando-me, como se eu fosse o único alvo da sua afirmação em português correcto. Depois interroguei-me “mas como pode um E.T. escrever tão bem português?”, e o meu cérebro, forçado a pensar, despertou-me rapidamente. Desta forma, quando acordei, eram apenas as três dimensões da sala que me rodeavam.

Talvez seja estúpido iniciar assim o meu primeiro esboço de arte literária, mas de um amador como eu não se pode esperar muito mais. E também é verdade que a afirmação do E.T., escrita a branco sobre o negro do xisto, se agarrou tão afincadamente à minha memória que, uma semana depois do sonho, ainda a recordo como se estivesse diante dela. Por isso não consegui deixar de a referir, sabendo, contudo, que se começasse a escrever daqui a um mês, o resultado seria totalmente diferente. Paciência: fica para um outro eu.

Todavia, o facto de citar um extraterrestre atrevido não me faz escapar à constatação de que não faço a mínima ideia do que tudo isto vai tratar.

Há pouco tempo lembro-me de caminhar pela Rua Augusta e de ver na montra de uma rua paralela o livro “O Início de um Livro é Precioso”. Bem, não sei se era mesmo esse o título, mas pouco importa. Também não me recordo do autor ou autora (sou péssimo para nomes). Lembro-me, isso sim, de entrar nessa livraria, cheio de esperança de que nessas páginas estivesse a resposta à minha inquietação (quem sabe, poderia dizer-me como é que se começa um conto). Contudo, bastou-me ler algumas linhas para o meu interesse cair imediatamente para zero e, daí a um tempo de Planck (não sei se nos contos se pode esclarecer alguns leitores, mas, de qualquer forma, não hesito em explicar que o tempo de Planck, para quem não sabe, é um tempo mesmo muito, muito, muito pequeno), fiquei completamente desmotivado para o seu conteúdo.

Hoje, inicio este conjunto de palavras por escrever, e a preocupação pelo princípio parece desvanecer-se, por cada letra que pinto no papel. Sinto-me solto, até. Como se durante toda a minha vida tivesse escrito abundantemente. Por isso decido deixar-me levar pela vontade do sistema mão-caneta-mente, libertando-me de todas as preocupações – relegando-as para os críticos literários (que, como é óbvio, nunca lerão estas palavras, a não ser que gostem de perder tempo, ou então para mostrarem a autores em ascensão o tipo de texto que não devem escrever).

Parece-me a mim que, na maior parte dos contos, a personagem principal é apresentada logo nas primeiras linhas. O problema é que o meu conto ainda não tem qualquer personagem… É só palha. Mas também tem muitas letras, uma caneta amarela que parece mágica, e um físico que nem sequer é físico a armar-se em escritor. Sim, a combinação não é brilhante, mas é o que se pode arranjar.

Bem, acho que está na hora de inventar uma pessoa qualquer. Caso contrário, até eu perderei o interesse por estas páginas em branco, e nem mesmo tu – caneta amarela – conseguirás motivar-me.

Então aqui vai: olá, eu sou a Manuela, tenho 34 anos, e sou a nova personagem deste conto. Ainda não sei onde moro, porque o parvo do escritor não me deu nenhuma casa, mas no futuro gostava de dar paz ao mundo inteiro, mesmo sabendo que o mundo inteiro é só um monte de palavras ocas sem sentido. Para quem quiser votar em mim, é só ligar para o 444555322. Não posso dizer já o custo da chamada, porque o chato que me escreve ainda não sabe e não ficava bem estar a…

Agora a sério: apresento-vos Johanne Ribeiro, a verdadeira heroína desta história (ainda) sem argumento. Mas não pensem que é uma personagem qualquer. Johanne é bem diferente de todas as outras. Melhor, muito melhor. E alerto-vos já para o facto de ser uma verdadeira deusa do século XXI, daquelas que subjuga Afrodite com um simples sorriso. Ah, e morena. Sim, porque Johanne, acima de tudo, é extremamente inteligente. E mais: é estudante de doutoramento no Caltech. Para trás ficou um percurso brilhante em todos os graus académicos.

Para os interessados, ela encontra-se, de momento, livre. Teve uma relação de dois anos com um colega de curso, mas facilmente se fartou das suas paranóias, quando, nos três meses finais, passaram a viver juntos. Agora baixinho, para que não nos oiça: Johanne tem um carácter um pouco, digamos… difícil. Embora extremamente amável e amiga de todos, sofre de um certo… “síndrome de independência”. Quer isto dizer que necessita do seu próprio espaço, e precisa, sem dúvida, de se sentir rodeada por coisas que lhe digam algo. Escusado será dizer que os garanhões californianos já desistiram dela há muito. Não por ter deixado de ser apetecível, mas por ela ser, no dizer de Mr. Camarinha, “um caso particular das mulheres difíceis: uma impossível”. Claro que, no início, esse facto era um estímulo adicional à conquista de Johanne, por parte de todo o tipo de engatatões, com idades compreendidas entre os 16 e os 56. Contudo, as sucessivas derrotas fizeram a grande comunidade Camarinhae concluir, em assembleia-geral extraordinária, que Johanne ou dava para o outro lado, ou então tinha sexo matemático. Talvez por isso todos afirmem, agora, que ela não é tão espectacular quanto os seus olhos vêem – mas a verdade é que à noite todos sonham com ela.

É realmente estranho criar uma pessoa assim, de um instante para o outro. Todavia, é ainda mais impressionante a sensação que essa vida provoca em mim. Como se caminhasse para a independência. Quase como se, daqui a instantes, eu não fosse mais do que um observador da vida de Johanne Ribeiro.

