sábado, 25 de dezembro de 2004

Natal é saber o que é Natal e não precisar de o celebrar

Natal é este mar de entropia a aumentar porque há algo que nos liga e aquece. Natal é dar-te a mão e darmos todos as mãos. Mesmo que saibamos que não podemos tocar nada, porque há sempre um vazio, por mais pequeno que seja, entre nós e o mundo.

Natal é poder sentir tudo, mesmo aquilo que não existe e não é possível, mesmo o que dizem ser mentira. Natal é gerar energia por tudo o que somos e libertá-la no gelo da noite, quando a estrela guia os reis que ainda caminham perdidos.

Natal é haver esperança no horizonte, mesmo quando não há horizonte e o ar nos gela os sentidos. Natal é sermos o mundo inteiro.

Natal é saber o que é Natal e não precisar de o celebrar.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2004

Madrugada

São 4 da manhã 5 da manhã e o relógio tic-tac-tic-tac sem parar como se a sua vida tivesse origem numa infinidade de algo que desconheço talvez por me transcender. Estou desperto e nem sei bem porquê. Os olhos simplesmente não obedecem ao hipotálamo e não cedem aos tecidos musculares esqueléticos e lisos. Estou talvez só, em frente à brancura do papel em mim mesmo e escrevo. Escrevo como um alucinado. Álvaro de Campos e Miguel Torga e Vergílio Ferreira e muitos mais, numa só voz, à Lobo Antunes. Loucos? Que se lixe a loucura. A esta hora da madrugada não há loucura nem razão: o que importa é saber gritar que se está vivo.

domingo, 28 de novembro de 2004

Só um corpo

Um dia havia toda uma vida a correr por mim por fora por dentro, havia um sol, uma lua, um céu sempre a azular, um fogo que ardia longe no horizonte, até um sorriso a ondular os campos. Um dia havia eu e o que havia de mim num corpo, numa existência talvez, andando por algo a que chamava realidade, que de facto podia muito bem nem ser real. Um dia o fogo apagou-se e o céu caiu. Um dia o sol desligou-se e a luz escureceu. Um dia houve um desaparecimento de sorrisos, e deixei de haver eu em mim.

Por isso, um dia, ficou só um corpo, numa inexistência qualquer.

sábado, 27 de novembro de 2004

Criar é Humano

É absolutamente fantástico o que um pouco de imaginação é capaz de produzir. E é tão fácil deixar que ela flua ao seu próprio ritmo para nem sequer necessitarmos se nos preocupar.
Já o disse, contudo não hesito em repetir que é a nossa parte criativa que vale ainda mais que tudo em nós e que só criando é possível apercebermo-nos tanto da nossa essência, como da vida que a precede e a possibilita.
Por tudo isto é indiscutível, pelo menos para mim, que se somos alguma coisa maior do que nada, à escala universal, é porque possuímos essa extraordinária capacidade de imaginarmos e criarmos infinitas possibilidades de concepções e realizações.

Criámos Deus à nossa imagem, porque o fizemos Criador.

sexta-feira, 19 de novembro de 2004

O Caminho Pelas Ruas

Caminho pelas ruas da cidade e olho as multidões, imunes a qualquer força que lhes altere o estado cinético, devido à sua inércia quase infinita. Mas ainda assim adivinho-lhes os sonhos – aquelas estranhas coisas que se esforçam por não dar importância – e sinto-lhes a vida. Sinto-lhes o bater de algo muito mais além do que o próprio coração. Não que seja muito maior, mas por não ser necessariamente feito de matéria positiva.

De qualquer forma, não sou mais do que um qualquer elemento da paisagem. Isto porque quem caminha por entre a multidão é arrastado por ela e raramente consegue parar para pensar. Os que param, ou têm um esgotamento, ou são internados num qualquer hospital psiquiátrico.

Mas eu caminho e quero salvá-los. Mesmo consciente do perigo que essa palavra acarreta. Mas salvá-los de quê? Bem, na verdade nem eu sei ao certo do quê. Todavia, sei que aquilo que me move se mostra tão verdadeiro a mim que tem que significar algo – ainda que pouco – para todos os outros.

quarta-feira, 27 de outubro de 2004

Fim

Perdi a originalidade
algures no percurso tempestuoso
através dos vales do metro perfeito
e a língua soltou-se
em forma vazia
como se nada mais soubesse falar.

