segunda-feira, 20 de novembro de 2006

Olhar




Há um olhar que persegue
que fascina
que prende.
Um olhar que brilha
que sopra
que agita a vida e o mundo
e que o faz girar
numa magia inigualável.

Um olhar que ondula no mar
que se espelha no céu
e que tinge o céu de safira
com a luz dos sonhos.

Um olhar, enfim
que é a vida.

Para trás




Tudo o que era ficou para trás quando parti. Todos os sonhos, as ambições – e até os pesadelos. Deixei os medos com a mesma naturalidade com que abandonei o amor dos contos de fadas, e matei as memórias felizes com a mesma crueza com que lidei com as mais horripilantes. Despi-me de mim mesmo. Cortei os membros, o peito. Retirei o meu próprio coração. Fiz-me e desfiz-me em pedaços. E, por isso, quando parti, não restava nada de mim. E tudo ficou para trás. Para sempre.

Prosa

Há quantos séculos não falamos, poema?
Há tantos, que provavelmente até tu
te deixaste cair
na inércia de seres
prosa.
Apenas prosa.
Para sempre prosa.

Escrevo

Escrevo, sim. Ou talvez. Já nem importa. Escrevo apenas, mesmo sem saber se o faço, ou por que o faço. Por mim? Por ti? Por ela? Por ele? Ou por quem mais? Talvez por nada. Sim, escrevo por nada, mas nem sequer penso demasiado nisso, para não o concretizar, para me manter no nada. Do nada para o nada não é preciso movimento, translação, viagens. E, por isso, posso ficar aqui, abrigado no seio destas palavras que não sei o que dizem ou significam, mas sei – ou penso – que existem em mim ou em algo que penso que sou eu. Escrevo, sim. Ou talvez não.

Vida

É incrível como podemos passar o dia a dia completamente imersos em pensamentos sobre o que há-de vir, concentrados no futuro e em tudo aquilo que queremos vir a conseguir. Podem até ser as coisas mais simples e inocentes, como a "felicidade", ou até coisas mais terra-a-terra. Porém, a verdade é que, muitas vezes, fixamo-nos de tal modo nesse dia-a-dia de procura que acabamos por nos perder em argumentos tão ridículos como a "falta de tempo", ou a "falta de paciência". Corremos e suamos, por vezes passamos noites sem dormir. Às vezes irritamo-nos pelas razões mais ridículas e criamos conflitos onde antes parecia haver apenas amizade. E, no final, estamos tão cansados de acharmos que estamos cansados, e tão agarrados à nossa procura e ao "futuro", que nem sequer temos tempo para pensar no presente. Para nos apercebermos de que a vida é este instante em que alguém escreve, em que alguém lê. Este instante em que podemos disfrutar de cada inspiração e expiração. Este momento, este segundo, esta hora, em que nos podemos sentir vivos. A vida é aqui e agora.

terça-feira, 14 de novembro de 2006

The World where poetry is dead

I stand alone, starring in the dark.
Loneliness comes. She whispers me a sad song
Which the angels did not sing.

Suffering hearts! How they scream for love!
But war and pain is what they get from above
In this world, where Poetry is dead,
Buried in the hearths which no longer dream.

I close my eyes, losing myself,
Hoping for a miracle to happen
But even miracles are forbidden in this reality!
I hear my hearth beat, as if it was the last thing
I would hear in this world of pain
And everything is impossible to overcome…
I fall apart with a dead hearth whispering for salvation
Hoping I would have been a star, twinkling in a constellation
Far… Far away from this nightmare.

If only there was a bit of Poetry left…
It would be so easy to dry all tears
To make stars from bleeding scars
And smiles from the deepest fears…

segunda-feira, 13 de novembro de 2006

Se... (2003)

Se para isso tivesse voz e se houvesse mundo suficiente
Gritaria alto como um trovão e terno como uma carícia
E, entoando teu nome, toda a Terra se cobriria de amor
E a esperança cairia dos céus, estremecendo todo o planeta
E a água e o fogo, a terra e o ar voltar-se-iam a amar.

Se tivesse para isso asas e se Mundo para isso houvesse,
Correria rápido como o desejo e veloz como um arrepio
E correndo em teu nome, toda a Terra se cobriria de ternura
E o sonho voltaria em coração dos Homens, estremecendo o planeta
E a água e o fogo, a terra e o ar, voltar-se-iam a amar...

