sexta-feira, 7 de julho de 2006

Rumo a Sul

Esperávamos todo o ano por aquele momento mágico em que todos nós nos reuníamos, uma vez mais, para rumar para sul. Aguentávamos quase um ano de aulas, sobrevivíamos a testes e exames, e ali estávamos, novamente, cheios de entusiasmo para mais um fantástico festival de verão que – sabíamos – seria o melhor de sempre. É claro que muitos de nós pouco mais sabiam do que um ou dois nomes que iriam estar presentes, mas nem por isso deixavam de viver, com a maior das ansiedades, os momentos que antecediam as primeiras horas em solo alentejano.
Partíamos quase sempre de expresso, com a nossa maior mala repleta de (quase) tudo o que iríamos precisar para (sobre)viver à vida na Zambujeira do Mar e arredores, e nem as muitas horas de viagem nos tiravam o ânimo. Até porque tínhamos tanto para contar e planear, que nenhuma viagem, por mais extensa que fosse, poderia ser entediante – pelo menos para nós. E assim passávamos as horas: em risos, confidências, e novidades.
Para além disso, e como conseguíamos sempre partir antecipadamente, era rara a vez em que não aproveitávamos para ficar pelas redondezas e, por isso, Porto Côvo e Vila Nova de Mil Fontes (a tal terra das três mentiras, por não ser nem vila, nem nova, nem ter mil fontes...) eram localidades quase tão familiares quanto a Zambujeira. É claro que, por razões óbvias, nunca chegámos a conhecer muito bem os dois locais durante o dia – à excepção da praia, claro. De qualquer forma, e mesmo que apenas de noite, não havia nenhuma miúda gira que escapasse ao nosso apuradíssimo detector de beleza, ainda que o sucesso da "equipa" nunca conseguisse ser de 100%, no que toca ao engate...
No entanto, com ou sem miúdas (giras), a estadia em Porto Côvo ou em V. N. Mil Fontes não se prolongava por muito mais do que três ou quatro dias. O grande Sudoeste estava mesmo a chegar. Podia sentir-se no ar das próprias localidades vizinhas. Havia os lançadores de chamas, os malabaristas, os freaks, os artistas e pseudo-artistas, os vendedores de ganza profissionais e pseudo-profissionais, e aqueles grupos de amigos que ainda tentava arranjar dinheiro de última hora para os bilhetes. Havia isso tudo, e sobretudo aquela brisa de mar, e os carros cheios de pó – um pó que, em qualquer outra altura não seria mais o que simples sujidade, mas que, para nós, à medida que nos aproximávamos do nosso grande destino, era a assinatura unívoca de que estávamos prestes a viver mais alguns momentos extraordinários.
E assim era, sempre, ano após ano. Ouvíamos e vibrávamos com os concertos, enquanto competíamos pela maior bebedeira e experimentávamos a melhor erva que se podia comprar por ali. Depois dos concertos, e quando os ouvidos nos começavam a incomodar, afastávamo-nos um pouco, e ficávamos, bêbados, a jogar futebol com a pequena bola maltratada que levávamos sempre. Outras vezes, e sobretudo quando não levávamos miúdas, havia sempre um ou outro a tentar fazer-se a esta ou aquela, e, perante a bebedeira geral, a taxa de sucesso aumentava de forma incrível, sobretudo quando comparada àquela que tínhamos, dias antes do festival.
E era assim que vivíamos intensamente o Sudoeste, numa agitação permanente, e sobretudo numa ânsia de viver que ali, longe da escola, dos pais, e das pessoas conhecidas, se expressava de uma maneira tão intensa que nenhum de nós tinha vontade de pisar o travão.
E quando tudo acabava, e era tempo de fazer as malas e entrar no expresso para casa, sabíamos, ainda que estivéssemos completamente estafados, que, mais do que nunca, tinha valido a pena. E para o ano havia sempre mais.

