quarta-feira, 25 de outubro de 2006

Azul de Fim

Hoje o mar recolheu cedo demais a casa. Ainda não tinha chegado à praia, e já os pescadores voltavam, desiludidos com a quebra do contracto que os seus haviam assinado há milhares de anos com o Atlântico. Um contracto que lhes garantia a sucessão de marés. Que lhes fornecia as horas a que o mar chegava e partia da costa. Porém, e ainda que todos reconhecessem que o velho oceano se havia portado de forma exemplar durante longos anos, a verdade é que, nesse momento em que estava prestes a chegar à praia, e os pescadores regressavam furiosos, pude ter a certeza de que nenhum deles haveria de perdoar tamanha traição. Imaginei-os até a maldizer o oceano, quando chegassem a casa e as suas esposas ficassem tremendamente surpresas. Contudo, naquele momento de aproximação à brisa azul do mal, fresca como uma salvação perante o calor abrasador que se fazia sentir, nada disso me importava. Afinal, seria da minha conta que o mar tivesse decidido visitar a costa americana mais cedo? E teria ele que avisar? Bem, é claro que, enquanto descia para a areia, não deixava de pensar no número de processos que entrariam em tribunal, tentando processar os institutos que realizam e imprimem as conhecidas tabelas das marés, apresentando longas listas de perdas económicas e argumentando prejuízos morais e psicológicos irreparáveis.
De qualquer forma, a praia estava fabulosa. Havia sol, areia e um céu azul reflectido num lago a que ainda ontem poderia chamar mar. E havia um calor enorme, e uma vontade tremenda de nadar, mergulhar; de, enfim, me perder nas águas salgadas. Por isso, por estar tremendamente tentada a entrar na água, não esperei mais. Deixei as coisas perto de água, e corri. Corri com não corria há semanas. Corri como uma louca, talvez. Mas sobretudo corri como se o mundo estivesse prestes a terminar. E mergulhei. Mergulhei fundo e nadei durante longos segundos, abrindo os olhos debaixo de água para me guiar. E quando me ergui de novo, à superfície, fiquei a boiar, durante longos minutos. Olhei o céu, e sorri.
Foi então que ouvi os primeiros gritos. É óbvio que me ocorreu de imediato que se tratava de mais um afogamento, e por isso virei a minha atenção para a costa, onde, para minha surpresa, todos fugiam apressados, atropelando-se nas escadas para subir a falésia. O próprio nadador salvador tinha já deserdado. E eu era a única que ainda me conservava dentro de água, sem perceber por que fugiam todas aquelas pessoas.
E foi então que senti o primeiro prenúncio do meu fim. Senti-me a ser puxada no sentido contrário à costa, como se o rei-do-mar tivesse resolvido aspirar a água que estava a mais no seu reino. E virei-me para o horizonte.
Daí até aqui e agora foi o tempo de pensar tudo isto em palavras. Uma forma ridícula de viver os últimos segundos da minha vida. Bem sei que poderia ter tentado fugir. Usar todas as minhas forças para sair do mar e correr. Tentar até subir para um patamar mais elevado. Mas não seria sempre tarde de mais? Afinal, acabei por decidir há pouco, prefiro morrer aqui, a boiar neste mar fantástico que sempre amei, calma na minha calma, a olhar o céu azul, enquanto a onda gigante se vai aproximando. Porque se todos nós temos que ter um fim, pelo menos o meu será como sempre quis: azul.