Ah, mas falta ainda esclarecer esse maravilhoso apelido luso, herdado de seu pai, José Ribeiro, um português que emigrou para os Estados Unidos aos 18 anos em busca de uma fortuna “desmesuradamente grande”, como um dia referiu. Todavia, as suas expectativas saíram furadas, e José não chegou sequer à pequenina unha do pé de Bill Gates. Mas nem por isso deixa de se considerar o homem mais rico do mundo, e isto desde que Johanne nasceu, no dia 4 de Fevereiro de 1982.

E claro que a forte ligação entre José e Johanne implica muitas conversas na língua lusitana. Por isso, o português é uma das languages que a nossa heroína carrega no seu currículo, invejado por muitos jovens norte-americanos. E a verdade é que Johanne fala-o soberbamente – muito melhor do que alguns paspalhos que às vezes vão à televisão armar-se em espertos.

Por outro lado, o facto de falar tão bem a língua lusitana facilita-me bastante a vida. Isto porque, nos últimos pormenores, foi como se ela me tivesse ditado as frases e eu me limitasse a escrever tudo aquilo que ela queria.

Ouço o telemóvel e salto de susto, como se despertasse de um sonho abruptamente. Mas, no fim de contas, não é nada de especial. É apenas o meu professor de física de partículas a pedir-me para lhe entregar aquele trabalho que terminei há uma semana e que me tenho esquecido de lhe levar, consecutivamente. Claro que esse constante esquecimento seria motivo de teses de doutoramento para inúmeros psicólogos e psiquiatras, sobretudo se lhes falasse da minha estranha relação com a amarela. De qualquer maneira, a explicação para todas as peculiares sensações que agora me afectam torna-se auto-evidente quando olho para o relógio e leio “1:01”. E, de súbito, lembro-me que amanhã tenho aula de mecânica quântica pelas 9 da manhã. O mais estranho é que nem isso me dilui a excitação para a escrita. O facto de ver Johanne à minha frente, a sorrir-me, parece ser mais forte do que o mecanismo orgânico que descarrega hormonas a dizerem “vai dormir, já!”. Mas o melhor talvez seja mesmo ir para a cama. Amanhã estarei mais sóbrio e então poderei continuar este monte de lixo literário.

Depois, já na cama, pareço ouvir Johanne a dizer “boa noite”, a dizer “sleep well, sweet dreams”. Acho que preciso mesmo de descansar, sobretudo porque logo pela manhã a teoria quântica vai puxar ao máximo por todos os meus neurónios.

Até amanhã, Johanne.


Whispers

Há um silêncio lá fora que grita palavras. E as palavras são fantasmas, impacientes para ocuparem um corpo que as abrace numa história. Ali fora é noite, mas bem que podia ser manhã. Afinal, qual é a diferença, senão nos números que podemos ver no relógio? Não há quase ninguém nas ruas, é o que importa, e até a brisa parece ter ido dormir. Talvez por isso, na ausência da luz e vida lá fora, a voz das palavras se ouça melhor agora. Como se estivessem a sussurrar directamente ao ouvido.

domingo, 27 de junho de 2010

Um novo mundo, um mundo re-inventado, reciclado, ou talvez apenas olhado de forma diferente

Revolucao. Escrita num papel sem a dimensao suficiente para a conter. Num teclado que nao tem as letras necessarias para a descrever. Pensada por mentes que, sozinhas, sao incapazes de a fazer acontecer. As revolucoes acontecem todos os dias. Ha quem vibre, delire, grite face ao sucesso de uma revolucao. De uma mudanca. Mas, claro, para cada grito de alegria e esperanca, ha pelo menos um sentimento de derrota e negativismo. As revolucoes humanas, por natureza - ou pelo menos as que acabam por ser bem sucedidas - acabam por nunca ser verdadeiras solucoes; sao mais uma especie de aspirina; toma-se, rapidamente nos sentimos melhor, e ate' dura um tempinho, mas no outro dia, acordamos para verificar que os sintomas ainda la estao.

Talvez o problema seja o facto de nunca estarmos contentes. Vivemos na oscilacao ridicula de ideias, adeptos ferrenhos do clube "memoria-curta" que, pelos vistos, e' campeao nacional ano apos ano apos ano. Como se o nosso mundo fosse um barco, mas fossemos demasiado estupidos para nos distribuirmos igualmente por ele e nao o desiquilibrarmos; o que acontece, no entanto, e' que na ansia de termos mais (um carro, uma casa brutal? um lcd novo?) e mais, parece que quando o barco se comeca a virar para um lado, corremos todos para o outro, e de tal forma que passado pouco tempo ja' o barco se comeca a desiquilibrar para esse mesmo lado: hey, e' tempo de correr novamente para o outro lado. Nao deixa de ser um espectaculo com bastante potencial, mais do que nao seja para um Big Brother reles numa estacao extraterrestre.