O Culto dos Superiores

Serei sincero: não sei quando é que o culto dos superiores começou. Tão-pouco estou a par de quando se encontrou o primeiro artefacto sagrado. E para que importa isso? O divino é divino, e por isso não precisa de tempo nem lugar, de início ou origem. E o culto dos superiores é de tal forma natural, tão absolutamente intuitivo para todo o nosso povo, que não há razões para sequer pensar em o questionar.
De 7 em 7 voltas completas da luz que brilha no céu, todos nós nos reunimos aqui, neste local sagrado, para adorar as obras dos seres das estrelas, que caíram dos céus há muito tempo. E é então que o ancião-mor profere o seu discurso, e todos nós o ouvimos, em silêncio. Porque o ancião-mor é o grande líder do nosso povo, e sabe imenso sobre os seres superiores. E às vezes, quando se sente com uma óptima disposição, chega até a revelar-nos pormenores sobre as vidas dos seres que vivem nas estrelas por cima das nossas cabeças. Conta-nos como utilizavam os artefactos que agora guardamos e adoramos com o maior apreço, e demonstra-nos, com a sua expressividade, o imenso poder dos seres superiores. Outras vezes, porém, e sobretudo quando se abate sobre o nosso povo algum problema, lembra que os seres superiores farão sempre justiça connosco, e que da mesma forma que nos enviaram os sinais da sua presença, também serão capazes de os retirar, e até de atentar contra o nosso povo. Porque, diz o ancião, “aos seres superiores compete a eterna justiça universal”.
Todavia, para além da reunião obrigatória, que se guia pelo número de voltas da luz no céu, não deixo de vir até aqui, quase diariamente. Talvez para me sentir em comunhão com os superiores, mas sobretudo para adorar os seus artefactos, a expressão da sua perfeição e poder. E é por isso que me aproximo deles, quando a multidão se reduz a poucas dezenas de membros do meu povo, para lhes captar os numerosos pormenores, e tentar, através deles, chegar ainda mais perto dos superiores. Afinal, eu, como qualquer membro do meu povo, vivo completamente fascinado por esses seres que povoam as estrelas e que velam por nós. Como seria possível não ser assim? Que nos ajudem sempre, oh seres superiores, pois nós vos adoramos, e havemos de o fazer, para sempre!


Diário da missão, fascículo 3:4000:34 – A missão ao planeta RX-c revelou-se um verdadeiro fracasso. Após séculos de tentativas de estímulo da inteligência e do progresso dos seres com maiores potencialidades no planeta, apenas colhemos desilusões. De facto, e ainda que no início toda a equipa considerasse que os seres necessitavam apenas de um pequeno empurrão tecnológico, a verdade é que essa tese se mostrou completamente errada. Para que fique registado, enviámos para o planeta mais de uma dezena de dispositivos, desde o mais simples computador pessoal, ao mais complexo computador quântico, passando por pequenas aplicações tecnológicas domésticas, com um micro-ondas, e os rústicos e antiquados televisores e rádios (que tivemos de fabricar). Enviámos também ímans, pilhas, geradores de corrente, automóveis a energia solar, e até teleportadores quânticos portáteis. Todavia, e para nosso espanto, os seres deste planeta, ao invés de estudarem os dispositivos que lhes fornecemos, e de os tentarem compreender e copiar, conseguindo fazê-los funcionar, limitaram-se a colocá-los numa enorme zona, à qual acorrem todas as semanas, para apenas os adorarem. Para que fique registado: sondagens realizadas através da leitura das suas actividades neuronais mostram claramente que este povo, ainda que cheio de potencialidades, não poderá nunca atingir níveis tecnológicos consideráveis, porque parece viver rodeado de crenças estranhas e incompreensíveis para nós. De facto, e ao que tudo indica, estes seres estão convencidos de que nós, os Alfa-XG, que de facto vagueamos pelo universo em busca de inteligência, tentando estimulá-la, somos “seres superiores”. Mais: parece ter-se estabelecido um “culto”, nestes seres. Não um culto tecnológico ou progressista, como aquele que se estabeleceu na era pré-histórica da nossa civilização, mas antes um culto a que eles chamam “divino”. O conceito não encontra paralelo nas nossas mentes, mas, ao que parece, estes seres acreditam que somos entes superiores, que vivemos nas “estrelas” (literalmente), e que lhes enviamos “artefactos” (é isso que chamam a toda a tecnologia que lhes enviamos), para que os possam “adorar”. Assim, sem nada mais a declarar, declaro oficialmente encerrado este diário de missão. Partiremos para o próximo planeta, na esperança de lá encontrar seres com um potencial que realmente se possa concretizar.

