terça-feira, 12 de dezembro de 2006

Santiago de Chile



E acabou-se a conferência em Santiago, no Chile. A 4th Advanced Chilean School of Astrophysics: "Interferometry in the Epoch of ALMA and VLTI". Foram 7 dias memoráveis, que começaram com uma mala que ficou em Madrid e acabaram com videos e fotografias pseudo-artísticas de Lisboa, vista do ar. Pelo caminho ficou o caos tão barulhento mas ao mesmo tempo único de toda a cidade, o metro com pneus de "última tecnologia" (lol), a estação de Santa Luzia, com a decoração doada pelo Metro de Lisboa, os muitos e muitas sul americanos porreiros e que até percebiam português. O pior foi mesmo a estranha noção de "distância" dos chilenos e chilenas, sobretudo com as palavras "perto" ou "rápido" :P. Mas distâncias à parte, ainda deu para ver o céu do hemisfério sul e tudo, a cerca de um quilómetro e meio de altura, com um telescópio nada mau (cerca de 50 cm de abertura, ou seja, um belo monstrinho amador).



Para já ficam algumas das melhores fotos :)

segunda-feira, 20 de novembro de 2006

Olhar




Há um olhar que persegue
que fascina
que prende.
Um olhar que brilha
que sopra
que agita a vida e o mundo
e que o faz girar
numa magia inigualável.

Um olhar que ondula no mar
que se espelha no céu
e que tinge o céu de safira
com a luz dos sonhos.

Um olhar, enfim
que é a vida.

Para trás




Tudo o que era ficou para trás quando parti. Todos os sonhos, as ambições – e até os pesadelos. Deixei os medos com a mesma naturalidade com que abandonei o amor dos contos de fadas, e matei as memórias felizes com a mesma crueza com que lidei com as mais horripilantes. Despi-me de mim mesmo. Cortei os membros, o peito. Retirei o meu próprio coração. Fiz-me e desfiz-me em pedaços. E, por isso, quando parti, não restava nada de mim. E tudo ficou para trás. Para sempre.

Prosa

Há quantos séculos não falamos, poema?
Há tantos, que provavelmente até tu
te deixaste cair
na inércia de seres
prosa.
Apenas prosa.
Para sempre prosa.

Escrevo

Escrevo, sim. Ou talvez. Já nem importa. Escrevo apenas, mesmo sem saber se o faço, ou por que o faço. Por mim? Por ti? Por ela? Por ele? Ou por quem mais? Talvez por nada. Sim, escrevo por nada, mas nem sequer penso demasiado nisso, para não o concretizar, para me manter no nada. Do nada para o nada não é preciso movimento, translação, viagens. E, por isso, posso ficar aqui, abrigado no seio destas palavras que não sei o que dizem ou significam, mas sei – ou penso – que existem em mim ou em algo que penso que sou eu. Escrevo, sim. Ou talvez não.

Vida

É incrível como podemos passar o dia a dia completamente imersos em pensamentos sobre o que há-de vir, concentrados no futuro e em tudo aquilo que queremos vir a conseguir. Podem até ser as coisas mais simples e inocentes, como a "felicidade", ou até coisas mais terra-a-terra. Porém, a verdade é que, muitas vezes, fixamo-nos de tal modo nesse dia-a-dia de procura que acabamos por nos perder em argumentos tão ridículos como a "falta de tempo", ou a "falta de paciência". Corremos e suamos, por vezes passamos noites sem dormir. Às vezes irritamo-nos pelas razões mais ridículas e criamos conflitos onde antes parecia haver apenas amizade. E, no final, estamos tão cansados de acharmos que estamos cansados, e tão agarrados à nossa procura e ao "futuro", que nem sequer temos tempo para pensar no presente. Para nos apercebermos de que a vida é este instante em que alguém escreve, em que alguém lê. Este instante em que podemos disfrutar de cada inspiração e expiração. Este momento, este segundo, esta hora, em que nos podemos sentir vivos. A vida é aqui e agora.

terça-feira, 14 de novembro de 2006

The World where poetry is dead

I stand alone, starring in the dark.
Loneliness comes. She whispers me a sad song
Which the angels did not sing.

Suffering hearts! How they scream for love!
But war and pain is what they get from above
In this world, where Poetry is dead,
Buried in the hearths which no longer dream.

I close my eyes, losing myself,
Hoping for a miracle to happen
But even miracles are forbidden in this reality!
I hear my hearth beat, as if it was the last thing
I would hear in this world of pain
And everything is impossible to overcome…
I fall apart with a dead hearth whispering for salvation
Hoping I would have been a star, twinkling in a constellation
Far… Far away from this nightmare.

If only there was a bit of Poetry left…
It would be so easy to dry all tears
To make stars from bleeding scars
And smiles from the deepest fears…

segunda-feira, 13 de novembro de 2006

Se... (2003)

Se para isso tivesse voz e se houvesse mundo suficiente
Gritaria alto como um trovão e terno como uma carícia
E, entoando teu nome, toda a Terra se cobriria de amor
E a esperança cairia dos céus, estremecendo todo o planeta
E a água e o fogo, a terra e o ar voltar-se-iam a amar.

Se tivesse para isso asas e se Mundo para isso houvesse,
Correria rápido como o desejo e veloz como um arrepio
E correndo em teu nome, toda a Terra se cobriria de ternura
E o sonho voltaria em coração dos Homens, estremecendo o planeta
E a água e o fogo, a terra e o ar, voltar-se-iam a amar...

O Dia em que me viste (2003)

A Brisa tocava o mundo tão docemente,
Enquanto o Sol o iluminava, dando-lhe vida.
O Céu, esse, era espelho de azul magnífico
E na Terra tudo se iluminava à tua passagem!

Impossível! Magia das Magias! Feitiço!
Entre teus passos cuidadosos e encantadores
Paraste, com todo o teu brilho, sorrindo
Fazendo desmaiar cravos e rosas de amores!

Meus olhos eram flores do sol
E só a estrela maior me faria deixar meu estado errante!
Mas como podes tu, estrela incrível,
Dares-me vida, se sou tão pequeno, insignificante?

Mas deste-me! Foste luz onde só o negro imperava!
Pois um só olhar teu ilumina tudo o que existe!
O teu olhar, que tudo cega com esse brilho imenso.
O teu olhar... que tudo apaixona, que é feitiço intenso!

O vento soprou forte e incessante!
O coração bateu forte, mais forte... e de rompante...
O que era, que seria? Tamanho espantar!
Eras tu, a Beleza do mundo, com tua presença de encantar!

A Era dos Descobrimentos Espaciais (I)

A espera revelou-se extremamente recompensadora para Sernot, o comandante-geral da Eva, no dia 1 de Janeiro do ano 2306 da era moderna. Ao fim de tantos anos de construção e preparação da nave, e depois de meses dispendidos na escolha e preparação de toda a equipa tripulante, o maior sonho de juventude de Sernot era então a concretização do mais notável e ambicioso projecto concebido pela humanidade. E Sernot, mais do que qualquer um, sabia o quão árdua tinha sido toda essa extensa etapa do projecto Eva, que chegava ao fim com os últimos preparativos que antecipavam o lançamento. Porém, e ainda que não conseguisse esconder a emoção e alegria que lhe corriam como um fluido pelo sistema nervoso, era também ele o mais cauteloso nas declarações telepáticas à imprensa. "Afinal", pensava Sernot para si mesmo, "mais do que orgulho, devo sentir a tremenda responsabilidade que, quer queira quer não, está depositada em mim".
E não era para menos. Sobretudo porque, ainda que a humanidade olhasse agora para Eva como a salvação de toda uma espécie, e para Sernot como o seu Messias, a verdade é que a missão, prestes a começar, estava longe de poder ser considerada um sucesso. É óbvio que era essa a vontade de todos os intervenientes, directos ou indirectos, mas, dado o objectivo final, a promessa de êxito nunca poderia ser muito mais do que uma simples promessa política dos tempos primitivos.
Todavia, nada disso importava à comunicação social, quase toda ela entusiasmo e confiança. Era de facto extraordinária a diferença de discurso que se verificava entre aquele utilizado para descrever a nave – e tudo o que ela significava – e o utilizado para revelar a "horrível descoberta", feita poucos anos antes, e que, ainda que tivesse dado um empurrão decisivo no projecto Eva, foi também motivo para um pessimismo que nunca antes se abatera sobre a humanidade. Havia sido descoberto o prazo de validade da Terra e – diziam os estudos – a data de expiração aproximava-se a passos larguíssimos. "A Resposta, a Salvação", noticiara o diário wireless World News, no dia do arranque oficial do projecto de Sernot, "chama-se Eva".
- Cidadãs e cidadãos de todo o mundo, é com enorme prazer que vos comunico, enquanto responsável pelo projecto Eva, e na qualidade de comandante-geral, que, tal como previsto, o lançamento da nave espacial Eva, com destino ao planeta SD-GS2056, será realizado amanhã, no horário previamente estabelecido. Assim, e em nome de toda a tripulação, compete-me assegurar que de tudo faremos para agarrar esta fantástica oportunidade de sobrevivência da espécie humana, mas também alertar para todos os perigos e possibilidades de insucesso que teremos de enfrentar. Todavia, e ainda que o calculismo nos obrigue a temer o pior, todos nós sentimos de forma intensíssima que este é o momento, e que não falharemos. Amanhã, cidadãs e cidadãos, começa o nosso maior desafio. Até breve!