No entanto, ainda que a maior parte dos "desiquilibrios" da nossa sociedade sejam um resultado directo do nosso proprio desiquilibrio, nao parece ser facil encontrar uma solucao para nos equilibrarmos. E volta-se a gritar revolucao. E a criticar. Afinal, hoje em dia todos gritam opinioes e coisas, e dizem coisas sobre coisas que, aparentemente, na cabeca de quem as escreve, ate' faz sentido (ainda que sejam alta e extremamente dolorosas de ler/ouvir/ver). E' absolutamente extraordinario o estado em que tantas cabecas estao, ao ponto de serem os seres mais cegos, pessimistas e, va la, ridiculamente ilogicos do mundo. Talvez seja culpa da sociedade, do acumular de frustracoes, do facto de nem toda a gente poder ter um lcd de 5 metros (mas o de 2 metros e' sagrado, nem que nao se coma para o resto do ano!), ou de nao se poder ser doutor, ou engenheiro, ou presidente da republica ou, sobretudo, por nao se poder ter la uma coisa chamada emprego que e' so dizer que se tem, receber o dinheirinho ali no banquinho e ir beber ali a bela da cervejinha.

Revolucao? Nao, a "coisa" nao vai la com nenhuma revolucao. A "coisa" nao vai la com mais caos, com mais destruicao. Afinal, o que e' que ha' para destruir que nao fosse logo construido novamente a partir do dia seguinte? Uma mudanca, a serio, digna do nome, que realmente leve a algo melhor, nao pode ser apenas como um produto de super-mercado caro: com uma embalagem fantastica e bonita, mas que, la dentro, nao tem mesmo nada de jeito.

sábado, 26 de junho de 2010

Quando as palavras saem à rua

É quando anoitece que as palavras saem à rua. Quando as ruas são conquistadas por um silêncio vazio, e não mais são um palco agitado do circo da vida, as histórias e as personagens feitas de palavras ganham vida. Timidamente, saem de casa, e dão um passo. E outro, e mais outro. Até que, no pico da noite mais escura e mais profunda, o silêncio completo que ouvimos lá fora, é a maior ilusão - feita da ilusão de palavras. As palavras, que são os corpos de princesas e príncipes, e homens e mulheres e seres e cidades que nunca foram, escrevem silêncio, silêncio, noite. E nós, cegos, absorvemo-las e temos a certeza de que tudo o que há lá fora é silêncio, e noite. Ou então nem sabemos que lá fora há silêncio e noite, porque estamos já longe, bem longe dentro de nós, a sonhar com um mundo que não este, em sonhos e sonhos e sonhos sem fim.

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Um milhão de histórias mais uma

Um dia vou escrever um milhão de histórias. Encostar-me ao tronco de uma árvore no meio da floresta, e transformar os raios de luz que pintam o espaço por entre as folhas verdes de Verão em personagens e frases e vidas. Um dia vou correr pelo mundo do faz-de-conta, e escrever histórias sobre outros mundos, com outras pessoas, com outras ideias. Histórias do que podia ser e talvez seja; mas não aqui nem agora. Contos do que o futuro talvez trouxesse, fábulas daquilo que poderia ter sido. Um dia vou sentar-me perto de um rio e escrever as lágrimas que nele correm; pintar a alegria e a tristeza; abraçar a noite para me perder na angústia do medo e morte de alguém que partiu, e sorrir em lágrimas com o pôr-do-sol de um nascimento ou regresso. Um dia vou poder sorrir a todas as minhas personagens, mesmo as que nunca existiram; mesmo as que nunca me sorriram de volta; mesmo as que acham que sou um escritor cruel. Um dia vou correr pelas palavras e não precisar de mais nada. Esquecer o corpo e o mundo que grita lá fora; colocar de parte a angústia e a ânsia de ter que chegar ao céu e respirar o azul do céu das frases feitas das palavras. Das palavras que vão construir todas as histórias, um milhão de histórias diferentes. E, no final, depois de velho e cansado, vou escrever mais uma. Antes de partir.

terça-feira, 20 de abril de 2010

Acima das nuvens, sob o papel, do outro lado do mundo - VII

A última página, o último texto. O sabor do detalhe das formas e formasa caminhar para o seu fim. A indecisão e o paradoxo. Quando a vida se esgota queremos vivê-la toda. Até à última gota, cheiro, forma, vocábulo. Quando a vida se esgota vem a morte. E a morte é como nos livros do JLP. Diz-se morte e é triste. e não há volta a dar. E agora que escrevo o último texto, no último papel, sinto como nunca a inevitabilidade da morte, da vida e de todas as outras coisas; não como bem e mal, fim e princípio, mas como um pensamento que se aproxima, ao longe, e fica cada vez mais perto, tão perto que chegamos a acreditar que o vamos conseguir atingir, perto mais perto até o tocar e sentir. Mas o papel acaba sempre quando menos se .

Acima das nuvens, sob o papel, do outro lado do mundo - VI

Há um mundo ali à frente
Sonhado. Meio colorido.
Já ali à frente.
Confuso.
Diferente.
(E o que fica para trás?)
Coragem!
(E o que tenho na mão?)
Apenas ilusão.
Porquê?
É já ali.
Felicidade.

Acima das nuvens, sob o papel, do outro lado do mundo - V

As palavras nunca partem. Não verdadeiramente. Podem viver num silêncio térrio e profundo durante anos e anos, fechados à chave na caixa escondida dentro de nós. Mas as palavras, ao contrário de nós, não desesperam, não se inquietam, não se revoltam. Talvez por isso pouco ou nada envelheçam. As palavras. As palavras. A vida nelas.

Acima das nuvens, sob o papel, do outro lado do mundo - IV

Para onde fogem as palavras
quando as tentamos abraçar
nas tinta e sóis
que adoramos?
Onde se escondem as
ideias de luz e cor quando as
dizemos assim, num abrir de
olhos, ao mundo inteiro,
e de repente já nem fazem
qualquer sentido?
Onde se refugia o
sentido de todas as coisas quando
o queremos apertar forte?