O Dia em que me viste (2003)

A Brisa tocava o mundo tão docemente,
Enquanto o Sol o iluminava, dando-lhe vida.
O Céu, esse, era espelho de azul magnífico
E na Terra tudo se iluminava à tua passagem!

Impossível! Magia das Magias! Feitiço!
Entre teus passos cuidadosos e encantadores
Paraste, com todo o teu brilho, sorrindo
Fazendo desmaiar cravos e rosas de amores!

Meus olhos eram flores do sol
E só a estrela maior me faria deixar meu estado errante!
Mas como podes tu, estrela incrível,
Dares-me vida, se sou tão pequeno, insignificante?

Mas deste-me! Foste luz onde só o negro imperava!
Pois um só olhar teu ilumina tudo o que existe!
O teu olhar, que tudo cega com esse brilho imenso.
O teu olhar... que tudo apaixona, que é feitiço intenso!

O vento soprou forte e incessante!
O coração bateu forte, mais forte... e de rompante...
O que era, que seria? Tamanho espantar!
Eras tu, a Beleza do mundo, com tua presença de encantar!

A Era dos Descobrimentos Espaciais (I)

A espera revelou-se extremamente recompensadora para Sernot, o comandante-geral da Eva, no dia 1 de Janeiro do ano 2306 da era moderna. Ao fim de tantos anos de construção e preparação da nave, e depois de meses dispendidos na escolha e preparação de toda a equipa tripulante, o maior sonho de juventude de Sernot era então a concretização do mais notável e ambicioso projecto concebido pela humanidade. E Sernot, mais do que qualquer um, sabia o quão árdua tinha sido toda essa extensa etapa do projecto Eva, que chegava ao fim com os últimos preparativos que antecipavam o lançamento. Porém, e ainda que não conseguisse esconder a emoção e alegria que lhe corriam como um fluido pelo sistema nervoso, era também ele o mais cauteloso nas declarações telepáticas à imprensa. "Afinal", pensava Sernot para si mesmo, "mais do que orgulho, devo sentir a tremenda responsabilidade que, quer queira quer não, está depositada em mim".
E não era para menos. Sobretudo porque, ainda que a humanidade olhasse agora para Eva como a salvação de toda uma espécie, e para Sernot como o seu Messias, a verdade é que a missão, prestes a começar, estava longe de poder ser considerada um sucesso. É óbvio que era essa a vontade de todos os intervenientes, directos ou indirectos, mas, dado o objectivo final, a promessa de êxito nunca poderia ser muito mais do que uma simples promessa política dos tempos primitivos.
Todavia, nada disso importava à comunicação social, quase toda ela entusiasmo e confiança. Era de facto extraordinária a diferença de discurso que se verificava entre aquele utilizado para descrever a nave – e tudo o que ela significava – e o utilizado para revelar a "horrível descoberta", feita poucos anos antes, e que, ainda que tivesse dado um empurrão decisivo no projecto Eva, foi também motivo para um pessimismo que nunca antes se abatera sobre a humanidade. Havia sido descoberto o prazo de validade da Terra e – diziam os estudos – a data de expiração aproximava-se a passos larguíssimos. "A Resposta, a Salvação", noticiara o diário wireless World News, no dia do arranque oficial do projecto de Sernot, "chama-se Eva".
- Cidadãs e cidadãos de todo o mundo, é com enorme prazer que vos comunico, enquanto responsável pelo projecto Eva, e na qualidade de comandante-geral, que, tal como previsto, o lançamento da nave espacial Eva, com destino ao planeta SD-GS2056, será realizado amanhã, no horário previamente estabelecido. Assim, e em nome de toda a tripulação, compete-me assegurar que de tudo faremos para agarrar esta fantástica oportunidade de sobrevivência da espécie humana, mas também alertar para todos os perigos e possibilidades de insucesso que teremos de enfrentar. Todavia, e ainda que o calculismo nos obrigue a temer o pior, todos nós sentimos de forma intensíssima que este é o momento, e que não falharemos. Amanhã, cidadãs e cidadãos, começa o nosso maior desafio. Até breve!