Horizonte por achar

rasgo o mar por entre os sonhos
buscando talvez a razão de procurar
aquilo que só há no não existir
e encontrar

venço a fúria de querer ter o que não há
desfazendo a inércia de não ser luz
como quem crê no infinito
e em o olhar

mas no final do tempo há um relógio que desperta

- o mundo recomeçou

Vida

a vida esgota-se a cada instante
rodopia dançando ao sabor
da ilusão do tempo
e escorre-se por entre os dedos
sempre que a tentamos agarrar

Sempre

foi sempre assim
o rio aqui e tu tão longe
a lareira a crepitar em sonhos
e o mundo inalcansável

Eras tu

eras tu no vento
rodopiando em mim
era o teu olhar
ondulando o universo
era a tua pele na minha
a ternura feita brancura.

Álvaro

quero criar tudo
de todas as maneiras
quero ver o mundo de acordo com todas as teorias

tragam-me todo o alfabeto
grego fenício árabe ocidental
concedam-me toda a lógica
e a matemática a química a física.

quero saber tudo de todas as maneiras
quero ver o mundo
e vê-lo é bem mais que olhá-lo,
é sabê-lo.

pois que venham todas as invenções
que se negue a existência
de espaço
de tempo

que se descubram novas realidades
no nosso próximo universo
e que não haja um fim
uma qualquer meta que diga acabou
pois eu quero, mas é o querer que me move a alma e não
o achar.

inventem-se novos homens
novas vidas
máquinas em nós e nós nelas.

que eu quero saber tudo
criar tudo
ver tudo
sentir tudo

enfim..
de todas as maneiras!

Subi ao céu nas asas de um vector rebelde

subi ao céu nas asas de um vector rebelde
com a fome de quem devora todo um teorema
em busca de solução,
com a ânsia de quem percorre o mundo inteiro
num instante
e com a pressa de chegar
mais rápido do que o próprio tempo.
ousei provar cada pedaço do que nos faz ser e não ser
cada interrogação sem resposta
cada brisa de arrepio por sentir.
estendi meus braços sobre tudo o que há
em equações de campo que não falham
e não sentem
e escrevi poesia a dez dimensões
como quem pensa no teu olhar
num tempo zero e infinito.

Regresso

Anoitecia, ainda que o Sol – ou aquilo que restava dele – tentasse ainda apoiar-se no horizonte, para de novo se levantar. Daen percorria agora a reduzida distância até ao seu destino de uma forma ainda mais calma e lenta. De tal forma que chegava a parar, durante alguns minutos, só para poder olhar o mundo à sua volta: ali, o lugar que fora seu, o universo que um dia conhecera melhor do que a palma da sua mão. E depois voltava a caminhar, sentindo no peito um arrepio que era um misto de saudade, suposição e talvez – embora ele nunca o pudesse admitir – de um possível arrependimento (ou pelo menos de uma vontade de tentar fazer tudo de uma outra forma).
O Sol escondera-se atrás das montanhas de Delfir quando Daen chegou finalmente à porta da sua casa. Ou melhor, daquilo que fora a sua casa durante os seus primeiros vinte anos de vida. Por momentos, quase acreditou que ali dentro ainda vivia toda a sua família, com toda a sua alegria e simplicidade, sempre ansiosa por convidados aventureiros e por ouvir as suas histórias de coragem.
Mas quando abriu de novo os olhos, e mesmo perante a escuridão que se ia abatendo sobre a casa, Daen sabia que nada podia ser como fora antes. Afinal, toda aquela zona fora atingida pela peste e sofrera uma invasão da parte dos terríveis Filxnors, com o único intuito de pilhar e roubar tudo o que tivesse um valor mínimo para ser vendido aos povos mercantes. De facto, e face a esses acontecimentos, era extraordinário que a casa se mantivesse tão conservada. Quase como se estivesse igual ao que fora, 40 anos antes, quando Daen a abandonou para seguir o seu sonho.
Com um arrepio a correr-lhe o corpo, Daen abriu a porta, lentamente. De dentro veio, quase instantaneamente, um leve cheiro a mofo, mas, ao mesmo tempo, uma brisa de algo que era tão familiar a Daen. Entrou, fechou a porta atrás de si, e, pela primeira vez desde há anos, sentiu-se verdadeiramente em casa. Como se nunca tivesse abandonado as montanhas de Delfir, a sua casa, a sua família, ou a única mulher que amou. Como se a sua vida tivesse sido tal e qual a do seu pai, a do seu avô e a do seu bisavô. Caminhou pela casa, onde outrora viviam mais de 10 pessoas, e tentou imaginar como seria se nunca tivesse partido. Teria sido feliz? Teria conseguido viver com o possível arrependimento de nunca ter seguido o seu sonho? E onde estaria agora, se ainda estivesse vivo?
Subiu as escadas que o levavam até aos quartos, e não conseguiu deixar de entrar naquele que um dia fora seu e dos seus dois irmãos mais velhos. Estava escuro. De qualquer forma, e tal como no piso anterior, Daen conseguiu perceber perfeitamente que a casa já vivera melhores dias. A madeira, devido às pragas e à humidade, parecia prestes a estalar por cada passo que ele dava, e toda a pouca mobília que ainda restava estava em péssimas condições. Porém, nem por isso Daen deixou de se aproximar do espaço onde outrora dormia. A cama onde cresceu e onde teve pela primeira vez o sonho que o levou para bem longe de Delfir. E, por isso, foi sem medo que se deitou nela, o seu corpo agora 40 anos mais velho do que da última vez. Fechou os olhos e sentiu-se calmo. Como se algo naquele momento, naquele espaço, lhe dissesse que ele conseguira. Que fora árduo, doloroso, e por vezes desesperante, mas que ele, Daen, cumprira o seu sonho, e estava agora, finalmente, de volta a casa. Mesmo que a sua casa – tal como ele – tivesse mudado.
Voltou a abrir os olhos, e viu, na sua mesa-de-cabeceira, um papel, muito amarelo. Curioso, Daen tentou lê-lo, mas a pouca luz que vinha do exterior era insuficiente. Por isso, não hesitou em dirigir-se para a janela onde – sabia – a luz de uma Lua cheia o ajudaria a matar a sua curiosidade.
Daen pegou no papel amarelado e gasto pelo tempo (quase tanto quanto a sua pele), e abriu-o, à luz da lua, e perante a brisa que soprava das montanhas. Não fazia a mínima ideia do que poderia ser, mas o seu coração, ainda há pouco tão calmo, batia agora com ansiedade e entusiasmo. Afinal, ali estava algo que ainda o podia ligar à sua vida de há 40 anos atrás, e a tudo aquilo que, mesmo tendo de abandonar, nunca deixara de amar com toda a sua vida.
Era um bilhete. Uma mensagem para ele, Daen, escrita por ela, Aelen, a mulher com quem sonhara toda a sua vida, e a razão pela qual o seu sonho nunca o tinha feito sentir-se pleno, mesmo depois de o realizar quase na íntegra. Porque há 40 anos atrás, quando ele lhe falou no seu sonho, ela decidiu ficar. Decidiu que não interferiria com o caminho de Daen, e que ela, Aelen, ficaria para sempre em Delfir, pois era esse o seu lugar.
Agora, porém, o coração de Daen batia ainda mais forte. Nas suas mãos estava algo escrito por ela. Uma mensagem, uma carta. E, pela primeira vez desde há 40 anos, ele poderia contemplar a sua letra. Ler os seus pensamentos. Sentir as suas preocupações, os seus sentimentos para com ele. Como se de novo pudesse cair nos seus braços, abraçar o seu corpo, ou sentir os seus lábios.

Para Daen, se alguma vez voltares,

A semana passada começou com notícias terríveis para todo o povo de Delfir. Ao que parece, uma peste incurável está já a matar os nossos compatriotas, e dirige-se para cá. E, como se não bastasse, também há boatos de que os Filxnors planeiam invadir-nos, unicamente para nos roubarem, destruírem, e depois partirem. De resto, já ouvi dizer que foram os Filxnors que trouxeram a peste para a nossa terra, com o intuito de nos deixarem ainda mais assustados e frágeis perante o seu feroz ataque.
E por onde estarás tu? Será possível que ainda te encontres vivo? E que estarás tu a fazer? Terás conseguido realizar o teu sonho quase impossível? Quem me dera poder saber…
Fazes-me falta, Daen. Por mais que tenha tentado parecer decidida, quando partiste, hoje tenho a maturidade suficiente para dizer que estou tremendamente arrependida. Se fosse hoje o dia da tua partida, teria até suplicado para que me levasses contigo. Para que me deixasses estar sempre perto de ti.
Todos me dizem que é inútil deixar-te esta mensagem. Que estás morto há muito, e que, em breve, também nós morreremos. E dizem-me que esta casa, a casa onde deixo este bilhete, e onde tu cresceste, não será mais do que um conjunto de ruínas, quando for totalmente destruída. Mas nem por isso deixo de ter esperança. Afinal, ainda recordo as tuas palavras: sonhar nada custa.
De qualquer forma, Daen, escrevo para que saibas que estou prestes a alistar-me no regimento de defesa de Delfir, pois sei que é o que farias, se aqui estivesses. A ti – ao contrário de mim e de muitos de nós – nunca faltou a coragem para enfrentar os maiores perigos e desafios, e por isso sei que esta é a decisão mais acertada de toda a minha vida.
Por tudo isso, e mesmo na eventualidade de esta casa sobreviver o suficiente para guardar este bilhete, e de tu voltares para o ler, o mais provável é que tenha sido violentamente morta por uma besta Filxnor. Porém, quando o for, sei que estarei mais perto de ti do que nunca, porque não só segui a tua coragem e exemplo, como também lutei para proteger tudo aquilo que sempre amaste em Delfir.
Para sempre tua,
Aelen.