Acima das nuvens, sob o papel, do outro lado do mundo - III

Longe de nós não há eu
que nos prenda e escravize
não há lua nem fogo
ânsia ou desejo.

Acima das nuvens, sob o papel, do outro lado do mundo - II

A felicidade fuma liberdade em overdoses nucleares. Os sorriros são muito mais humanos, por seu lado, com pequenos-almoços ricos em hiprocrisia. Mas a felicidade não. A felicidade não se controla nem se chama. A felicidade tem mau feitio. E às vezes nunca sai de casa. Dias e semanas e meses e anos. Às vezes para sempre. E, ainda assim, quando aparece, seja o que for que tenha feito antes, a felicidade é como o regresso do filho pródigo que não precisa de o ser para ser amado.

Acima das nuvens, sob o papel, do outro lado do mundo - I

O sonhos são esta coisa estranha a que cheiram as minhas palavras. Os sonhos são os sabores - requintados ou não - dos meus pensamentos, a textura da pele da música que toco quando te abraço a mão. Os sonhos são a luz com que escrevemos as memórias que nos tornam reais e nos fazem sermos nós. Os sonhos, os sonhos são todos esses pedaços de sonhos que nos sonham sonhando connosco. Os pedaços de confusão sem nada que não podemos possuir ou controlar.

Os sonhos são, por isso, o que há de mais genuíno na humanidade.

Um dia

Um dia o mundo vai poder parar. Fechar os olhos por um momento para escutar o rio que corre dentro de nós. Sentir-lhe a frescura, o som, o toque. Um dia vamos poder respirar, só nós connosco todos juntos mas sem eles para nos dizerem o que fazer; inspirar fundo e sabermos que a vida está nas nossas mãos, que existe um continente inteiro para plantarmos todos os nossos sonhos, e um oceano sem fim para os navegar. E se a terra e o mar não chegarem, então teremos tempo para olhar o céu, e em todos os sóis sermos capazes de ver a mesma vida que a terra viu em nós um dia, e em cada ponto de luz sabermos que o somos. Um dia, o universo inteiro vai poder parar para poder viver. Deixar um instante passar sem que o relógio se aperceba; um segundo, um minuto, uma vida inteira num momento - como se não existisse na escuridão do vácuo, mas o necessário, o fulcral, o fundamental para podermos olhar-nos nos olhos, e podermos voltar a estar vivos.

Nós e o Mundo

O mundo é um lugar enorme. Um organismo estranho, um ser que respira sem um ritmo certo, que se alimenta de uma forma quase totalmente aleatória, e que, um dia, talvez - quem sabe - se reproduzirá. O mundo é o lugar onde existimos. Onde nascemos, onde aprendemos a sorrir, onde nos ensinam a chorar, e onde partimos. Esta Terra é o nosso oceano, azul para sonhar, terra para nos prender - e lá em cima, um céu imenso.

sábado, 23 de janeiro de 2010

Passado - há 7 anos atrás, no DN Jovem





Quando era criança o mundo era tão diferente.
Quando era pequeno o mundo era grande
e eu falava com ele.
As estrelas eram as minhas melhores amigas
e as árvores as minhas confidentes.

Quando era pequeno havia histórias de encantar
que me faziam sorrir
antes de adormecer
e que me faziam sonhar com princesas e reinos distantes.

Mas tudo isso foi há tanto tempo.
Cresci, e o mundo ficou mais pequeno.
E a cada centímetro que crescia parecia que morria
uma princesa e parecia que desaparecia um reino
e parecia que havia menos uma história de encantar
e parecia que já não havia estrelas e já não havia árvores.

Só assim se explica este mundo minúsculo
no qual vivo eu e tu e todos
em que lá fora não há estrelas
e em que dentro de mim
todas as histórias de encantar
estão como os sorrisos

- mortos.

David Sobral, DN Jovem, 2003

A Árvore da Poesia

Gastaram-se as palavras para te definir
(a árvore da poesia secou)
talvez até restem alguns frutos
que heroicamente tenham sobrevivido
à queda de ramos que já não existem

porém já nem importam as sementes
(a árvore da poesia secou)
mesmo que uma outra germinasse
de restos de palavras
já não seria poesia.

Seria talvez a natureza
ou o céu - até o luar -
mas não, nunca a poesia,
essa morreu
partiu
secou
jamais voltará.

Gastaram-se as palavras para te definir
e por isso o silêncio
por isso o céu gelado e a noite eterna.

Gastaram-se as palavras para te descrever
e ainda assim
continuas a ser

um fogo de estrelas e de mar.

Poemas

foste sol e voaste pelo mundo
companheira da brisa e do luar
dissolveste-te no aroma de despertar pela manhã
e no oceano azul ondulaste as águas
com o teu corpo de suspiros contidos.
e deste a volta ao mundo inteiro
num sonho que era teu e das estrelas
e no final
cansada
para mais nada tiveste forças
senão para perguntar
- quem sou eu por detrás das palavras com que me escrevem?