Horizonte por achar

rasgo o mar por entre os sonhos
buscando talvez a razão de procurar
aquilo que só há no não existir
e encontrar

venço a fúria de querer ter o que não há
desfazendo a inércia de não ser luz
como quem crê no infinito
e em o olhar

mas no final do tempo há um relógio que desperta

- o mundo recomeçou

Vida

a vida esgota-se a cada instante
rodopia dançando ao sabor
da ilusão do tempo
e escorre-se por entre os dedos
sempre que a tentamos agarrar

Sempre

foi sempre assim
o rio aqui e tu tão longe
a lareira a crepitar em sonhos
e o mundo inalcansável

Eras tu

eras tu no vento
rodopiando em mim
era o teu olhar
ondulando o universo
era a tua pele na minha
a ternura feita brancura.

Álvaro

quero criar tudo
de todas as maneiras
quero ver o mundo de acordo com todas as teorias

tragam-me todo o alfabeto
grego fenício árabe ocidental
concedam-me toda a lógica
e a matemática a química a física.

quero saber tudo de todas as maneiras
quero ver o mundo
e vê-lo é bem mais que olhá-lo,
é sabê-lo.

pois que venham todas as invenções
que se negue a existência
de espaço
de tempo

que se descubram novas realidades
no nosso próximo universo
e que não haja um fim
uma qualquer meta que diga acabou
pois eu quero, mas é o querer que me move a alma e não
o achar.

inventem-se novos homens
novas vidas
máquinas em nós e nós nelas.

que eu quero saber tudo
criar tudo
ver tudo
sentir tudo

enfim..
de todas as maneiras!

Subi ao céu nas asas de um vector rebelde

subi ao céu nas asas de um vector rebelde
com a fome de quem devora todo um teorema
em busca de solução,
com a ânsia de quem percorre o mundo inteiro
num instante
e com a pressa de chegar
mais rápido do que o próprio tempo.
ousei provar cada pedaço do que nos faz ser e não ser
cada interrogação sem resposta
cada brisa de arrepio por sentir.
estendi meus braços sobre tudo o que há
em equações de campo que não falham
e não sentem
e escrevi poesia a dez dimensões
como quem pensa no teu olhar
num tempo zero e infinito.

