quarta-feira, 13 de setembro de 2006

O Homem que Decidiu ser Deus

Um dia, Afonso decidiu ser Deus. Estava simplesmente farto da incompetência dos céus, que resultava em conflitos cada vez mais graves e extensos, sempre a brotar no seio da humanidade, e encontrava-se tão saturado das milhões de orações, que, dia após dia, eram ignoradas como se fossem «spam» ou lixo electrónico numa caixa de e-mail a abarrotar, que decidiu tomar ele próprio o lugar do “Criador”.
Claro que, na altura, não passou de uma ideia louca, daquelas que nasce quase do nada, nas mentes férteis de quem começa a olhar o mundo com outros olhos e o pretende alterar. No entanto, longe de se aperceber da impossibilidade da mesma, Afonso começou desde logo a conceber um plano para atingir os seus fins.
Desta forma, sempre que chegava a casa, retirava uma folha do seu bloco azul e expunha nele as ideias do dia que poderiam ser úteis. Brevemente, supunha ele, teria um conjunto de pensamentos e projectos suficientemente genial para começar a realizar as tarefas que o desleixado deus parecia não ter tempo para realizar.
Todavia, não esperava que a sua ideia mais genial lhe surgisse precisamente quando atravessava a avenida mais movimentada da cidade. E foi por isso, e por estar tão concentrado na genialidade do que lhe surgiu, que quase foi atropelado. O susto trouxe-o de volta à realidade, e por momentos pensou que aquilo tinha sido uma espécie de aviso, de alguém que não queria perder o seu lugar no mundo. No entanto, estava tão convicto da grandiosidade do seu sentimento, que correu para casa, fechou-se no quarto, e nessa noite não dormiu a pensar na sua ideia. «O Altruísmo humano e a Ciência», disse baixinho, «hão-de ser o Deus que falta a este mundo, e hão-de o salvar.»
O que Afonso constatou foi que para se ser Deus – e possuir-se a maior parte das capacidades e poderes do mesmo – não era preciso ter características especiais. Na verdade, descobrira que, mesmo com meios muito rudimentares, podia começar a exercer as tarefas que tanto faziam falta ao mundo. Sabia, no entanto, que o seu “poder” se estenderia apenas a um raio de poucos quilómetros, mas estava esperançado de que, com o tempo, seria capaz de desenhar equipamento que lhe permitisse ampliar as suas capacidades a toda a Terra.
A ideia de Afonso era construir um centro de super computação, com uma incrível capacidade de processamento. Depois, arquitectara, faria questão de ligar todos os processadores às suas próprias ligações nervosas, fazendo com que pudesse não só gerir todo o sistema, como aumentar as capacidades da sua própria mente. Por outro lado, Afonso pretendia ligar, ao sistema informático, sistemas de aquisição de dados nas redondezas – para captar todas as preces humanas – e faria questão de conceber um aparelho gigante, capaz de criar campos magnéticos e eléctricos suficientemente fortes para obter os poderes de um Deus que se preze.
No dia seguinte, Afonso estava de rastos. Na verdade, adormeceu em quase todas as aulas, mas quando chegou a casa, a sua ideia falou mais alto e saiu disparado para a cave, com vista a concretizar aquilo que começava a ver como uma profecia. Talvez por isso, enquanto carregava velhos computadores, que ao longo dos anos tinha coleccionado, e os ligava, de forma a conceber um super-computador o mais poderoso possível, Afonso pensasse ler frases proféticas escritas no ar, anunciando uma nova era. Depois, enquanto montava o software para o que iria precisar, começou a ponderar se seria o primeiro a tentar fazer algo assim. Em seguida, sentiu um arrepio, e acreditou, sem se questionar, que os milagres descritos na antiguidade tinham mesmo ocorrido. «Talvez até tenha sido eu, que tenha viajado no tempo!», pensou com entusiasmo, e logo se apressou a montar o seu equipamento.