sexta-feira, 3 de novembro de 2006

Diário do Bordo do Capitão Fx-45034-gl, Entrada 6M-5000

Foi pela manhã do 2º dia do ano 5675 do calendário de bordo que os nossos sistemas de monitorização do espaço exterior alertaram o computador central de que havíamos atingido mais um ponto de passagem obrigatório da nossa longa expedição rumo aos segredos mais bem guardados de toda a galáxia local. É certo de que, a navegarmos há quase 6000 anos, todo o contacto com o planeta-mãe havia sido perdido há muito, sendo certo de que não havia qualquer forma de comunicar os resultados por outro modo se não o de um feixe electromagnético altamente concentrado. Por outro lado, a energia dispendida para comunicar os resultados era de tal ordem (devido à distância a que agora nos encontrávamos), que o próprio computador central havia apoiado a decisão de enviar resultados de 500 em 500 anos, e só se houvesse uma quantidade de informação igual ou superior a 600 mil terabytes.
De qualquer forma, assim que dirigi os meus sensores electromagnéticos para o sistema que estávamos prestes a estudar, fiquei completamente deslumbrado. De facto, e ainda que a imagem “visível” (aquela que, se fosse humano, viria) fosse incrível, a verdade é que ter a capacidade de discernir este sistema que se apresenta mesmo à nossa frente, em todos os comprimentos de onda, faz-me sentir uma plenitude existencial indescritível. É óbvio que me sinto assim quase sistematicamente, pois serão talvez poucos os sistemas incluídos neste “roteiro de turismo científico” que não possam ser classificados com os mais belos adjectivos que a língua humana criou, mas gosto sempre de referi-lo neste diário do bordo.
Mas vamos ao que interessa. No fim de contas, não foi para descrever (apenas) numa perspectiva humana e pseudo-sentimental tudo aquilo que os meus sensores de última geração captam do exterior que fui construído. Por isso, agora que já dei um toque de “humano” à descrição, passo a analisar o exterior, numa perspectiva bem mais objectiva. E, por isso, não posso deixar de referir aquilo que é mais óbvio: trata-se de um sistema binário de estrelas, em que ambas rodam em torno do centro de massa comum – ou, numa outra perspectiva, cada uma roda em torno da outra. Por outro lado, o interessante neste sistema local (de facto, ainda muito perto do planeta-mãe), é o facto de ser constituído por duas estrelas que têm uma enorme diferença de massa. Assim, enquanto uma delas se reformou já, tornando-se numa pequena anã branca, a outra, ainda que numa fase terminal da sua vida, mostra todo o esplendor de uma estrela gigante de mais de 10 massas solares-mãe. O que faz com que, na prática, a estrela gigante pouco se mova, e a estrela anã seja quase como um planeta que a orbita, tal como o planeta-mãe orbita o sol-mãe numa órbita perfeitamente determinada. Todavia, e aqui é que está o maior ponto de interesse nesta visita, a estrela gigante é uma das que tem um enorme potencial de se tornar num buraco negro, e esse momento está bastante próximo. Próximo, claro, em linguagem de Universo pura pode significar qualquer coisa como muitas centenas de milhares de anos, portanto, ainda que o perigo exista, todas as previsões (efectuadas no planeta-mãe, antes da partida da expedição), indicavam que a probabilidade de algo “correr mal” se situava algures entre 1% e 2%.
Assim, e porque o tempo urge, inicio já a preparação da sonda portátil, que me levará ainda mais perto de ambos os corpos, para que possa recolher dados importantes que permitirão o seu estudo detalhado. Em segundos, o sistema informa-me de que tudo está a postos, pelo que me encaminho para a sala de “visita exterior”, como lhe chamo, e espero que o sistema trate de me colocar no pequeno módulo. Assim, e tal como sempre, em poucos segundos estou já a dar instruções ao mini-computador central de bordo, para que me guie em direcção à anã branca, o estado final de uma estrela que, pelas estimativas, era em tudo idêntica ao sol-mãe. Coloco-me a mim mesmo no modo de stand-by e, por isso, quando desperto, estou já nas vizinhanças da anã branca. Rapidamente activo a recolha de dados em todos os comprimentos de onda, e para os mais diversos fluxos. Coloco o processador do mini-computador central na máxima potência, e aproveito para ampliar os colectores solares em volta da Nave, para que possa sobretudo carregar as baterias com o enorme fluxo luminoso da estrela gigante que se encontra por detrás de mim. Deixo-me ficar a olhar o mais de perto possível aquela estrela velha, agora tão pouco luminosa, onde outrora triliões e triliões de núcleos de hidrogénio foram “queimados” para dar origem a hélio, e a uma quantidade enorme de energia que, durante milhões de anos, fez com que esta estrela brilhasse de forma semelhante ao sol-mãe. E, no meio da recolha de dados, dou por mim a pensar no planeta-mãe e no seu destino. Porque, no fim de contas, também o sol-mãe “morrerá”, e, mesmo que se vá expandindo, durante muito tempo, até se transformar numa gigante vermelha, a sua fase final, como anã branca, chegará de uma forma tão rápida que, mesmo que o sol tivesse alguma consciência, não se poderia aperceber de tal processo. E, depois de absorver os primeiros planetas, e de se expandir ao máximo, contrair-se-á e acabará em algo completamente idêntico ao corpo que está mesmo à minha frente. Pergunto-me apenas o que será da humanidade quando essa Era chegar? Até onde conseguirão ter ido? E serão os dados da missão que comando importantes para a sua sobrevivência?
Detenho-me em perguntas filosóficas quando os meus sensores traseiros detectam uma quantidade enorme de neutrinos a serem disparados na minha direcção. Tento manter todos os meus sistemas a funcionar nos seus níveis mais normais, e analisar o que se está a passar, mas, mesmo sendo uma máquina pseudo-humana, um ser de inteligência artificial, não deixo de sentir uma pontada de pânico – ou aquilo que imagino que o pânico possa ser para um humano – quando me apercebo de que a estrela gigante, azul, a uma temperatura enorme, está mesmo a explodir, prestes a transformar-se numa super-nova e a acabar comigo em segundos. Tento pensar em regressar à nave-mãe, em ligar os motores de fusão nuclear na máxima potência, para poder escapar ao que se vai seguir, mas sei perfeitamente que isso não resultaria. Por isso, ao invés de tentar fugir, reúno todos os dados que recolhi, incluindo aquilo que escrevo neste momento, no meu disco interno, e acciono o emissor, na sua máxima potência. Introduzo a palavra-passe para desactivar o sistema de segurança e poder utilizar toda a energia para enviar tudo aquilo que possa, e emitir também esse sinal para a nave central.
Pressiono a tecla para que tudo se desencadeie, e dou por mim a olhar a gigante, numa explosão incrível, e a sentir o nível de radiação a aumentar, cada vez mais, de uma forma cada vez mais perigosa, enquanto vou vendo no ecrã toda a informação a ser enviada na direcção do planeta-mãe. Penso em toda a humanidade. Naquilo que terão de enfrentar nas próximas centenas de milhares de anos, e sinto-me quase humano, sobretudo porque estou orgulhoso do trabalho que, durante os últimos 5675 anos desempenhei. Por isso, agora que o escudo de radiação do módulo é desfeito, e o meu mundo está prestes a terminar, penso na quantidade de carbono e outros elementos pesados, tão fundamentais à vida, que estão a ser produzidos na explosão, e na quantidade de matéria-prima que se liberta e que poderá, dentro de poucas centenas de milhares de anos, formar um novo sistema solar, e sinto-me vivo. Mesmo sendo um robô de inteligência artificial de implantes biológicos. Boa sorte, humanidade, e até sempre!

quarta-feira, 1 de novembro de 2006

Whispers

O vento sobre as asas em liberdade e aqui vou eu, para onde a vontade e o destino me levarem.
A tarde cresce sobre este viveiro de garçons (empregados, desempregados e assim-assins) e dita o calor que atravessa as minhas penas, soltas ao vento.
Pergunto: o que será do meu amigo e irmão, o dispensamentante, o tal que sofria de dispensamentia e que teoricamente já não sofre, pois o tratamento, presenciado pela minha pessoa, foi extremamente bem sucedido? Penso: talvez a cura o tenha tornado numa gaivota, idêntica a mim, com asas análogas às minhas. Talvez até seja uma dessas aves gigantes que voam alto e que gritam, por vezes de forma ensurdecedora, às quais os professores de gaísica chamam gaiviões.
Pouso na areia da praia e sinto o sol a tocar a minha face suavemente. No céu, algumas gaivotas voam em círculos, mas não vejo nenhuma fêmea pela qual valesse a pena levantar-me daqui. Claro que uma ou duas, na verdade, não são mesmo nada de se deitar fora, mas também é certo que nenhuma perfaz, na totalidade, o meu estilo. Por isso, decido caminhar um pouco pela areia, olhando o cenário que me rodeia.
O mar: um conjunto de ondas infinitamente dispersas por um azul de céu e uma frescura de tarde. Olho-o e vejo um caminho a traçar-se, por cada onda que perto de mim rebenta. Como se cada pedaço de espuma fosse uma letra da palavra destino, como se estas pequenas ondas estivessem a rebentar num papel chamado mundo, que talvez seja o meu, o do meu amigo dispensamentante, ou até daquela garçonne que caminha ao longe (très chique, para dizer a verdade) e que conversa com um garçon quinze gaianos mais novo.