David Sobral, 27/05/2005

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

O futuro chegou ontem


Às vezes as palavras perdem o seu merecido lugar na nossa vida. As palavras, e as pausas, e os momentos, e tantas outras coisas. Tantas outras coisas para as quais declaramos abertamente que não temos tempo, ainda que, no mais profundo do nosso ser, essas sejam exactamente as coisas que mais nos fazem sentir realizados, felizes. Há um tic-tac lá fora que nos invade a mente, que nos hipnotiza totalmente, que nos incita a fazer parte da nascente, do rio, da foz, do mar. E não importa por que paisagens passámos, pois o tempo urge que independentemente dos caminhos e da foz - ou até do destino com que um dia sonhámos - no final, todos nós acabamos num mesmo oceano, perdidos numa imensidão que não só não compreendemos, mas que sobretudo nos faz sentir profundamente sós. A mais terrível de todas as solidões que alguma vez se poderia imaginar: o estar só no meio de milhares de milhões de pessoas sós. O futuro chegou ontem, e estamos sempre todos tão atrasados para o receber...

domingo, 18 de outubro de 2009

Retorno e Paz

Naquela manhã de Outono em que Joaquim voltou ao mundo que fora o seu Mundo durante quase 20 anos, era como se nada tivesse mudado. Havia ainda o sol a brilhar, o céu azul, o ar limpo e verde a soprar por entre os montes e planícies que se estendiam até ao infinito abraçado pelo seu olhar. Memórias e momentos passados; estava tudo ali, quase parado no tempo, na paz e tranquilidade da brisa que lhe tocava o rosto e lhe afagava os cabelos. Mas Joaquim não era o mesmo rapaz que por ali havia crescido, corrido, caído, sonhado e partido. A vida levara-o a correr o mundo, a chegar mais longe, a descobrir locais com os quais nunca havia sonhado. Os seus sonhos levaram-no para tão longe que, durante anos, foi como se tudo aquilo que Joaquim via, ouvia, sentia e cheirava de novo não fossem mais do que uma memória distante, ou um sonho de uma vida que nunca viveu. E tudo isso rebentava agora em ondas irregulares num oceano agitado de memórias, ora felizes ora de lágrimas. Até porque se os caminhos baldios que atravessavam a serra o lembravam dos risos e brincadeiras que o haviam entretido - a ele e aos seus primeiros amigos -, a porta da casa onde crescera sabia-lhe ainda à dor que havia carregado desde o dia em que vira os seus pais pela última vez, acenando-lhes um adeus que lhe soube como um até já, mas que acabou por ser um adeus para sempre. Isto porque quatro meses depois dessa despedida, a estrada que os havia conduzido até à cidade que visitavam pelo menos uma vez por semana durante décadas levou-os para um novo destino do qual nunca mais voltaram. Joaquim ficou de tal forma perturbado com a notícia que não mais voltara à casa que, desde esse dia, passara a ser sua. Afinal, como podia ele aceitar a morte dos seus pais que tinham ainda tanto para viver? Como podia ele voltar e não ouvir os passos da mãe pela casa, sempre atarefada; tornar a pisar os caminhos que percorrera com os seus pais e não os ouvir a dizer para caminhar mais devagar; ou cheirar as flores e as plantas e não ouvir as explicações e lições do seu pai:? Não, Joaquim não tinha como enfrentar essa realidade que se abatera sobre a sua vida: o peso era demasiado, a dor profunda demais, cortante.
A verdade é que foram precisos 11 anos para Joaquim voltar ao mundo que o fez crescer e sorrir, ao Universo a que, no mais genuíno do seu ser, ele chamava casa. E, ainda assim, Joaquim sabia que a sua casa já não existia - ou pelo menos a casa do rapaz que os campos viram partir havia 11 anos - essa ruíra no dia em que se tornou órfão. E, ainda assim, havia algo de seu ali. Algo que o fazia sentir o calor do sol de Outubro como um toque do destino, substância invisível que lhe sussurrar as palavras doces que uma mãe canta ao seu filho para o adormecer seguro e confiante. O mundo havia-lhe mostrado visões, sensações, locais e pessoas absolutamente fantásticos e inesquecíveis - e, ainda assim, nada nem ninguém lhe podia tocar tanto quanto este local. Talvez porque cada detalhe, ainda que envelhecido, deteriorado ou desenvolvido, tinha o toque do seu pai e da sua mãe, e dos seus pais antes deles; mais do que isso, cada pedaço do que agora o rodeara cheirava aos seus sonhos de miúdo, a tudo aquilo que o fizera sorrir só de pensar. Cada árvore de fruto, cada flor, cada caminho por entre as ervas que agora cresciam como nunca - em cada detalhe havia uma memória, uma palavra, um gesto. Sim, o mundo lá fora deu a Joaquim as folhas de uma árvore adulta, e a oportunidade de criar um tronco forte o suficiente para finalmente conseguir enfrentar tudo aquilo que a vida lhe tirou; mas era ali, naquele pedaço de terra em que pouco mais se ouvia para além de um silêncio profundo, que Joaquim tinha as suas raízes, o seu solo, a sua água.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

Mas qual crise!?

Há dias em que apetece escrever. Em que a voz do mundo nos chega de uma forma tão impossivelmente ridícula, suja, corrupta e sem nexo que nos força a optar. Entre seguir a corrente ou opormo-nos a ela. Entre aceitar uma visão ridícula do mundo, ou ter a coragem e o discernimento de o olhar a sério, de todos os ângulos, com todas as cores. É de facto incompreensível constatar que, num mundo da suposta informação, numa sociedade que se supõe do conhecimento, e, sobretudo, num planeta com uma população humana tão elevada, são tantos, mas tantos!, aqueles que não fazem a menor ideia do que estão a fazer, do que são, do que são os “problemas” e o que podem vir a ser soluções.