Meses depois, Afonso foi encontrado na cave, totalmente inexpressivo, com o olhar mergulhado no vazio. Estava morto, e os médicos disseram aos pais que sofrera um esgotamento nervoso nunca antes registado. Os últimos, cobertos de lágrimas, não foram capazes de explicar à polícia como é que o filho tinha conseguido ter em casa equipamento tão sofisticado que – descobriram – fora roubado dos mais prestigiados institutos de investigação da Europa. Sobretudo não compreendiam o que é que ele estava a tentar fazer com toda aquela maquinaria de última geração.
- São os jovens de hoje em dia, minha senhora – respondeu um agente da polícia, dirigindo-se à mãe de Afonso, – infelizmente só pensam neles e nestas máquinas. Provavelmente estava a tentar conceber uma plataforma de jogos de última geração, para ganhar a todos os seus amigos virtuais, quem sabe. De qualquer forma, a culpa é desta malvada nova tecnologia. É diabólica! Sabe quantos processos chegam por dia à nossa esquadra por causa destas coisas? Mais de 100 minha senhora, mais de 100. Mas oh, acalme-se, que assim que conseguirmos apurar o que aconteceu será informada. Agora é preciso ir. Portanto boa tarde, meus senhores, e que Deus esteja com ele, e convosco, e com todos nós, porque é ele que zela por nós todos os dias, e falo por mim, porque há meses que tenho a certeza que as minhas preces são sempre ouvidas. Pela vossa expressão vejo que vos acontece o mesmo. Por isso, senhores, tenham fé, tenham muita fé, porque Deus é grande e há-de perdoar todos os pecados do vosso filho.

segunda-feira, 11 de setembro de 2006

A Vida de Joana

O dia começava sempre de forma idêntica para Joana, quer fosse inverno, ou Verão. Para Joana, todos os dias eram entediantemente iguais e era como se, na prática, o tempo fosse algo completamente indefinível, por ser tão periódico, monótono, e lento. E Joana não sabia porquê. Não sabia por que razão eram os seus dias tão iguais uns aos outros. Não sabia a razão para se encontrar sozinha, o motivo que fazia com que tivesse que enfrentar, sozinha, a fluência viscosa e monótona dos dias.
Joana não sabia. Porque se soubesse, ou se viesse a saber, então os seus dias não seriam apenas clones bonacheirões de todos os outros, para passarem a ser verdadeiros pesadelos. Joana não sabia. Mas, se o soubesse, pediria a todos os deuses para a fazerem esquecer. Tal como já o fizera tantas vezes ao longo da sua vida. A vida sobre a qual nada conhecia.

domingo, 10 de setembro de 2006

Escrita

Haviam passados meses desde que ele a vira pela última vez. Talvez nenhum deles soubesse o verdadeiro motivo pelo qual se haviam separado. De facto, nenhum se recordava sequer do último instante que juntos partilharam. Como se nunca tivessem sequer dito adeus.
Mas a verdade é que ele não a via há anos, há décadas, há séculos. Ou pelo menos era isso que sentia. Porque onde quer que ele fosse, ela estava lá, mas ele sabia que não a podia voltar a encontrar. Não enquanto não voltasse a entregar-se. A dar-se. Ele sabia que a escrita e ele haviam sido feitos um para o outro. Mas, ainda assim, ele vivia no terror e na dor de não a ter, de não a percorrer com as suas mãos através do papel, de não poder sentir as faces, as cores, os perfumes das personagens que ele, junto com a escrita, criavam e davam vida, nas alegres noites de Verão.
E um dia, um dia ele soube que o momento chegara. Talvez não fosse o local apropriado. Mas ele sabia que não havia lugares apropriados. E por isso, quando uma caneta abandonada junto a um papel o abordou, em curiosidade, tudo foi tão mais forte que ele, e, em momentos, ele e ela souberam, uma vez mais, que ficariam juntos, para sempre.