Disseram-me que era tão
pequena a minha poesia
que eu, na ânsia de escrever
a poesia que queriam de mim
adubei a terra dos meus versos
mas quando colhi o silêncio e o amor
já não era poeta.

terça-feira, 19 de outubro de 2004

Whispers

Sempre que um dia termina, as estrelas nascem e há luz. Muito mais luz do que de dia, ou do que em qualquer cidade do mundo. Porque a luz das estrelas distantes brilha mais do qualquer outra visão fantástica que possamos ter.
A luz que vem de tão longe é o próprio tempo a segredar-nos a vida, e a sua brevidade. A luz, quase tão velha como o tempo, percorre todo o universo, para que possamos saber o que é a palavra sonho, a chocar risonha contra a nossa retina.

Diluição

Era a primeira vez que entrava naquele bar. Talvez por isso, quando caminhei em direcção ao balcão, tenha sentido tantos olhares a dirigirem-se a mim, analisando-me, temendo-me até. Claro que tal reacção não durou muito mais do que alguns segundos. A minha baixa estatura e o meu olhar cansado não metiam medo a ninguém, e, devido a isso, os presentes rapidamente se aperceberam de que não havia nada a temer.

Para dizer a verdade já nem sei o que pedi, porque bebi tudo isso como se de ar se tratasse. Dava golos, tentando diluir no álcool (ou naquela coisa que me ardia o estômago), o desespero. Alguns matulões aproximavam-se de mim e perguntavam-me, rindo, se estava bêbado. Eu olhava-os, e via milhões deles. Respondia-lhes que não sabia e que isso não me importava. Dizia-lhes que havia uma ânsia que inquietava, uma desilusão que me preenchia quando olhava o mundo, um sonho desfeito em nada quando me olhava no espelho do futuro. Chamavam-me louco e saíam, a rir, talvez com menos álcool no sangue, mas também com muito menos em que pensar.

Durante semanas aquele bar diluía-me a dor que surgia de dentro, como reacção ao que fora de mim havia. Todavia, cada noite em que chegava a casa e ficava três horas para acertar com a fechadura, e mais duas para conseguir rodá-la da forma certa, sentia-me mais vazio. Deitava-me a ver o mundo a espiralar, e sentia a minha ânsia muito mais diluída em todo o álcool que bebera. Mas logo vinha a dor física, e então era como se todo o álcool se evaporasse, e a ânsia que gritava em mim doesse tanto como a minha cabeça.

No que me tornei eu?

segunda-feira, 11 de outubro de 2004

De noite

Agora a sério, onde foste a noite passada, que eu fiquei toda a noite acordado e não vi sequer a tua sombra em bicos de pés a atravessar o corredor?

domingo, 3 de outubro de 2004

Ruas desertas

Nas ruas desertas parece não haver a mesma poesia
que as contempla durante o dia. Não é que saiba
como são durante o dia – porque de dia o meu
ser dissipa-se como a escuridão – mas ainda assim,
agora que o silêncio perscruta a calçada suja, mesmo
que só eu caminhe, sinto rumores de milhares de
passos. E há vozes e pastas e corridas. Talvez
por isso me sinta tão bem na solidão de ser noite.
Ser dia é ser o desconcerto. É negar os sonhos.
É cair à voz da crítica. Porque só à noite é que
podemos escutar o universo, sem que a estrela da
morte interfira.

quinta-feira, 19 de agosto de 2004

Verdes e Vermelhos

E se o abismo que nos separa
dos verdes troncos com folhas
se resumisse a uma só escolha
fruto da vontade de quem germinava ainda?

Duas células fotossintéticas
discutiam no lodo da vida.
Filósofas de exemplo, antípodas por natureza,
decidiram que a existência tinha de ser
bem mais do que lodo e sol.

E uma houve que escolheu a vida eterna
sonhando com o dia longínquo
em que havia de atingir a luz que no céu espelhava
mesmo sacrificando todas as sensações
que o mundo exterior lhe poderia conceder.