Escrevam-me o poema do mundo actual e qualquer um saberá que o difícil será poetizar toda a temática da crise financeira, dos mercados financeiros, da banca, dos bancos, dos bancos a falir, do dinheiro, do dinheiro que não chega, dos biliões que já só são 40 biliões quando ontem eram 80 biliões, ainda que nem interesse a moeda ou a nota, porque no fim de contas eram só contas e projecções, as mesmas feitas pelos investidores e outros ladrões. Há que não esquecer petróleo e tudo o que daí vem ou devém, mas, claro, mesmo aí, há o lucro, essa tão fundamental lei da física que diz que o preço de consumo é sempre superior ao de produção pelo menos por um factor suficiente para com ele se comprar mil e uma coisas que não precisamos e que por isso são tão dispendiosas. Escrevam o poema do mundo actual e temos fartura de tiros e bombas, de atentados e mortes, de desgraças e catástrofes. Fartura de imprensa social, claro (pois oh meu deus, o mundo sem imprensa social é o maior pesadelo de qualquer terrorista e político mal intencionado - manda todos esses para o desemprego sem qualquer hipótese de sobrevivência no ramo!), mas, oh, como viveríamos nós sem o jovem de 14 anos que foi ontem baleado pelo filho de 3 a ser notícia de abertura e primeira página de todos os jornais? E sem o político lambido que garante que não existe outra opção para isto ou aquilo, que a crise é grave - ou, até, para ouvir os nossos maiores líderes referirem-se ao actual estado do país como de uma profunda desgraça, como se o tempo em que vivemos não fosse o melhor de sempre!

E é exactamente aí que o poema acabaria. No que a maioria interpretaria como ironia e crítica social, estaria a verdade: é a crise, é a crise, mas nunca estivemos melhor do que isto! Mas claro, quem pensa assim? Afinal, “no meu tempo é que era”, e isso, juntamente com o encher de peito que são os descobrimentos e a pseudo-grandeza de império passado, fazem sempre (quase) pensar que Portugal foi em tempos um país fantástico, sem fome, sem pobres, justo, onde tudo funciona fantasticamente: um exemplo para o mundo, até para a galáxia inteiro, o Universo!

O que dava mesmo mesmo jeito era saber fazer contas, perceber que quem manda no mundo e no seu destino somos nós - cada um de nós. E quem quiser queixar-se disto ou daquilo e depois passar os dias a ver televisão, beber cerveja, ou fumar todo o tabaco do mundo, sem sequer um esforço sincero que o faça - mas que pelo menos não fira os outros que se esforçam, que trabalham, que alcançam, que não desistem. Porque se ferem esses, então, meus amigos, aí é que temos a crise, mas nem importa a crise financeira ou económica, aí temos a crise real, a que importa - a crise que transforma a humanidade na raça mais estúpida do mundo.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

A Vampira Vegetariana

Lea descobriu desde cedo que não era uma criança como todas as outras. Os pais sempre lhe disseram que ela era especial. Como eles. Porém, ela nunca compreendeu verdadeiramente a extensão de tal conceito. Afinal, os seus pais pareciam ser do género “demasiado protector”, e raramente a deixavam sair de casa. Culpavam o sol. Porque aumentava o risco de cancro, e porque era perigoso. Assim, Lea nunca tinha grande oportunidade de conhecer outras crianças, de brincar com elas, de saber do que gostavam, e como eram os seus pais. Talvez assim - pensava - seria mais fácil perceber por que razão ela era tão especial. Ou talvez nem sequer fosse. No fim de contas, talvez os seus pais lhe dissessem isso para que se sentisse melhor. Para se sentir realmente especial, quando, no fundo, ela talvez fosse tão especial como qualquer outra criança no mundo.
Afinal, o que havia de diferente na sua vida? Os seus pais trabalhavam bastante, e sobretudo de noite, mas de certo eram empregos fantásticos, porque em casa nunca faltava comida, e da mais deliciosa. De facto, a sopa era sempre tão fresca, e sabia sempre tão bem, embora nunca tivesse visto os seus pais a fazê-la. De qualquer forma, tinha que ser confeccionada por um chéf verdadeiramente fantástico, provavelmente um conhecido do emprego dos pais. Por outro lado, a sua família não era religiosa. Mas isso talvez fosse normal na sociedade moderna. Afinal, e tal como lhe diziam os pais, como é que se pode acreditar em deus, bem ou mal, quando existe a Ciência para mostrar a verdade, e quando as descobertas que se têm feito acerca do mundo não necessitam da existência de deus para as explicar.
Quando Lea completou 12 anos, os pais fizeram questão de a levar a visitar o local de trabalho. Afinal, parecia que queriam que ela continuasse o negócio de família quando crescesse. E, no fim de contas, por que não? Ver não magoava, e estava tão farta de ver os mesmos sítios todos os dias, que até visitar o emprego dos pais lhe parecia o melhor dos presentes de aniversário.
Saíram pouco depois do pôr-do-sol, no carro do pai. Roupas negras - de certo tratava-se da política da empresa em que trabalhavam. De qualquer forma, Lea estava demasiado curiosa para conter todas as perguntas que lhe brotavam na mente.
- Como é o vosso trabalho?
- Algo que começarás a fazer connosco em breve filha.
- Mas o que fazem.
- Trabalhamos bastante para conseguirmos a melhor comida para os três.
- Sim, a comida é sempre fantástica. É um amigo vosso que a faz?
- Que a faz?
- Sim, a sopa deliciosa que trazem sempre para casa depois do emprego. Nunca sabe exactamente ao mesmo, o que é óptimo porque nunca enjoamos, mas parece ter uma consistência fantástica. De certo trata-se da obra de um dos melhores cozinheiros da cidade.
- Bem, filhota, já começas a ser crescidinha. Está na altura de começares a compreender.
- Sim, digam.
- Não é sopa, filha.
- Não é sopa? Créme?
- Também não.
- Oh, então é um cozinheiro ainda mais sofisticado! De que país é?
- Não há nenhum cozinheiro, filhota. É sangue. Sangue humano.
- Como?
- Sim filha. Pensámos que pudesses descobrir por ti própria. Como eu ou o teu pai descobrimos. Mas talvez em nós o desejo de sangue era demasiado grande, e por isso os nossos pais tiveram que nos treinar bem mais cedo do que tu. Eu comecei ainda mais cedo do que o teu pai. E foi na caça que nos conhecemos. Antes de nasceres.
- Mas então nós...
- Somos vampiros filha, sim. Sempre te dissemos que éramos especiais. Mesmo muito. Por isso não te deixamos sair de dia, por isso nada de crucifixos, ou alho. Por isso o sangue.
- E o vosso trabalho é...
- Caça. Caçamos pessoas, e depois bebemos o sangue deles, ou então drenamos para levar para ti, ou para matar a fome durante o dia.
- Não acredito!
- Calma filhota.
- Calma, como posso ter calma?
- Talvez seja melhor voltarmos para casa?
- Sim, quero voltar para casa, e já!
Lea voltou para casa com os seus pais, e, assim que lá chegaram, correu de imediato para o seu quarto, e fechou a porta atrás de si. Como podia ela ser um vampiro? Matar pessoas para beber o seu sangue? Haveria algo mais horrível do que isso? Não, ela refusava-se a matar pessoas, nem que para isso tivesse que morrer ela mesmo.
- Lea, estás bem? Acalma-te, tens de tentar aceitar o que tu és. Nada te pode mudar.
- Deixei-me em paz! Odeio-vos. São os piores pais do mundo!
Lea passou 2 dias sem sair do seu quarto, ignorando todos os apelos dos seus pais, e por vezes vendo televisão. Até que, ao fim desse tempo, e com o estômago literalmente a dar horas, começou a passar um programa sobre vegetarianismo. Sobre a forma como era mais do que possível substituir toda a carne e peixe somente por vegetais. Era até mais saudável. Se ao menos ela fosse uma rapariga normal, então seria vegetariana. Matar humanos era horrível, mas não o era também matar um animal e comer a sua carne? Só o pensamento causava-lhe arrepios (mais do que o facto de ter bebido sangue de humanos ao longo de toda a sua vida).
Todavia, ao terceiro dia, Lea não conseguiu aguentar a fome que lhe corria no corpo. Precisava de sangue, de comida. Mais: precisava de uma caçada. Os seus pais estavam certos: tinha que aceitar quem era. Assim Lea saiu do quarto, sorridente, e, sem os seus pais saberem, saiu de casa. Para a sua primeira caçada.