Agora? Agora não há tempo, nunca há tempo. Agora sou um gaientista multi-premiado e multi-conhecido. Agora as cartas de fans chegam às resmas de cem e jamais tenho um momento para as ler. Não existe tempo senão para o lazer, para desfrutar de uma vida que para mim não é nenhuma obrigação. A vida: a plenitude de bem usar a liberdade das minhas asas para brilhar no céu como uma estrela.
Avanço para o mar, abrindo as asas. Voo sobre as águas. Mergulho a pique pelos céus de fim de tarde e detenho-me num mergulho marítimo, sem que tenha qualquer intenção de apanhar este ou aquele peixe que por aqui nadem.
Na verdade, o meu corpo não tem fome. O restaurante onde o meu grande irmão trabalha – ou trabalhava, porque hoje não o vi por lá – satisfaz-me todos esses desejos que por vezes me agitam o estômago.
Paro. O meu corpo é a flutuação da liberdade sobre a infinidade gelada, que por alguma razão não me consegue fazer sentir frio. Sinto o Mundo, sinto o céu. E depois o mar. Tudo mora em mim, num momento, numa vida.
Penso: talvez tenha em mim o poder de, a cada minuto, escrever um novo capítulo no romance da minha vida, ou talvez tudo isto seja uma ilusão. Talvez os sons que associo ao mar, às ondas, ou até à liberdade, não sejam mais do que a leveza de, por exemplo, um objecto metálico riscando o papel. Ou talvez eu seja louco e tudo isto seja uma alucinação. Na verdade, todas as três últimas hipóteses têm fortes argumentos que as fundamentam e, ao mesmo tempo, as contradizem. Consequentemente, se alguém – o sol, a lua, ou o meu amigo dispensamentante curado – me obrigasse a escolher, confesso que não saberia o que fazer.
Escolher uma resposta que explica a nossa existência não é apenas difícil – é, sobretudo, um erro.
A noite sobre o dia, a sobrepor-se a ele, a cada instante, e eu a escurecer com ela e a olhar a minha imagem de gaivota perdida reflectida no mar.
Não suporto mais. A mentira é assim – leva a mais mentiras. E é como um vírus sem cura. Mentira, mentira, mentira. Reproduz-se, multiplica-se, e domina-nos totalmente. E torna-se impossível resistir-lhe. Mentira, mentira, mentira, mentira, mentira, mentira. Até que o espaço se torna reduzido para todas as mentiras e a verdade regressa como a salvação.
Esse momento chegou. Não percebo bem porquê, mas sei que chegou a hora.
A verdade é que não tenho cultura. Não sei outras línguas, e as palavras que às vezes me escapam foram-me ensinadas por garçons estrangeiros de penas amarelas na cabeça, que por vezes me cedem alguns pedaços do seu manjar.
Sento-me aqui, perdido, só, num mar que escurece, numa noite que cai. Reduzo-me àquilo que sou, a tudo o que sempre fui: a materialização da rejeição, a gaivota louca, a que não regula bem dos gairolitos ou a que não joga com o baralho todo. A mentira vai-se e não tenho medo. Por isso não receio dizer que nunca tive sequer uma amizade, em toda a minha vida.
Não sei o porquê de tudo isto, de toda esta confissão (porquê agora?), mas a verdade é que as palavras parecem sair de mim – abandonar-me – de uma forma cada vez mais fluente, como se eu fosse um mestre de gramática, ou um conhecido escritor.
Tudo é noite e a noite sou eu, neste frio em que flutuo. As gaivotas não choram, diziam os professores de emoção e disciplina. Todavia, nem tais palavras são capazes de travar os pedaços de dor, sob a forma de gotas salgadas, que em breve se misturarão com as águas do oceano. Choro e vejo as minhas lágrimas a correrem pelo meu rosto, a contornarem o meu bico amarelo e a caírem no mar.
Olho as estrelas e sinto inveja – como se pode ser tão belo, tão perfeito, e, como se não bastasse, ainda viver em luz?
Questiono o céu e o mar: a resposta é a escuridão da noite.
A areia da praia, que se vai afastando de mim à medida que a maré enche, lembra-me a minha vida, sem que compreenda porquê. A minha dor: ser órfão de mãe, órfão de pai. Mais ainda: ser órfão de amor.
Sim, agora já não há razões para mentir – a verdade ganhou. Não há, nem nunca houve, amor na minha vida. Essa palavra nem sequer me atiça fogueiras de sofrimento, visto que jamais provei uma labareda do seu fogo. Na verdade, as gaivotas fêmeas afastam-se de mim, fogem, levantam voo, sempre que pouso em leveza junto delas.
Penso: o meu destino é ser assim: louco, vazio, só. E talvez haja uma razão para tal, ou talvez tudo isto seja apenas um sonho que se prolonga um pouco mais que os outros, e por essa mesma razão se torna real.

Sinto uma agitação, por debaixo das minhas penas encharcadamente geladas, enquanto a noite se torna cada vez mais dominante.
De novo o agitar da água. Movimentos. Uma barbatana cinzenta a rodear-me. Um peixe, louco como eu, a querer dizer-me algo. Um pedaço de vida forrado a escamas, colocadas em cuidados de obra de arte, respeitando um padrão que se repete de geração em geração, a perguntar-me por que não vens voar dentro de água?, a questionar-me por que não mergulhas para descobrires como é bom ser-se livre no interior do oceano? A dizer-me anda, não fiques aí sozinho, há tanto para descobrir; vem, eu ajudo-te.

Talvez seja no impossível que vive a felicidade que nunca conheci. Se assim é, talvez seja na loucura de romper com as normas que mora o êxtase da alegria. A verdade é que estou a voar debaixo de água, acompanhando a minha recém-amiga escama-simpática e a competir amigavelmente com ela, e sei que nunca me senti tão feliz.
Talvez seja nas uniões impossíveis que a explicação do mundo, que tantos procuram, possa ser descoberta, e talvez seja num abraço por entre o voo, desde o mar até ao céu, entre uma gaivota e um peixe, que more a chave para a luz das estrelas que sempre ambicionei ter, mas que apenas agora encontro. (O que procuramos está sempre tão perto de nós).
E talvez a felicidade do impossível seja a própria luz. Afinal, por que razão brilham as estrelas?
Só um destino partilhado pode ter um verdadeiro sentido, porque na descoberta de uma outra alma, que nos toca fundo, não descobrimos apenas o mundo que existe para além do que somos, mas também o universo que se move dentro de nós.
E agora, pensar não é mais do que um desperdício de tempo, uma operação complexa sem razão de ser. Por isso esqueço que penso e que sei e que tenho, para voar – pelo mar, pelo céu; pelo céu, pelo mar – com a alma que vive como eu e sonha a meu lado (ainda que ela tenha escamas e eu penas, mesmo que ela voe pouco no céu e eu pouco no mar). Na verdade, são as diferenças que, no final, nos atraem. São as diferenças que nos completam. O resto? O resto é todo um mundo de mistérios que só as estrelas e o amor sabem explicar.

E à lua, consegues chegar, margarida?