Regresso

Anoitecia, ainda que o Sol – ou aquilo que restava dele – tentasse ainda apoiar-se no horizonte, para de novo se levantar. Daen percorria agora a reduzida distância até ao seu destino de uma forma ainda mais calma e lenta. De tal forma que chegava a parar, durante alguns minutos, só para poder olhar o mundo à sua volta: ali, o lugar que fora seu, o universo que um dia conhecera melhor do que a palma da sua mão. E depois voltava a caminhar, sentindo no peito um arrepio que era um misto de saudade, suposição e talvez – embora ele nunca o pudesse admitir – de um possível arrependimento (ou pelo menos de uma vontade de tentar fazer tudo de uma outra forma).
O Sol escondera-se atrás das montanhas de Delfir quando Daen chegou finalmente à porta da sua casa. Ou melhor, daquilo que fora a sua casa durante os seus primeiros vinte anos de vida. Por momentos, quase acreditou que ali dentro ainda vivia toda a sua família, com toda a sua alegria e simplicidade, sempre ansiosa por convidados aventureiros e por ouvir as suas histórias de coragem.
Mas quando abriu de novo os olhos, e mesmo perante a escuridão que se ia abatendo sobre a casa, Daen sabia que nada podia ser como fora antes. Afinal, toda aquela zona fora atingida pela peste e sofrera uma invasão da parte dos terríveis Filxnors, com o único intuito de pilhar e roubar tudo o que tivesse um valor mínimo para ser vendido aos povos mercantes. De facto, e face a esses acontecimentos, era extraordinário que a casa se mantivesse tão conservada. Quase como se estivesse igual ao que fora, 40 anos antes, quando Daen a abandonou para seguir o seu sonho.
Com um arrepio a correr-lhe o corpo, Daen abriu a porta, lentamente. De dentro veio, quase instantaneamente, um leve cheiro a mofo, mas, ao mesmo tempo, uma brisa de algo que era tão familiar a Daen. Entrou, fechou a porta atrás de si, e, pela primeira vez desde há anos, sentiu-se verdadeiramente em casa. Como se nunca tivesse abandonado as montanhas de Delfir, a sua casa, a sua família, ou a única mulher que amou. Como se a sua vida tivesse sido tal e qual a do seu pai, a do seu avô e a do seu bisavô. Caminhou pela casa, onde outrora viviam mais de 10 pessoas, e tentou imaginar como seria se nunca tivesse partido. Teria sido feliz? Teria conseguido viver com o possível arrependimento de nunca ter seguido o seu sonho? E onde estaria agora, se ainda estivesse vivo?
Subiu as escadas que o levavam até aos quartos, e não conseguiu deixar de entrar naquele que um dia fora seu e dos seus dois irmãos mais velhos. Estava escuro. De qualquer forma, e tal como no piso anterior, Daen conseguiu perceber perfeitamente que a casa já vivera melhores dias. A madeira, devido às pragas e à humidade, parecia prestes a estalar por cada passo que ele dava, e toda a pouca mobília que ainda restava estava em péssimas condições. Porém, nem por isso Daen deixou de se aproximar do espaço onde outrora dormia. A cama onde cresceu e onde teve pela primeira vez o sonho que o levou para bem longe de Delfir. E, por isso, foi sem medo que se deitou nela, o seu corpo agora 40 anos mais velho do que da última vez. Fechou os olhos e sentiu-se calmo. Como se algo naquele momento, naquele espaço, lhe dissesse que ele conseguira. Que fora árduo, doloroso, e por vezes desesperante, mas que ele, Daen, cumprira o seu sonho, e estava agora, finalmente, de volta a casa. Mesmo que a sua casa – tal como ele – tivesse mudado.
Voltou a abrir os olhos, e viu, na sua mesa-de-cabeceira, um papel, muito amarelo. Curioso, Daen tentou lê-lo, mas a pouca luz que vinha do exterior era insuficiente. Por isso, não hesitou em dirigir-se para a janela onde – sabia – a luz de uma Lua cheia o ajudaria a matar a sua curiosidade.
Daen pegou no papel amarelado e gasto pelo tempo (quase tanto quanto a sua pele), e abriu-o, à luz da lua, e perante a brisa que soprava das montanhas. Não fazia a mínima ideia do que poderia ser, mas o seu coração, ainda há pouco tão calmo, batia agora com ansiedade e entusiasmo. Afinal, ali estava algo que ainda o podia ligar à sua vida de há 40 anos atrás, e a tudo aquilo que, mesmo tendo de abandonar, nunca deixara de amar com toda a sua vida.
Era um bilhete. Uma mensagem para ele, Daen, escrita por ela, Aelen, a mulher com quem sonhara toda a sua vida, e a razão pela qual o seu sonho nunca o tinha feito sentir-se pleno, mesmo depois de o realizar quase na íntegra. Porque há 40 anos atrás, quando ele lhe falou no seu sonho, ela decidiu ficar. Decidiu que não interferiria com o caminho de Daen, e que ela, Aelen, ficaria para sempre em Delfir, pois era esse o seu lugar.
Agora, porém, o coração de Daen batia ainda mais forte. Nas suas mãos estava algo escrito por ela. Uma mensagem, uma carta. E, pela primeira vez desde há 40 anos, ele poderia contemplar a sua letra. Ler os seus pensamentos. Sentir as suas preocupações, os seus sentimentos para com ele. Como se de novo pudesse cair nos seus braços, abraçar o seu corpo, ou sentir os seus lábios.

Para Daen, se alguma vez voltares,

A semana passada começou com notícias terríveis para todo o povo de Delfir. Ao que parece, uma peste incurável está já a matar os nossos compatriotas, e dirige-se para cá. E, como se não bastasse, também há boatos de que os Filxnors planeiam invadir-nos, unicamente para nos roubarem, destruírem, e depois partirem. De resto, já ouvi dizer que foram os Filxnors que trouxeram a peste para a nossa terra, com o intuito de nos deixarem ainda mais assustados e frágeis perante o seu feroz ataque.
E por onde estarás tu? Será possível que ainda te encontres vivo? E que estarás tu a fazer? Terás conseguido realizar o teu sonho quase impossível? Quem me dera poder saber…
Fazes-me falta, Daen. Por mais que tenha tentado parecer decidida, quando partiste, hoje tenho a maturidade suficiente para dizer que estou tremendamente arrependida. Se fosse hoje o dia da tua partida, teria até suplicado para que me levasses contigo. Para que me deixasses estar sempre perto de ti.
Todos me dizem que é inútil deixar-te esta mensagem. Que estás morto há muito, e que, em breve, também nós morreremos. E dizem-me que esta casa, a casa onde deixo este bilhete, e onde tu cresceste, não será mais do que um conjunto de ruínas, quando for totalmente destruída. Mas nem por isso deixo de ter esperança. Afinal, ainda recordo as tuas palavras: sonhar nada custa.
De qualquer forma, Daen, escrevo para que saibas que estou prestes a alistar-me no regimento de defesa de Delfir, pois sei que é o que farias, se aqui estivesses. A ti – ao contrário de mim e de muitos de nós – nunca faltou a coragem para enfrentar os maiores perigos e desafios, e por isso sei que esta é a decisão mais acertada de toda a minha vida.
Por tudo isso, e mesmo na eventualidade de esta casa sobreviver o suficiente para guardar este bilhete, e de tu voltares para o ler, o mais provável é que tenha sido violentamente morta por uma besta Filxnor. Porém, quando o for, sei que estarei mais perto de ti do que nunca, porque não só segui a tua coragem e exemplo, como também lutei para proteger tudo aquilo que sempre amaste em Delfir.
Para sempre tua,
Aelen.