Livres

É preciso prendermo-nos para podermos voar
palavra por palavra para nos podermos calar
num silêncio de gritos sem fim
num sonho de mundos reais sem sentido.
É preciso morrermos para podermos viver.

Grito da noite

É no grito da noite que o silêncio rebenta
em todas as suas cores
de luz e escuridão
é nele que as vozes se soltam enfim
sem medo
para se tornarem papel e tinta
na mente de quem sonha e vê
no céu de quem sabe que o mundo
não é o mundo
mas um mar inteiro
de si mesmo
um mar tão extenso e verdadeiro
que nem tão-pouco sabe
que o é.

Sem rumo

Sem norte nem espaço, nem tempo nem consciência
apenas o palpitar de um violino
o oscilar de uma corda
- talvez o grito de um piano
e uma brisa de uma voz profunda
de um poema sem dono
de uma praia sem gente.
Sem destino, sem rumo.
Sem início ou fim.
Na palavra nascemos
e no poema havemos de ter fim.

Sorriso

Na memória erguem-se cidades sem fim
muros de lágrimas e areia
que um dia construiste no meu olhar
como um sorriso que nos envolve num momento
e nos acompanha para sempre.

Anúncio

No céu um horizonte
na brisa um anúncio.
Fogos de guerras por travar
num frio de branco de papel por escrever.

Chama

Às vezes no calor do sol sobre o gelo nos vales
ou na brisa de neve que cai sobre os ombros
há uma onda distante que chama
- sussurra -
como uma chama tímida que quase não aquece
mas ilumina.
Uma estrela no horizonte por achar
arco-íris distante
inalcansável
como um beijo que o tempo não apaga
ou um sorriso que a distância não cura.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Voar

Abraçar as mãos em asas
e voar

Como se os nossos dedos
unidos
fossem o poder do poema
como se as linhas
do nosso destino
fossem a magia de versos de luz

Abraçar as mãos em asas
e voar
pelos céus que criamos a cada toque
a cada carinho
num mundo só nosso.

Abraçar os nossos corpos em asas

e voar.