quarta-feira, 25 de outubro de 2006

Azul de Fim

Hoje o mar recolheu cedo demais a casa. Ainda não tinha chegado à praia, e já os pescadores voltavam, desiludidos com a quebra do contracto que os seus haviam assinado há milhares de anos com o Atlântico. Um contracto que lhes garantia a sucessão de marés. Que lhes fornecia as horas a que o mar chegava e partia da costa. Porém, e ainda que todos reconhecessem que o velho oceano se havia portado de forma exemplar durante longos anos, a verdade é que, nesse momento em que estava prestes a chegar à praia, e os pescadores regressavam furiosos, pude ter a certeza de que nenhum deles haveria de perdoar tamanha traição. Imaginei-os até a maldizer o oceano, quando chegassem a casa e as suas esposas ficassem tremendamente surpresas. Contudo, naquele momento de aproximação à brisa azul do mal, fresca como uma salvação perante o calor abrasador que se fazia sentir, nada disso me importava. Afinal, seria da minha conta que o mar tivesse decidido visitar a costa americana mais cedo? E teria ele que avisar? Bem, é claro que, enquanto descia para a areia, não deixava de pensar no número de processos que entrariam em tribunal, tentando processar os institutos que realizam e imprimem as conhecidas tabelas das marés, apresentando longas listas de perdas económicas e argumentando prejuízos morais e psicológicos irreparáveis.
De qualquer forma, a praia estava fabulosa. Havia sol, areia e um céu azul reflectido num lago a que ainda ontem poderia chamar mar. E havia um calor enorme, e uma vontade tremenda de nadar, mergulhar; de, enfim, me perder nas águas salgadas. Por isso, por estar tremendamente tentada a entrar na água, não esperei mais. Deixei as coisas perto de água, e corri. Corri com não corria há semanas. Corri como uma louca, talvez. Mas sobretudo corri como se o mundo estivesse prestes a terminar. E mergulhei. Mergulhei fundo e nadei durante longos segundos, abrindo os olhos debaixo de água para me guiar. E quando me ergui de novo, à superfície, fiquei a boiar, durante longos minutos. Olhei o céu, e sorri.
Foi então que ouvi os primeiros gritos. É óbvio que me ocorreu de imediato que se tratava de mais um afogamento, e por isso virei a minha atenção para a costa, onde, para minha surpresa, todos fugiam apressados, atropelando-se nas escadas para subir a falésia. O próprio nadador salvador tinha já deserdado. E eu era a única que ainda me conservava dentro de água, sem perceber por que fugiam todas aquelas pessoas.
E foi então que senti o primeiro prenúncio do meu fim. Senti-me a ser puxada no sentido contrário à costa, como se o rei-do-mar tivesse resolvido aspirar a água que estava a mais no seu reino. E virei-me para o horizonte.
Daí até aqui e agora foi o tempo de pensar tudo isto em palavras. Uma forma ridícula de viver os últimos segundos da minha vida. Bem sei que poderia ter tentado fugir. Usar todas as minhas forças para sair do mar e correr. Tentar até subir para um patamar mais elevado. Mas não seria sempre tarde de mais? Afinal, acabei por decidir há pouco, prefiro morrer aqui, a boiar neste mar fantástico que sempre amei, calma na minha calma, a olhar o céu azul, enquanto a onda gigante se vai aproximando. Porque se todos nós temos que ter um fim, pelo menos o meu será como sempre quis: azul.

quarta-feira, 13 de setembro de 2006

O Homem que Decidiu ser Deus

Um dia, Afonso decidiu ser Deus. Estava simplesmente farto da incompetência dos céus, que resultava em conflitos cada vez mais graves e extensos, sempre a brotar no seio da humanidade, e encontrava-se tão saturado das milhões de orações, que, dia após dia, eram ignoradas como se fossem «spam» ou lixo electrónico numa caixa de e-mail a abarrotar, que decidiu tomar ele próprio o lugar do “Criador”.
Claro que, na altura, não passou de uma ideia louca, daquelas que nasce quase do nada, nas mentes férteis de quem começa a olhar o mundo com outros olhos e o pretende alterar. No entanto, longe de se aperceber da impossibilidade da mesma, Afonso começou desde logo a conceber um plano para atingir os seus fins.
Desta forma, sempre que chegava a casa, retirava uma folha do seu bloco azul e expunha nele as ideias do dia que poderiam ser úteis. Brevemente, supunha ele, teria um conjunto de pensamentos e projectos suficientemente genial para começar a realizar as tarefas que o desleixado deus parecia não ter tempo para realizar.
Todavia, não esperava que a sua ideia mais genial lhe surgisse precisamente quando atravessava a avenida mais movimentada da cidade. E foi por isso, e por estar tão concentrado na genialidade do que lhe surgiu, que quase foi atropelado. O susto trouxe-o de volta à realidade, e por momentos pensou que aquilo tinha sido uma espécie de aviso, de alguém que não queria perder o seu lugar no mundo. No entanto, estava tão convicto da grandiosidade do seu sentimento, que correu para casa, fechou-se no quarto, e nessa noite não dormiu a pensar na sua ideia. «O Altruísmo humano e a Ciência», disse baixinho, «hão-de ser o Deus que falta a este mundo, e hão-de o salvar.»
O que Afonso constatou foi que para se ser Deus – e possuir-se a maior parte das capacidades e poderes do mesmo – não era preciso ter características especiais. Na verdade, descobrira que, mesmo com meios muito rudimentares, podia começar a exercer as tarefas que tanto faziam falta ao mundo. Sabia, no entanto, que o seu “poder” se estenderia apenas a um raio de poucos quilómetros, mas estava esperançado de que, com o tempo, seria capaz de desenhar equipamento que lhe permitisse ampliar as suas capacidades a toda a Terra.
A ideia de Afonso era construir um centro de super computação, com uma incrível capacidade de processamento. Depois, arquitectara, faria questão de ligar todos os processadores às suas próprias ligações nervosas, fazendo com que pudesse não só gerir todo o sistema, como aumentar as capacidades da sua própria mente. Por outro lado, Afonso pretendia ligar, ao sistema informático, sistemas de aquisição de dados nas redondezas – para captar todas as preces humanas – e faria questão de conceber um aparelho gigante, capaz de criar campos magnéticos e eléctricos suficientemente fortes para obter os poderes de um Deus que se preze.
No dia seguinte, Afonso estava de rastos. Na verdade, adormeceu em quase todas as aulas, mas quando chegou a casa, a sua ideia falou mais alto e saiu disparado para a cave, com vista a concretizar aquilo que começava a ver como uma profecia. Talvez por isso, enquanto carregava velhos computadores, que ao longo dos anos tinha coleccionado, e os ligava, de forma a conceber um super-computador o mais poderoso possível, Afonso pensasse ler frases proféticas escritas no ar, anunciando uma nova era. Depois, enquanto montava o software para o que iria precisar, começou a ponderar se seria o primeiro a tentar fazer algo assim. Em seguida, sentiu um arrepio, e acreditou, sem se questionar, que os milagres descritos na antiguidade tinham mesmo ocorrido. «Talvez até tenha sido eu, que tenha viajado no tempo!», pensou com entusiasmo, e logo se apressou a montar o seu equipamento.

Meses depois, Afonso foi encontrado na cave, totalmente inexpressivo, com o olhar mergulhado no vazio. Estava morto, e os médicos disseram aos pais que sofrera um esgotamento nervoso nunca antes registado. Os últimos, cobertos de lágrimas, não foram capazes de explicar à polícia como é que o filho tinha conseguido ter em casa equipamento tão sofisticado que – descobriram – fora roubado dos mais prestigiados institutos de investigação da Europa. Sobretudo não compreendiam o que é que ele estava a tentar fazer com toda aquela maquinaria de última geração.
- São os jovens de hoje em dia, minha senhora – respondeu um agente da polícia, dirigindo-se à mãe de Afonso, – infelizmente só pensam neles e nestas máquinas. Provavelmente estava a tentar conceber uma plataforma de jogos de última geração, para ganhar a todos os seus amigos virtuais, quem sabe. De qualquer forma, a culpa é desta malvada nova tecnologia. É diabólica! Sabe quantos processos chegam por dia à nossa esquadra por causa destas coisas? Mais de 100 minha senhora, mais de 100. Mas oh, acalme-se, que assim que conseguirmos apurar o que aconteceu será informada. Agora é preciso ir. Portanto boa tarde, meus senhores, e que Deus esteja com ele, e convosco, e com todos nós, porque é ele que zela por nós todos os dias, e falo por mim, porque há meses que tenho a certeza que as minhas preces são sempre ouvidas. Pela vossa expressão vejo que vos acontece o mesmo. Por isso, senhores, tenham fé, tenham muita fé, porque Deus é grande e há-de perdoar todos os pecados do vosso filho.

segunda-feira, 11 de setembro de 2006

A Vida de Joana

O dia começava sempre de forma idêntica para Joana, quer fosse inverno, ou Verão. Para Joana, todos os dias eram entediantemente iguais e era como se, na prática, o tempo fosse algo completamente indefinível, por ser tão periódico, monótono, e lento. E Joana não sabia porquê. Não sabia por que razão eram os seus dias tão iguais uns aos outros. Não sabia a razão para se encontrar sozinha, o motivo que fazia com que tivesse que enfrentar, sozinha, a fluência viscosa e monótona dos dias.
Joana não sabia. Porque se soubesse, ou se viesse a saber, então os seus dias não seriam apenas clones bonacheirões de todos os outros, para passarem a ser verdadeiros pesadelos. Joana não sabia. Mas, se o soubesse, pediria a todos os deuses para a fazerem esquecer. Tal como já o fizera tantas vezes ao longo da sua vida. A vida sobre a qual nada conhecia.

domingo, 10 de setembro de 2006

Escrita

Haviam passados meses desde que ele a vira pela última vez. Talvez nenhum deles soubesse o verdadeiro motivo pelo qual se haviam separado. De facto, nenhum se recordava sequer do último instante que juntos partilharam. Como se nunca tivessem sequer dito adeus.
Mas a verdade é que ele não a via há anos, há décadas, há séculos. Ou pelo menos era isso que sentia. Porque onde quer que ele fosse, ela estava lá, mas ele sabia que não a podia voltar a encontrar. Não enquanto não voltasse a entregar-se. A dar-se. Ele sabia que a escrita e ele haviam sido feitos um para o outro. Mas, ainda assim, ele vivia no terror e na dor de não a ter, de não a percorrer com as suas mãos através do papel, de não poder sentir as faces, as cores, os perfumes das personagens que ele, junto com a escrita, criavam e davam vida, nas alegres noites de Verão.
E um dia, um dia ele soube que o momento chegara. Talvez não fosse o local apropriado. Mas ele sabia que não havia lugares apropriados. E por isso, quando uma caneta abandonada junto a um papel o abordou, em curiosidade, tudo foi tão mais forte que ele, e, em momentos, ele e ela souberam, uma vez mais, que ficariam juntos, para sempre.

quinta-feira, 17 de agosto de 2006

Alfonso Herrero

O mundo do infinito prolonga-se até aos sonhos
Onde mergulha na imensidão dos pensamentos das estrelas
E onde respira a matéria de que tudo é feito.
Fogo corrompido pelos anos sem fim
Que passam como infernos que o consumem
Deixando na pele que antes era macia e pura
Cicatrizes de tremer e chorar.