Contudo a outra,
qual Álvaro de Campos,
não se importou de tornar a sua vida curta,
se tal significasse a possibilidade de sentir
cada pedaço do mundo em si
- ainda que isso significasse
consumir todo o mundo.
Não, era impossível chegar ao sol.
E a vida eterna seria um tédio adiado.

A animal preferiu a sensação e o momento
criou a inteligência a partir da sensação
e voou mais alto.
A vegetal escolheu a vida e a eternidade
atingiu o equilíbrio da independência
e a eterna felicidade.

quarta-feira, 30 de junho de 2004

A Casa

Há anos que as letras partiram sem deixar qualquer rasto que pudesse seguir. A casa, outrora morada de sonhos e paixão, ficou totalmente vazia. Como se nunca tivesse sido habitada.
Entre quatro paredes fiquei apenas eu, ou o que de mim resta. Agora, a única melodia que perfaz o ar é o pesado respirar do meu desespero. Tudo o resto se desfez em pouco em fumo. Ainda assim, as memórias são felizes. E digo-o, porque sempre que as invoco todas as fragrâncias que me inspiravam os sentidos voltam a percorrer-me, ainda que de forma menos intensa.
Às vezes, na insónia da noite, relembro o fluir das palavras. Quando as minhas mãos tinham pedaços de magia e possuíam o dom da vida.
Depois, o amor secou e ficou só a lembrança de ser feliz. Por isso choro, mas faço-o não com o desespero de quem maldiz a vida, mas com a consciência da felicidade que pude abraçar – ainda que por breves instantes. Isto porque se choro, hoje, é porque tive razões para sorrir.
Triste daquele que nunca chorou, porque nunca soube qual o sabor de um sorriso.

quinta-feira, 27 de maio de 2004

Respostas

Às vezes a explicação para o mais fantástico dos eventos reside num fenómeno exterior à realidade, tal como um som exterior interfere num sonho.
A questão é: como é que fazemos para acordar deste mundo?

A árvore da poesia

Gastaram-se as palavras para te definir
(a árvore da poesia secou)
talvez até restem alguns frutos
que heroicamente tenham sobrevivido
à queda de ramos que já não existem

porém já nem importam as sementes
(a árvore da poesia secou)
mesmo que uma outra germinasse
de restos de palavras
já não seria poesia.

Seria talvez a natureza
ou o céu - até o luar -
mas não, nunca a poesia,
essa morreu
partiu
secou
jamais voltará.

Gastaram-se as palavras para te definir
e por isso o silêncio
por isso o céu gelado e a noite eterna.

Gastaram-se as palavras para te descrever
e ainda assim
continuas a ser
um fogo de estrelas e de mar.

quarta-feira, 19 de maio de 2004

vida

a vida esgota-se a cada instante
rodopia dançando ao sabor
da ilusão do tempo
e escorre por entre os dedos
sempre que a tentamos agarrar

Eucariontes

Um dia houve
longínquo tempo esse
em que dois pedaços do mesmo ser
decidiram caminhos diferentes seguir.
Enfim, partir.

E houve um que seguiu
a procura individual do ser
mesmo sabendo que tal ambição
o condenaria quase certamente
à eterna solidão.

O outro, pelo contrário
escolheu a vida em conjunto
num só.
Disse milhões de vidas em mim
e nesse instante não soube
que tais palavras significariam
a perda de identidade.

E assim, de duas vontades
se fizeram dois ramos da mesma árvore
proca e euca, chamam-lhes
às duas faces da mesma vida.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2004

Heterociencioteoria

O cientista é um especulador.
Especula tão completamente
Que chega a fingir que é esplendor
A verdade que nunca lhe navega a mente.

E os que estudam o que postula e teoriza,
Nas válidas teorias crêem bem,
Mas não há verdade completa, precisa,
Tão-pouco que eternamente se mantém.

E assim nas calhas de fórmulas e leis
Deduz, na ânsia de entreter a razão
Desfolhando a enciclopédia de cientistas-Reis
Que aceleradamente nos conduz à destruição.