Matematicopoesia

Às vezes a noite traz uma inoportuna função
matemática que indesejadamente transforma
o isolamento em solidão. E talvez o mais triste
seja derivá-la e verificar que f linha, após f linha,
tudo o que se obtém são conjuntos vazios de lágrimas
que a matemática parece não compreender.

sábado, 5 de janeiro de 2008

A Humanidade em Três Mundos - Fast-food II

O mundo está hoje a mudar. De forma extraordinariamente rápida. Mesmo que os ditadores de gema se esforcem por reforçar o terrorismo e os conflitos que parecem rebentar por todo o lado, é nesse mesmo mundo que está a brotar a semente da verdadeira mudança. Com o conhecimento a estar acessível a cada vez mais, e sobretudo com o debate de ideias através da internet - e das comunidades formadas - são cada vez mais aqueles que estão a conseguir encontrar o que se pode considerar “o seu próprio caminho”. É verdade que a sociedade os condena e repreende, sempre que se mostram à luz do dia. Por vezes abandonam o caminho que haviam começado, unicamente para voltarem a sentir-se “parte” da comunidade. Mas esses, tal como muitos dos outros, sabem perfeitamente que um dos maiores problemas da sociedade, e uma das principais razões de tantos conflitos e problemas prende-se com o imenso sentimento de perda, de desorientação e de bases para viver.
Aqueles que sempre viveram o mundo seguindo à risca todas as regras e dogmas, e que os aceitaram como verdades profundas, matando a sua própria curiosidade, agindo com base neles e não no seu verdadeiro julgamento ou experiência estendida e não centrada em si mesmo ou na sua própria sociedade - esses são aqueles que ainda se mostram mais estáveis. Senhores de si. Afinal, estão em casa.
Por outro lado, talvez a maioria, neste momento - no mundo “ocidental” - não seja assim. Nascidos sobretudo a partir da geração anterior, os filhos dos dogmas tiveram a oportunidade de olhar o mundo, e ver um pouco mais longe, mas foram desde logo obrigados a fechá-los, e a seguir as regras da sua sociedade, dos seus pais, da sua família, da sua igreja, da sua crença. Mesmo quando perceberam que não faziam qualquer sentido. Para esses, o mundo normalmente não faz qualquer sentido. Consequentemente, as celebrações, as rotinas, o trabalho, tudo se resumo a algo quase completamente forçado, ensaiado - quase pura representação. E existe um limite, que muitos atingem. Depressão, suicídio, isolamento.
Outros, sob pressão, passam para um outro grupo. Um terceiro. Talvez fruto sobretudo da última geração, mas também da primeira: os que olharam longe, foram obrigados a fechar os olhos, mas voltaram a abri-los. Um conjunto de pessoas que, a uma dada altura das suas vidas teve a coragem necessária para saltar o muro, para navegar para um outro continente, para descobrir a lua e outros planetas, para ver para além da nossa perspectiva. Pessoas que, mesmo que acabem por agir tal como as primeiras, segundo determinadas regras, princípios ou crenças, foram capazes de as escolher com base em vivências e experiências diversas. Muitas, porém, vão longe de mais, e são de tal forma rejeitadas pela sociedade que acabam como as do segundo grupo. De qualquer forma, são capazes de pelo menos conseguir esboçar um caminho, definido por eles próprios, onde cada erro, cada decisão, cada viagem são tesouros que não se pode abdicar nunca. Para eles, o arrependimento é o sentimento de quem tem medo de olhar para fora de si mesmo e descobrir o mundo, e arrependem-se apenas do que não fizeram.
E hoje, num mundo ditatorial, onde parece que a grande maioria dos seus habitantes parece pertencer ao grupo dos filhos de gado com olhos de artistas cegos na infância, que futuro podemos esperar?

Ditaduras, Fast-Food e Humanidade

Não escolhemos o momento em que nascemos. Tão-pouco o dia em que finalmente nos olhamos ao espelho e sabemos que a imagem que vemos nos pertence. Que somos quem somos e não quem pensamos que somos. Porém, muitos - senão a maioria - nunca nascerão. Fruto da sociedade, talvez. Da forma como se organiza. Uma necessidade, dirão muitos.
A verdade é que as regras, as crenças, os dogmas e o “bem” são conceitos extremamente úteis numa sociedade primitiva. Formas fantásticas de manter a ordem. Afinal, por que razão se alimentaram ditadores a ouro e prata ao longo da história da humanidade? A humanidade funciona tão facilmente quando não precisa de se olhar ao espelho, quando é simplesmente pastada, quando alguém lhe diz o que fazer, para onde ir, e por que motivo dar a sua vida.
Ao longo da história, a religião também assumiu um dos principais lugares nessa tarefa. Escravizar para dar um propósito e assim dar a sensação de pertença e felicidade, ao mesmo tempo que mantinha sociedades coesas. Mas a um preço. Ditaduras, regras e a lógica do rebanho são uma combinação barata e eficaz, do tipo fast-food. Porém, tal como em qualquer solução milagrosa, existem efeitos secundários. Guerras, conflitos, e toda uma parte da sociedade que simplesmente não consegue seguir a onda, o movimento comum. Revolucionários, perdidos, maus, hereges. Chamem-lhes o que quiserem. O que importa é que a lógica do deus pátria e família simplesmente não resulta com eles. Muitos tentam. Convencem-se a si mesmos de que sim, que se trata do melhor caminho. Mas a vida mostra-lhes que não.
Mas haverá uma outra forma? No fim de contas (dizem-nos sobretudo os apoiantes desta tradicional receita para governar o mundo), sempre que se tentou chegar mais longe, os fracassos foram totais. Regimes que começaram com a utópica filosofia comunista acabaram apenas por ser ditaduras com diferentes ingredientes. E sempre que se tentou conceder um pouco mais de liberdade, a maioria sentiu-se perdida. Sem rumo. E foi o caos.
Todavia, não será tudo isso fruto dos milhares de anos de regras ad-hoc, de dogmas sobre deuses e milagreiros que porventura não fazem qualquer sentido, e de homens com sede de poder que apenas pretendiam encontrar formas de dominar os próximos para atingir o seu lugar ao sol?