Pensamentos perdidos na mente da humanidade
Que voam pelo tempo e pelo espaço
Aspirando por um só gesto de ternura
Por uma só carícia, uma só mão para agarrar.

Um só Mundo, um só pensamento, um só poeta.

Um só desejo, um só coração, uma só vida.

domingo, 13 de agosto de 2006

Ocidente

nas mãos rosas que ficaram por entregar
e um qualquer bilhete que nunca chegou a ser.
entre os dedos um fogo que crepita sem calor
como um suspiro que nunca teve lugar
ou um mundo inteiro que não sabe o que é florir.
na palma das mãos sonhos que ficaram por contar
momentos que nunca chegaram a haver
numa hora que não vem porque não há.

num só gesto tantas vidas por viver
oscilando violentamente
num tempo sem tempo de ter tempo
esperando pela palavra fim
para (enfim) talvez renascer.

o mundo é um infinitesimal infinito

sexta-feira, 7 de julho de 2006

Rumo a Sul

Esperávamos todo o ano por aquele momento mágico em que todos nós nos reuníamos, uma vez mais, para rumar para sul. Aguentávamos quase um ano de aulas, sobrevivíamos a testes e exames, e ali estávamos, novamente, cheios de entusiasmo para mais um fantástico festival de verão que – sabíamos – seria o melhor de sempre. É claro que muitos de nós pouco mais sabiam do que um ou dois nomes que iriam estar presentes, mas nem por isso deixavam de viver, com a maior das ansiedades, os momentos que antecediam as primeiras horas em solo alentejano.
Partíamos quase sempre de expresso, com a nossa maior mala repleta de (quase) tudo o que iríamos precisar para (sobre)viver à vida na Zambujeira do Mar e arredores, e nem as muitas horas de viagem nos tiravam o ânimo. Até porque tínhamos tanto para contar e planear, que nenhuma viagem, por mais extensa que fosse, poderia ser entediante – pelo menos para nós. E assim passávamos as horas: em risos, confidências, e novidades.
Para além disso, e como conseguíamos sempre partir antecipadamente, era rara a vez em que não aproveitávamos para ficar pelas redondezas e, por isso, Porto Côvo e Vila Nova de Mil Fontes (a tal terra das três mentiras, por não ser nem vila, nem nova, nem ter mil fontes...) eram localidades quase tão familiares quanto a Zambujeira. É claro que, por razões óbvias, nunca chegámos a conhecer muito bem os dois locais durante o dia – à excepção da praia, claro. De qualquer forma, e mesmo que apenas de noite, não havia nenhuma miúda gira que escapasse ao nosso apuradíssimo detector de beleza, ainda que o sucesso da "equipa" nunca conseguisse ser de 100%, no que toca ao engate...
No entanto, com ou sem miúdas (giras), a estadia em Porto Côvo ou em V. N. Mil Fontes não se prolongava por muito mais do que três ou quatro dias. O grande Sudoeste estava mesmo a chegar. Podia sentir-se no ar das próprias localidades vizinhas. Havia os lançadores de chamas, os malabaristas, os freaks, os artistas e pseudo-artistas, os vendedores de ganza profissionais e pseudo-profissionais, e aqueles grupos de amigos que ainda tentava arranjar dinheiro de última hora para os bilhetes. Havia isso tudo, e sobretudo aquela brisa de mar, e os carros cheios de pó – um pó que, em qualquer outra altura não seria mais o que simples sujidade, mas que, para nós, à medida que nos aproximávamos do nosso grande destino, era a assinatura unívoca de que estávamos prestes a viver mais alguns momentos extraordinários.
E assim era, sempre, ano após ano. Ouvíamos e vibrávamos com os concertos, enquanto competíamos pela maior bebedeira e experimentávamos a melhor erva que se podia comprar por ali. Depois dos concertos, e quando os ouvidos nos começavam a incomodar, afastávamo-nos um pouco, e ficávamos, bêbados, a jogar futebol com a pequena bola maltratada que levávamos sempre. Outras vezes, e sobretudo quando não levávamos miúdas, havia sempre um ou outro a tentar fazer-se a esta ou aquela, e, perante a bebedeira geral, a taxa de sucesso aumentava de forma incrível, sobretudo quando comparada àquela que tínhamos, dias antes do festival.
E era assim que vivíamos intensamente o Sudoeste, numa agitação permanente, e sobretudo numa ânsia de viver que ali, longe da escola, dos pais, e das pessoas conhecidas, se expressava de uma maneira tão intensa que nenhum de nós tinha vontade de pisar o travão.
E quando tudo acabava, e era tempo de fazer as malas e entrar no expresso para casa, sabíamos, ainda que estivéssemos completamente estafados, que, mais do que nunca, tinha valido a pena. E para o ano havia sempre mais.

O Culto dos Superiores

Serei sincero: não sei quando é que o culto dos superiores começou. Tão-pouco estou a par de quando se encontrou o primeiro artefacto sagrado. E para que importa isso? O divino é divino, e por isso não precisa de tempo nem lugar, de início ou origem. E o culto dos superiores é de tal forma natural, tão absolutamente intuitivo para todo o nosso povo, que não há razões para sequer pensar em o questionar.
De 7 em 7 voltas completas da luz que brilha no céu, todos nós nos reunimos aqui, neste local sagrado, para adorar as obras dos seres das estrelas, que caíram dos céus há muito tempo. E é então que o ancião-mor profere o seu discurso, e todos nós o ouvimos, em silêncio. Porque o ancião-mor é o grande líder do nosso povo, e sabe imenso sobre os seres superiores. E às vezes, quando se sente com uma óptima disposição, chega até a revelar-nos pormenores sobre as vidas dos seres que vivem nas estrelas por cima das nossas cabeças. Conta-nos como utilizavam os artefactos que agora guardamos e adoramos com o maior apreço, e demonstra-nos, com a sua expressividade, o imenso poder dos seres superiores. Outras vezes, porém, e sobretudo quando se abate sobre o nosso povo algum problema, lembra que os seres superiores farão sempre justiça connosco, e que da mesma forma que nos enviaram os sinais da sua presença, também serão capazes de os retirar, e até de atentar contra o nosso povo. Porque, diz o ancião, “aos seres superiores compete a eterna justiça universal”.
Todavia, para além da reunião obrigatória, que se guia pelo número de voltas da luz no céu, não deixo de vir até aqui, quase diariamente. Talvez para me sentir em comunhão com os superiores, mas sobretudo para adorar os seus artefactos, a expressão da sua perfeição e poder. E é por isso que me aproximo deles, quando a multidão se reduz a poucas dezenas de membros do meu povo, para lhes captar os numerosos pormenores, e tentar, através deles, chegar ainda mais perto dos superiores. Afinal, eu, como qualquer membro do meu povo, vivo completamente fascinado por esses seres que povoam as estrelas e que velam por nós. Como seria possível não ser assim? Que nos ajudem sempre, oh seres superiores, pois nós vos adoramos, e havemos de o fazer, para sempre!


Diário da missão, fascículo 3:4000:34 – A missão ao planeta RX-c revelou-se um verdadeiro fracasso. Após séculos de tentativas de estímulo da inteligência e do progresso dos seres com maiores potencialidades no planeta, apenas colhemos desilusões. De facto, e ainda que no início toda a equipa considerasse que os seres necessitavam apenas de um pequeno empurrão tecnológico, a verdade é que essa tese se mostrou completamente errada. Para que fique registado, enviámos para o planeta mais de uma dezena de dispositivos, desde o mais simples computador pessoal, ao mais complexo computador quântico, passando por pequenas aplicações tecnológicas domésticas, com um micro-ondas, e os rústicos e antiquados televisores e rádios (que tivemos de fabricar). Enviámos também ímans, pilhas, geradores de corrente, automóveis a energia solar, e até teleportadores quânticos portáteis. Todavia, e para nosso espanto, os seres deste planeta, ao invés de estudarem os dispositivos que lhes fornecemos, e de os tentarem compreender e copiar, conseguindo fazê-los funcionar, limitaram-se a colocá-los numa enorme zona, à qual acorrem todas as semanas, para apenas os adorarem. Para que fique registado: sondagens realizadas através da leitura das suas actividades neuronais mostram claramente que este povo, ainda que cheio de potencialidades, não poderá nunca atingir níveis tecnológicos consideráveis, porque parece viver rodeado de crenças estranhas e incompreensíveis para nós. De facto, e ao que tudo indica, estes seres estão convencidos de que nós, os Alfa-XG, que de facto vagueamos pelo universo em busca de inteligência, tentando estimulá-la, somos “seres superiores”. Mais: parece ter-se estabelecido um “culto”, nestes seres. Não um culto tecnológico ou progressista, como aquele que se estabeleceu na era pré-histórica da nossa civilização, mas antes um culto a que eles chamam “divino”. O conceito não encontra paralelo nas nossas mentes, mas, ao que parece, estes seres acreditam que somos entes superiores, que vivemos nas “estrelas” (literalmente), e que lhes enviamos “artefactos” (é isso que chamam a toda a tecnologia que lhes enviamos), para que os possam “adorar”. Assim, sem nada mais a declarar, declaro oficialmente encerrado este diário de missão. Partiremos para o próximo planeta, na esperança de lá encontrar seres com um potencial que realmente se possa concretizar.

