segunda-feira, 5 de junho de 2006

Welcome to the real world

Ela não sabia. Não sabia que as vozes que ouvia quando se deitava à noite, e ficava sozinha, eram vozes que só ela ouvia. Como se fossem emitidas por seres de uma outra dimensão - um universo com o qual só ela podia contactar. E ela não sabia que todas as pessoas que amava existiam apenas na sua mente. Na sua mente tão bela e ao mesmo tempo tão incompreensível.
Ela sorri, agora. Correu durante horas a fio, pelo deserto. "Como uma louca", diria alguém que não eu, porque eu sou um narrador imparcial, e um comentário destes seria tudo menos isso. Ela sorri. Sorri porque não sabe quem realmente é. Sorri porque do seu corpo molhado escorre o suor que a refresca. E a brisa que a envolve agora e a vai evaporando, traz-lhe as sensações com que sonha sempre que fecha os olhos e ouve as vozes que não sabe que só ela ouve. Ajoelha-se. Está calor. Mas ela não sabe que está calor. O seu corpo é agora apenas uma nave espacial. Um navio, destinado a percorrer todo o universo, até à outra dimensão. A dimensão onde todos aqueles que ela ama e que com ela falam existem. O local que só ela pode ver e ouvir e cheirar e provar.
Ela levanta-se agora. E volta a correr. Porém, agora, fá-lo em círculos. Levanta os braços, e corre em círculos fechados, concêntricos, mas já sem o seu sorriso. E há-de fazê-lo para sempre. Porque ela não sabe, mas talvez não passe de uma personagem. Uma personagem infeliz. Desgraçada. Porque, ela não sabe, mas não passa de mais uma personagem de um escritor que, tendo sido genial como ninguém o fora antes, é hoje apenas mais um louco, num qualquer hospital psiquiátrico cujo nome nem os próprios psiquiatras sabem.
Ela não sabe. E por isso corre, e agora volta a sorrir. Mas e se soubesse?

domingo, 4 de junho de 2006

Mais um dia em Guinsberg para Natasha

Era apenas mais um dia. Natasha voltava a casa em poucos segundos, depois de ter entrado na unidade de teletransporte do seu local de trabalho. E fora um bom dia. De facto, conseguira produzir mais de 50 unidades de conhecimento, que lhe davam agora direito a aceder a descargas emocionais, enquanto estivesse a dormir. É óbvio que nunca poderia ser nada de especial. Apenas uma leve felicidade - até um pequeno sorriso, mas nunca mais do que isso. Afinal, isso seria totalmente contra a lógica da grande cidade de Guinsberg. Nunca nenhum Guinsberguiano poderia permitir que o fizessem sentir uma emoção minimamente real: isso seria dar um passo atrás na busca pelo estabelecimento de uma mente global, baseada no computador central, e que negaria totalmente a individualidade em prol do bem comum.
Natasha deu dois passos, e rapidamente atingiu a plataforma de descanso, onde o sistema, activado pelos seus nanorobôs (em permanente contacto com o computador central de Guinsberg), fez questão de fazer com que ela se deitasse sobre ela. A plataforma moldou-se ao seu corpo, e os seus nanorobôs neuronais, activados pelo sinal do computador central para que toda a área da cidade em que Natasha estava dormisse, não tardaram a fazer o seu trabalho. Em pouco mais do que 5 segundos, Natasha dormia. Mas não sonharia. Natasha nunca sonhou, e nunca haveria de sonhar, porque os sonhos eram perigosos: levavam à loucura e à procura de tudo aquilo que pode ser nefasto para o bem comum. E era por isso que, noite após noite, os transistores quânticos dos nanorobôs neuronais não paravam um único segundo: para garantirem, com o maior grau de certeza, que Natasha nunca teria um único indício de sonho.