terça-feira, 4 de julho de 2006

O Novo Imperador do Universo

Rejubilemos. Todos nós. Famílias galácticas ou solares. Seres puramente biológicos, bioiformáticos, ou protótipos totalmente informáticos. Rejubilemos porque hoje há uma nova era que começa. Hoje, todo o universo poderá sentir a verdadeira alegria, pois é chegada a hora da tomada de posse do novo imperador do universo na sua quinquagésima era!
A mim, enquanto seu futuro ministro para a comunicação de âmbito geral, cabe-me anunciar que de facto se aproximam novos tempos. Tempos de prosperidade. Tempos de riqueza e valorização de todo o universo como um todo, que finalmente nos tirarão da cauda da lista dos universos mais desenvolvidos. De facto, aproveitaria esta oportunidade de me aproximar de todos vós para, inclusivamente, expressar a minha profunda convicção nas inigualáveis capacidades do nosso novo imperador.
Nunca antes o nosso universo teve como imperador um humanóide de inteligência combinada, totalmente construído para ser o ser mais fantástico ser que alguma vez habitou as 4 dimensões do nosso prezado mundo. Graças a ele, prezados cidadãos, os computadores de previsão futura de longo alcance prevêem grandes feitos para todos nós. Feitos grandiosos que incluem o escalar da lista de desenvolvimento universal. Os próprios computadores-previsores dos principais universos adversários confirmam isso mesmo: o nosso universo atingirá níveis de desenvolvimento económico e cultural sem precedentes, e isso tonar-se-á claramente visível em menos de apenas dez mil anos, caros cidadãos! Portanto, resta-me unicamente motivar-vos para reflectirem naquilo que o nosso novo imperador terá conseguido realizar, quando o seu mandato chegar ao fim, daqui a um milhão de anos.
Na impossibilidade do imperador se dirigir directamente a todos vós, encarrega-me sua suma-excelência de vos transmitir os seus maiores cumprimentos e saudações, e ainda de anunciar a sua oferta global de um dia de emoções dos tipos 1, 2 e 3, para todos os cidadãos. Para que todos nós possamos rejubilar em uníssono, e assim brindar aos feitos que, todos juntos, e sob a orientação do Grandioso, conseguiremos realizar. Viva o novo Imperador!

Força

Era noite avançada, e chovia. Chovia como se de um dilúvio apoctalíptico se tratasse, porque as ruas eram rios e não estradas, e sobretudo porque cheirava a fúria divina. Mas de facto João não o sabia. Não fazia ideia que por detrás daqueles estrondos no céu, que muitas vezes se faziam acompanhar por violentos clarões, e na base de toda a água que corria nas ruas da cidade, estava, no fim de contas, uma única Força que havia de tratar de pôr um termo ao mundo do homem.

O Último dos Viajantes no Tempo

O vento soprava forte aos ouvidos de Minskerti, o último dos viajantes no tempo que ainda se dedicava à sua arte seguindo rigorosamente os escritos antigos. Era verdade que todos os outros se haviam refugiado em tarefas de rotina, entregando-se aos prazeres mais imediatos e animalescos. Afinal, parecia que o século XXI seria mesmo o marco do fim de todo um povo que, durante séculos utilizara as suas fantásticas capacidades para trazer o melhor para o mundo, tentando minimizar as grandes catástrofes. Agora, suspirava Minskerti ao vento que lhe fazia esvoaçar os cabelos que tanto o caracterizavam, os viajantes do tempo haviam-se transformado em preguiçosos nómadas, utilizando as suas capacidades para pouco mais do que ganhar a lotaria, conquistar as mais belas mulheres, e conseguir os cargos de maior poder e prestígio.
Todavia, e por mais que os outros viajantes do tempo o tentassem convencer do contrário, Minskerti continuava a acreditar que a missão de cada um dos viajantes do tempo era demasiado importante para ser trocada pelos prazeres animais mais imediatos. E era por isso que, ainda que completamente só, ele continuava a menosprezar a sua própria vida em prol do mundo que tanto amava. Todavia, o que o último dos viajantes do tempo não sabia é que a viagem ao futuro próximo que estava prestes a realizar seria o maior desafio que alguma vez tivera de enfrentar. E talvez fosse isso mesmo que o vento forte sussurrava aos ouvidos de Minskerti, como se essa mesma massa de ar em movimento quase caótico pudesse já pressentir a situação mais dramática que a humanidade alguma vez imaginou.