terça-feira, 4 de julho de 2006

O Novo Imperador do Universo

Rejubilemos. Todos nós. Famílias galácticas ou solares. Seres puramente biológicos, bioiformáticos, ou protótipos totalmente informáticos. Rejubilemos porque hoje há uma nova era que começa. Hoje, todo o universo poderá sentir a verdadeira alegria, pois é chegada a hora da tomada de posse do novo imperador do universo na sua quinquagésima era!
A mim, enquanto seu futuro ministro para a comunicação de âmbito geral, cabe-me anunciar que de facto se aproximam novos tempos. Tempos de prosperidade. Tempos de riqueza e valorização de todo o universo como um todo, que finalmente nos tirarão da cauda da lista dos universos mais desenvolvidos. De facto, aproveitaria esta oportunidade de me aproximar de todos vós para, inclusivamente, expressar a minha profunda convicção nas inigualáveis capacidades do nosso novo imperador.
Nunca antes o nosso universo teve como imperador um humanóide de inteligência combinada, totalmente construído para ser o ser mais fantástico ser que alguma vez habitou as 4 dimensões do nosso prezado mundo. Graças a ele, prezados cidadãos, os computadores de previsão futura de longo alcance prevêem grandes feitos para todos nós. Feitos grandiosos que incluem o escalar da lista de desenvolvimento universal. Os próprios computadores-previsores dos principais universos adversários confirmam isso mesmo: o nosso universo atingirá níveis de desenvolvimento económico e cultural sem precedentes, e isso tonar-se-á claramente visível em menos de apenas dez mil anos, caros cidadãos! Portanto, resta-me unicamente motivar-vos para reflectirem naquilo que o nosso novo imperador terá conseguido realizar, quando o seu mandato chegar ao fim, daqui a um milhão de anos.
Na impossibilidade do imperador se dirigir directamente a todos vós, encarrega-me sua suma-excelência de vos transmitir os seus maiores cumprimentos e saudações, e ainda de anunciar a sua oferta global de um dia de emoções dos tipos 1, 2 e 3, para todos os cidadãos. Para que todos nós possamos rejubilar em uníssono, e assim brindar aos feitos que, todos juntos, e sob a orientação do Grandioso, conseguiremos realizar. Viva o novo Imperador!

Força

Era noite avançada, e chovia. Chovia como se de um dilúvio apoctalíptico se tratasse, porque as ruas eram rios e não estradas, e sobretudo porque cheirava a fúria divina. Mas de facto João não o sabia. Não fazia ideia que por detrás daqueles estrondos no céu, que muitas vezes se faziam acompanhar por violentos clarões, e na base de toda a água que corria nas ruas da cidade, estava, no fim de contas, uma única Força que havia de tratar de pôr um termo ao mundo do homem.

O Último dos Viajantes no Tempo

O vento soprava forte aos ouvidos de Minskerti, o último dos viajantes no tempo que ainda se dedicava à sua arte seguindo rigorosamente os escritos antigos. Era verdade que todos os outros se haviam refugiado em tarefas de rotina, entregando-se aos prazeres mais imediatos e animalescos. Afinal, parecia que o século XXI seria mesmo o marco do fim de todo um povo que, durante séculos utilizara as suas fantásticas capacidades para trazer o melhor para o mundo, tentando minimizar as grandes catástrofes. Agora, suspirava Minskerti ao vento que lhe fazia esvoaçar os cabelos que tanto o caracterizavam, os viajantes do tempo haviam-se transformado em preguiçosos nómadas, utilizando as suas capacidades para pouco mais do que ganhar a lotaria, conquistar as mais belas mulheres, e conseguir os cargos de maior poder e prestígio.
Todavia, e por mais que os outros viajantes do tempo o tentassem convencer do contrário, Minskerti continuava a acreditar que a missão de cada um dos viajantes do tempo era demasiado importante para ser trocada pelos prazeres animais mais imediatos. E era por isso que, ainda que completamente só, ele continuava a menosprezar a sua própria vida em prol do mundo que tanto amava. Todavia, o que o último dos viajantes do tempo não sabia é que a viagem ao futuro próximo que estava prestes a realizar seria o maior desafio que alguma vez tivera de enfrentar. E talvez fosse isso mesmo que o vento forte sussurrava aos ouvidos de Minskerti, como se essa mesma massa de ar em movimento quase caótico pudesse já pressentir a situação mais dramática que a humanidade alguma vez imaginou.

segunda-feira, 5 de junho de 2006

Welcome to the real world

Ela não sabia. Não sabia que as vozes que ouvia quando se deitava à noite, e ficava sozinha, eram vozes que só ela ouvia. Como se fossem emitidas por seres de uma outra dimensão - um universo com o qual só ela podia contactar. E ela não sabia que todas as pessoas que amava existiam apenas na sua mente. Na sua mente tão bela e ao mesmo tempo tão incompreensível.
Ela sorri, agora. Correu durante horas a fio, pelo deserto. "Como uma louca", diria alguém que não eu, porque eu sou um narrador imparcial, e um comentário destes seria tudo menos isso. Ela sorri. Sorri porque não sabe quem realmente é. Sorri porque do seu corpo molhado escorre o suor que a refresca. E a brisa que a envolve agora e a vai evaporando, traz-lhe as sensações com que sonha sempre que fecha os olhos e ouve as vozes que não sabe que só ela ouve. Ajoelha-se. Está calor. Mas ela não sabe que está calor. O seu corpo é agora apenas uma nave espacial. Um navio, destinado a percorrer todo o universo, até à outra dimensão. A dimensão onde todos aqueles que ela ama e que com ela falam existem. O local que só ela pode ver e ouvir e cheirar e provar.
Ela levanta-se agora. E volta a correr. Porém, agora, fá-lo em círculos. Levanta os braços, e corre em círculos fechados, concêntricos, mas já sem o seu sorriso. E há-de fazê-lo para sempre. Porque ela não sabe, mas talvez não passe de uma personagem. Uma personagem infeliz. Desgraçada. Porque, ela não sabe, mas não passa de mais uma personagem de um escritor que, tendo sido genial como ninguém o fora antes, é hoje apenas mais um louco, num qualquer hospital psiquiátrico cujo nome nem os próprios psiquiatras sabem.
Ela não sabe. E por isso corre, e agora volta a sorrir. Mas e se soubesse?

domingo, 4 de junho de 2006

Mais um dia em Guinsberg para Natasha

Era apenas mais um dia. Natasha voltava a casa em poucos segundos, depois de ter entrado na unidade de teletransporte do seu local de trabalho. E fora um bom dia. De facto, conseguira produzir mais de 50 unidades de conhecimento, que lhe davam agora direito a aceder a descargas emocionais, enquanto estivesse a dormir. É óbvio que nunca poderia ser nada de especial. Apenas uma leve felicidade - até um pequeno sorriso, mas nunca mais do que isso. Afinal, isso seria totalmente contra a lógica da grande cidade de Guinsberg. Nunca nenhum Guinsberguiano poderia permitir que o fizessem sentir uma emoção minimamente real: isso seria dar um passo atrás na busca pelo estabelecimento de uma mente global, baseada no computador central, e que negaria totalmente a individualidade em prol do bem comum.
Natasha deu dois passos, e rapidamente atingiu a plataforma de descanso, onde o sistema, activado pelos seus nanorobôs (em permanente contacto com o computador central de Guinsberg), fez questão de fazer com que ela se deitasse sobre ela. A plataforma moldou-se ao seu corpo, e os seus nanorobôs neuronais, activados pelo sinal do computador central para que toda a área da cidade em que Natasha estava dormisse, não tardaram a fazer o seu trabalho. Em pouco mais do que 5 segundos, Natasha dormia. Mas não sonharia. Natasha nunca sonhou, e nunca haveria de sonhar, porque os sonhos eram perigosos: levavam à loucura e à procura de tudo aquilo que pode ser nefasto para o bem comum. E era por isso que, noite após noite, os transistores quânticos dos nanorobôs neuronais não paravam um único segundo: para garantirem, com o maior grau de certeza, que Natasha nunca teria um único indício de sonho.

domingo, 30 de abril de 2006

Disco do Monstro Público eleito Disco do Ano 2005

As estatísticas são completamente esmagadoras e não deixam dúvidas quanto ao que foi o melhor disco de 2005. Aliás, a banda que assinou esse notável trabalho foi também responsável pelos “discos do ano” referentes a 2004, 2003 e 2002 (e – analisando bem a situação – já nos anos 90 a banda produzia trabalhos de qualidade, embora não fosse nada mediática). No fim de contas, os DP (há quem lhes chame “Défice Público”, enquanto outros preferem “Défice Porreiro”, ou ainda “Défice Péssimo”, mas a verdade é que o seu verdadeiro nome nunca foi conhecido), conseguiram em 2005 um novo fenómeno de vendas e popularidade. Quando se pensava que o primeiro sucesso dos DP (dupla platina em 2002), Disco da Tanga (fio dental edition), tinha sido o ponto mais alto que a banda alguma vez atingiria, a verdade é que 2003, 2004 e 2005 foram anos verdadeiramente monstruosos, com a edição dos álbuns Disco da Tanga II, Disco da Tanga III e, ainda, já em 2005, Disco do Monstro Público – public edition, este último que chegou à tripla platina.