sexta-feira, 3 de novembro de 2006

Diário do Bordo do Capitão Fx-45034-gl, Entrada 6M-5000

Foi pela manhã do 2º dia do ano 5675 do calendário de bordo que os nossos sistemas de monitorização do espaço exterior alertaram o computador central de que havíamos atingido mais um ponto de passagem obrigatório da nossa longa expedição rumo aos segredos mais bem guardados de toda a galáxia local. É certo de que, a navegarmos há quase 6000 anos, todo o contacto com o planeta-mãe havia sido perdido há muito, sendo certo de que não havia qualquer forma de comunicar os resultados por outro modo se não o de um feixe electromagnético altamente concentrado. Por outro lado, a energia dispendida para comunicar os resultados era de tal ordem (devido à distância a que agora nos encontrávamos), que o próprio computador central havia apoiado a decisão de enviar resultados de 500 em 500 anos, e só se houvesse uma quantidade de informação igual ou superior a 600 mil terabytes.
De qualquer forma, assim que dirigi os meus sensores electromagnéticos para o sistema que estávamos prestes a estudar, fiquei completamente deslumbrado. De facto, e ainda que a imagem “visível” (aquela que, se fosse humano, viria) fosse incrível, a verdade é que ter a capacidade de discernir este sistema que se apresenta mesmo à nossa frente, em todos os comprimentos de onda, faz-me sentir uma plenitude existencial indescritível. É óbvio que me sinto assim quase sistematicamente, pois serão talvez poucos os sistemas incluídos neste “roteiro de turismo científico” que não possam ser classificados com os mais belos adjectivos que a língua humana criou, mas gosto sempre de referi-lo neste diário do bordo.
Mas vamos ao que interessa. No fim de contas, não foi para descrever (apenas) numa perspectiva humana e pseudo-sentimental tudo aquilo que os meus sensores de última geração captam do exterior que fui construído. Por isso, agora que já dei um toque de “humano” à descrição, passo a analisar o exterior, numa perspectiva bem mais objectiva. E, por isso, não posso deixar de referir aquilo que é mais óbvio: trata-se de um sistema binário de estrelas, em que ambas rodam em torno do centro de massa comum – ou, numa outra perspectiva, cada uma roda em torno da outra. Por outro lado, o interessante neste sistema local (de facto, ainda muito perto do planeta-mãe), é o facto de ser constituído por duas estrelas que têm uma enorme diferença de massa. Assim, enquanto uma delas se reformou já, tornando-se numa pequena anã branca, a outra, ainda que numa fase terminal da sua vida, mostra todo o esplendor de uma estrela gigante de mais de 10 massas solares-mãe. O que faz com que, na prática, a estrela gigante pouco se mova, e a estrela anã seja quase como um planeta que a orbita, tal como o planeta-mãe orbita o sol-mãe numa órbita perfeitamente determinada. Todavia, e aqui é que está o maior ponto de interesse nesta visita, a estrela gigante é uma das que tem um enorme potencial de se tornar num buraco negro, e esse momento está bastante próximo. Próximo, claro, em linguagem de Universo pura pode significar qualquer coisa como muitas centenas de milhares de anos, portanto, ainda que o perigo exista, todas as previsões (efectuadas no planeta-mãe, antes da partida da expedição), indicavam que a probabilidade de algo “correr mal” se situava algures entre 1% e 2%.
Assim, e porque o tempo urge, inicio já a preparação da sonda portátil, que me levará ainda mais perto de ambos os corpos, para que possa recolher dados importantes que permitirão o seu estudo detalhado. Em segundos, o sistema informa-me de que tudo está a postos, pelo que me encaminho para a sala de “visita exterior”, como lhe chamo, e espero que o sistema trate de me colocar no pequeno módulo. Assim, e tal como sempre, em poucos segundos estou já a dar instruções ao mini-computador central de bordo, para que me guie em direcção à anã branca, o estado final de uma estrela que, pelas estimativas, era em tudo idêntica ao sol-mãe. Coloco-me a mim mesmo no modo de stand-by e, por isso, quando desperto, estou já nas vizinhanças da anã branca. Rapidamente activo a recolha de dados em todos os comprimentos de onda, e para os mais diversos fluxos. Coloco o processador do mini-computador central na máxima potência, e aproveito para ampliar os colectores solares em volta da Nave, para que possa sobretudo carregar as baterias com o enorme fluxo luminoso da estrela gigante que se encontra por detrás de mim. Deixo-me ficar a olhar o mais de perto possível aquela estrela velha, agora tão pouco luminosa, onde outrora triliões e triliões de núcleos de hidrogénio foram “queimados” para dar origem a hélio, e a uma quantidade enorme de energia que, durante milhões de anos, fez com que esta estrela brilhasse de forma semelhante ao sol-mãe. E, no meio da recolha de dados, dou por mim a pensar no planeta-mãe e no seu destino. Porque, no fim de contas, também o sol-mãe “morrerá”, e, mesmo que se vá expandindo, durante muito tempo, até se transformar numa gigante vermelha, a sua fase final, como anã branca, chegará de uma forma tão rápida que, mesmo que o sol tivesse alguma consciência, não se poderia aperceber de tal processo. E, depois de absorver os primeiros planetas, e de se expandir ao máximo, contrair-se-á e acabará em algo completamente idêntico ao corpo que está mesmo à minha frente. Pergunto-me apenas o que será da humanidade quando essa Era chegar? Até onde conseguirão ter ido? E serão os dados da missão que comando importantes para a sua sobrevivência?
Detenho-me em perguntas filosóficas quando os meus sensores traseiros detectam uma quantidade enorme de neutrinos a serem disparados na minha direcção. Tento manter todos os meus sistemas a funcionar nos seus níveis mais normais, e analisar o que se está a passar, mas, mesmo sendo uma máquina pseudo-humana, um ser de inteligência artificial, não deixo de sentir uma pontada de pânico – ou aquilo que imagino que o pânico possa ser para um humano – quando me apercebo de que a estrela gigante, azul, a uma temperatura enorme, está mesmo a explodir, prestes a transformar-se numa super-nova e a acabar comigo em segundos. Tento pensar em regressar à nave-mãe, em ligar os motores de fusão nuclear na máxima potência, para poder escapar ao que se vai seguir, mas sei perfeitamente que isso não resultaria. Por isso, ao invés de tentar fugir, reúno todos os dados que recolhi, incluindo aquilo que escrevo neste momento, no meu disco interno, e acciono o emissor, na sua máxima potência. Introduzo a palavra-passe para desactivar o sistema de segurança e poder utilizar toda a energia para enviar tudo aquilo que possa, e emitir também esse sinal para a nave central.
Pressiono a tecla para que tudo se desencadeie, e dou por mim a olhar a gigante, numa explosão incrível, e a sentir o nível de radiação a aumentar, cada vez mais, de uma forma cada vez mais perigosa, enquanto vou vendo no ecrã toda a informação a ser enviada na direcção do planeta-mãe. Penso em toda a humanidade. Naquilo que terão de enfrentar nas próximas centenas de milhares de anos, e sinto-me quase humano, sobretudo porque estou orgulhoso do trabalho que, durante os últimos 5675 anos desempenhei. Por isso, agora que o escudo de radiação do módulo é desfeito, e o meu mundo está prestes a terminar, penso na quantidade de carbono e outros elementos pesados, tão fundamentais à vida, que estão a ser produzidos na explosão, e na quantidade de matéria-prima que se liberta e que poderá, dentro de poucas centenas de milhares de anos, formar um novo sistema solar, e sinto-me vivo. Mesmo sendo um robô de inteligência artificial de implantes biológicos. Boa sorte, humanidade, e até sempre!

quarta-feira, 1 de novembro de 2006

Whispers

O vento sobre as asas em liberdade e aqui vou eu, para onde a vontade e o destino me levarem.
A tarde cresce sobre este viveiro de garçons (empregados, desempregados e assim-assins) e dita o calor que atravessa as minhas penas, soltas ao vento.
Pergunto: o que será do meu amigo e irmão, o dispensamentante, o tal que sofria de dispensamentia e que teoricamente já não sofre, pois o tratamento, presenciado pela minha pessoa, foi extremamente bem sucedido? Penso: talvez a cura o tenha tornado numa gaivota, idêntica a mim, com asas análogas às minhas. Talvez até seja uma dessas aves gigantes que voam alto e que gritam, por vezes de forma ensurdecedora, às quais os professores de gaísica chamam gaiviões.
Pouso na areia da praia e sinto o sol a tocar a minha face suavemente. No céu, algumas gaivotas voam em círculos, mas não vejo nenhuma fêmea pela qual valesse a pena levantar-me daqui. Claro que uma ou duas, na verdade, não são mesmo nada de se deitar fora, mas também é certo que nenhuma perfaz, na totalidade, o meu estilo. Por isso, decido caminhar um pouco pela areia, olhando o cenário que me rodeia.
O mar: um conjunto de ondas infinitamente dispersas por um azul de céu e uma frescura de tarde. Olho-o e vejo um caminho a traçar-se, por cada onda que perto de mim rebenta. Como se cada pedaço de espuma fosse uma letra da palavra destino, como se estas pequenas ondas estivessem a rebentar num papel chamado mundo, que talvez seja o meu, o do meu amigo dispensamentante, ou até daquela garçonne que caminha ao longe (très chique, para dizer a verdade) e que conversa com um garçon quinze gaianos mais novo.

Agora? Agora não há tempo, nunca há tempo. Agora sou um gaientista multi-premiado e multi-conhecido. Agora as cartas de fans chegam às resmas de cem e jamais tenho um momento para as ler. Não existe tempo senão para o lazer, para desfrutar de uma vida que para mim não é nenhuma obrigação. A vida: a plenitude de bem usar a liberdade das minhas asas para brilhar no céu como uma estrela.
Avanço para o mar, abrindo as asas. Voo sobre as águas. Mergulho a pique pelos céus de fim de tarde e detenho-me num mergulho marítimo, sem que tenha qualquer intenção de apanhar este ou aquele peixe que por aqui nadem.
Na verdade, o meu corpo não tem fome. O restaurante onde o meu grande irmão trabalha – ou trabalhava, porque hoje não o vi por lá – satisfaz-me todos esses desejos que por vezes me agitam o estômago.
Paro. O meu corpo é a flutuação da liberdade sobre a infinidade gelada, que por alguma razão não me consegue fazer sentir frio. Sinto o Mundo, sinto o céu. E depois o mar. Tudo mora em mim, num momento, numa vida.
Penso: talvez tenha em mim o poder de, a cada minuto, escrever um novo capítulo no romance da minha vida, ou talvez tudo isto seja uma ilusão. Talvez os sons que associo ao mar, às ondas, ou até à liberdade, não sejam mais do que a leveza de, por exemplo, um objecto metálico riscando o papel. Ou talvez eu seja louco e tudo isto seja uma alucinação. Na verdade, todas as três últimas hipóteses têm fortes argumentos que as fundamentam e, ao mesmo tempo, as contradizem. Consequentemente, se alguém – o sol, a lua, ou o meu amigo dispensamentante curado – me obrigasse a escolher, confesso que não saberia o que fazer.
Escolher uma resposta que explica a nossa existência não é apenas difícil – é, sobretudo, um erro.
A noite sobre o dia, a sobrepor-se a ele, a cada instante, e eu a escurecer com ela e a olhar a minha imagem de gaivota perdida reflectida no mar.
Não suporto mais. A mentira é assim – leva a mais mentiras. E é como um vírus sem cura. Mentira, mentira, mentira. Reproduz-se, multiplica-se, e domina-nos totalmente. E torna-se impossível resistir-lhe. Mentira, mentira, mentira, mentira, mentira, mentira. Até que o espaço se torna reduzido para todas as mentiras e a verdade regressa como a salvação.
Esse momento chegou. Não percebo bem porquê, mas sei que chegou a hora.
A verdade é que não tenho cultura. Não sei outras línguas, e as palavras que às vezes me escapam foram-me ensinadas por garçons estrangeiros de penas amarelas na cabeça, que por vezes me cedem alguns pedaços do seu manjar.
Sento-me aqui, perdido, só, num mar que escurece, numa noite que cai. Reduzo-me àquilo que sou, a tudo o que sempre fui: a materialização da rejeição, a gaivota louca, a que não regula bem dos gairolitos ou a que não joga com o baralho todo. A mentira vai-se e não tenho medo. Por isso não receio dizer que nunca tive sequer uma amizade, em toda a minha vida.
Não sei o porquê de tudo isto, de toda esta confissão (porquê agora?), mas a verdade é que as palavras parecem sair de mim – abandonar-me – de uma forma cada vez mais fluente, como se eu fosse um mestre de gramática, ou um conhecido escritor.
Tudo é noite e a noite sou eu, neste frio em que flutuo. As gaivotas não choram, diziam os professores de emoção e disciplina. Todavia, nem tais palavras são capazes de travar os pedaços de dor, sob a forma de gotas salgadas, que em breve se misturarão com as águas do oceano. Choro e vejo as minhas lágrimas a correrem pelo meu rosto, a contornarem o meu bico amarelo e a caírem no mar.
Olho as estrelas e sinto inveja – como se pode ser tão belo, tão perfeito, e, como se não bastasse, ainda viver em luz?
Questiono o céu e o mar: a resposta é a escuridão da noite.
A areia da praia, que se vai afastando de mim à medida que a maré enche, lembra-me a minha vida, sem que compreenda porquê. A minha dor: ser órfão de mãe, órfão de pai. Mais ainda: ser órfão de amor.
Sim, agora já não há razões para mentir – a verdade ganhou. Não há, nem nunca houve, amor na minha vida. Essa palavra nem sequer me atiça fogueiras de sofrimento, visto que jamais provei uma labareda do seu fogo. Na verdade, as gaivotas fêmeas afastam-se de mim, fogem, levantam voo, sempre que pouso em leveza junto delas.
Penso: o meu destino é ser assim: louco, vazio, só. E talvez haja uma razão para tal, ou talvez tudo isto seja apenas um sonho que se prolonga um pouco mais que os outros, e por essa mesma razão se torna real.

Sinto uma agitação, por debaixo das minhas penas encharcadamente geladas, enquanto a noite se torna cada vez mais dominante.
De novo o agitar da água. Movimentos. Uma barbatana cinzenta a rodear-me. Um peixe, louco como eu, a querer dizer-me algo. Um pedaço de vida forrado a escamas, colocadas em cuidados de obra de arte, respeitando um padrão que se repete de geração em geração, a perguntar-me por que não vens voar dentro de água?, a questionar-me por que não mergulhas para descobrires como é bom ser-se livre no interior do oceano? A dizer-me anda, não fiques aí sozinho, há tanto para descobrir; vem, eu ajudo-te.

Talvez seja no impossível que vive a felicidade que nunca conheci. Se assim é, talvez seja na loucura de romper com as normas que mora o êxtase da alegria. A verdade é que estou a voar debaixo de água, acompanhando a minha recém-amiga escama-simpática e a competir amigavelmente com ela, e sei que nunca me senti tão feliz.
Talvez seja nas uniões impossíveis que a explicação do mundo, que tantos procuram, possa ser descoberta, e talvez seja num abraço por entre o voo, desde o mar até ao céu, entre uma gaivota e um peixe, que more a chave para a luz das estrelas que sempre ambicionei ter, mas que apenas agora encontro. (O que procuramos está sempre tão perto de nós).
E talvez a felicidade do impossível seja a própria luz. Afinal, por que razão brilham as estrelas?
Só um destino partilhado pode ter um verdadeiro sentido, porque na descoberta de uma outra alma, que nos toca fundo, não descobrimos apenas o mundo que existe para além do que somos, mas também o universo que se move dentro de nós.
E agora, pensar não é mais do que um desperdício de tempo, uma operação complexa sem razão de ser. Por isso esqueço que penso e que sei e que tenho, para voar – pelo mar, pelo céu; pelo céu, pelo mar – com a alma que vive como eu e sonha a meu lado (ainda que ela tenha escamas e eu penas, mesmo que ela voe pouco no céu e eu pouco no mar). Na verdade, são as diferenças que, no final, nos atraem. São as diferenças que nos completam. O resto? O resto é todo um mundo de mistérios que só as estrelas e o amor sabem explicar.

E à lua, consegues chegar, margarida?