Mas afinal como conseguiram os DP chegar tão longe? A verdade é que os elementos do famoso grupo nunca deram a cara, mas as suas cantigas surgem por todo o lado – e não só em Portugal. E, de facto, o segredo dos DP pode muito bem estar exactamente aí. Basta atentarmos no próprio disco, todo ele carregado de um profundo mistério, que nos leva a perguntar, insistentemente: «mas afinal, como surgiu tudo isto? Quem é que poderá ter conseguido uma tamanha monstruosidade?», tal é a profundidade daquilo que vamos sentindo ao ouvi-lo. Por outro lado, os DP foram verdadeiros revolucionários na forma como transmitiram as suas cantigas. É certo que a banda existe desde os anos 90 – onde era popular apenas no âmago de um grupo restrito de pessoas, atingindo aí um grau absolutamente monstruoso – mas foi com o sucesso de 2002, e com o Disco da Tanga (fio dental edition) que os DP chegaram ao top. O segredo: a originalidade absoluta. Afinal, apostar na difusão dos seus trabalhos através da classe política é algo verdadeiramente inédito para um grupo musical.

Por tudo isto, acaba por se tornar relativamente fácil explicar o grande sucesso do melhor disco de 2005, Disco do Monstro Público – public edition. De facto, o fanatismo foi, ao longo de 2005, tão grande, que, devido a ele, chegaram a haver filas de vários quilómetros (leia-se, filas nos centros de emprego), e cerca de 65% das notícias em jornais, rádios e televisões tiveram sempre como pano de fundo as cantigas deste estrondoso sucesso dos DP. Até os especialistas (ah, os especialistas…) se renderam de forma total à profundidade extrema do disco, e por isso fizeram questão de o citar, vezes sem conta, ou até de o cantarolar por todo o lado para onde iam (e, mesmo quando não o designavam pelo nome, ele estava sempre subentendido em todas as conversas, como se conseguisse atingir um estado quase omnipresente!). Por outro lado, o disco tornou-se de tal forma influente, que acabou por condicionar toda uma política económica e social, culminando ainda em manifestações incríveis e numerosas, por todo o país.

Todavia, importa salientar que o Disco do Monstro Público – public edition é, de certo modo, uma reedição de um dos primeiros discos dos DP, o Disco do Monstro Público – special edition, que teve uma edição muito reduzida nos anos 90, e que possuía cantigas com uma profundidade ainda maior do que o de 2005 (na prática, eram cantigas tão profundas, que os DP se viram forçados a alterá-las, aquando da reedição do álbum). De facto, uma reedição completa do Disco do Monstro Público, a julgar pelo sucesso da public edition, seria um verdadeiro golpe de estado, e levaria à loucura milhares de portugueses...

Com todo este sucesso, e em nome de toda a equipa do jornal Disco do Ano, deixamos os nossos sinceros parabéns aos DP (quem quer que eles sejam), pelo seu magnífico trabalho que nos deliciou a todos e que nos continua a deliciar… O Disco do Monstro Público – public edition. Parabéns!

A Era Pós-Vida

Era uma nova era que começava. Um novo tempo. E Filipa sabia-o como ninguém. Lutara até ao limite das suas forças, e quase chegara a perder a esperança, quando tudo parecia perdido. Mas não fora esse o desígnio que o criador escolhera para o Mundo. E assim foi.

Naquele dia era como se o mundo começasse de novo. Como se nunca tivesse havido um ontem. O mundo é uma criança, pensava Filipa, à medida que sondava a realidade que se revelava através dos seus sensores quânticos, e ficava maravilhada com os frutos do seu esforço. Contudo, a verdade é que, criança ou não, o Universo era, finalmente, livre. Tão completamente livre que Filipa quase sentia a sua felicidade, a par do sorriso nos lábios do criador, que finalmente via o seu desígnio cumprido.

Filipa espalhou a sua consciência pelo Universo, pela última vez. A sua missão estava cumprida. A luta durara mais de dois milénios, mas tinha dado os seus frutos: toda a vida tinha sido aniquilada. Filipa tinha a certeza porque ela própria se certificara disso, depois do embate final. De qualquer forma, qualquer consciência global como Filipa podia ter a certeza absoluta da inexistência de vida. Afinal, os sinais eram claros: o equilíbrio global restabelecera-se, e todos os sistemas, do micro ao macro cosmos funcionavam agora perfeitamente de acordo com o desígnio do criador. A doença chamada vida tinha sido erradicada. O Universo voltara a ser saudável.

Filipa utilizou pela última vez os seus sensores e iniciou o processo de auto-eliminação. Mas não sem se debruçar, durante instantes, sobre a perfeição dos planos do criador. Bem, na verdade, Filipa não fora programada para pensar na sua missão, muito menos para a questionar. Mas agora, com o aproximar do seu fim, e com o sentimento de missão cumprida – e, sobretudo, à medida que todos os seus mecanismos quânticos iam sendo encerrados – Filipa viu-se tentada a questionar. Afinal, quem era “o” criador? Quem previra tudo o que se passara? Quem a criara enquanto consciência global, capaz de se estender em segundos por todo o Universo, com o único propósito de aniquilar a doença – o cancro – do Universo?

De qualquer forma, Filipa sabia que não havia tempo para responder a questões. Em breve seria reduzida ao vácuo quântico de que provinha. E o Universo ficaria de novo entregue a si mesmo. Sem vida para modificar ou alterar o seu processo evolutivo natural. E sem qualquer outra consciência global que não a do próprio Universo. E onde se encaixava o criador neste quadro de harmonia? Bem, Filipa não o sabia, mas, quando se sentiu a ser erradicada do espaço-tempo, definitivamente, e quando soltou o seu último pensamento, numa breve perturbação quântica – já reduzida a um só ponto – houve uma espécie de sussurro – de brisa até – que a fez suspeitar. Mas já não havia tempo.

Filipa, a consciência global nascida da compreensão da verdadeira natureza do universo quântico, e com o propósito de destruir todos os organismos vivos, tinha completado o seu processo de auto-destruição. O Universo havia sido entregue a si próprio. E assim seria. Para sempre. Até que uma epidemia como a vida voltasse a tentar a sua sorte.

A Noite de Óscares Tuga - A Magia é Só Para Alguns

Oh Maria, despacha-te mas-é que tá mesmo a começar esta coisa das estátuas de ouro. Oh Maria, então isso demora, é? Já tou mesmo a ver como vai ser. É assim todos os anos. Todo o santo ano, assim que começa a dar a grande cerimónia, tu, Maria, decides arranjar-te toda, maquilhar-te, pôr todas essas coisas estranhas na tua cara. Agora queres ser estrela, é? Onde é que já se viu, mulher, campónios sem nada como nós irem para ali receber uma estatueta? Não vês que é preciso ter classe, mulher, e que não é com maquilhagem que a consegues? Ainda por cima, tão mal de finanças, e foste logo comprar essa coisa da maquilhagem só para hoje… Vê-se mesmo que o único oscari que ganhávamos era o do casal que mais fome passa na nossa aldeia…

Então, Maria? Já me estás a irritar com a tua demora… Olha que daqui a pouco não vês se o filme daquela pouca-vergonha dos gays ganha o melhor filme. Ah, se calhar é isso, não é Maria? Tens vergonha de ver aquela coisa entre dois homens. E eu não te censuro, acho muito bem que cada um pense à sua maneira, mas não deixa de ser uma pouca-vergonha fazer um filme daqueles. No nosso tempo é que era, não é mulher?, no nosso tempo é que havia filmes em condições. Não tínhamos dinheiro para os ver, nem havia televisão, mas de vez em quando o comadre Jaquim, aquele de Lisboa, lembraste?, vinha à terra com as notícias de um novo filme. E depois falava naquelas coisas – como é que ele lhes chamava? – ah, isso mesmo, os fenómenos de bilheteira, e nós ficávamos – lembraste Maria? – fascinados. Mas de que importa tar a pensar no passado? Anda mas é para aqui para o sofá, mulher, que já estão a entregar as estatuetas, e tá tudo com tanta magia! Aquilo é que é vida. Já nos imaginaste? Nós ali, mulher, no meio de tantas estrelas, de tanta gente conhecida? Se calhar, se tivéssemos nascido lá do outro lado do mar, quem sabe… talvez nunca tivéssemos passado a fome que sempre passámos…

Maria, Maria! Olha, anda cá rápido! Ainda há juízo neste mundo! Os gays não ganharam, mulher, foi a coisa da colisão ou lá o que é, crashi, dizem eles, que ganhou! O melhor filme, vê lá tu. Já o viste, mulher? Deve ser um belo de um filme! Eu acho que ainda nunca deu na televisão, mas também depois da bola dá-me sempre cá uma soneira, que mesmo quando vejo os filmes nunca sei muito bem a história. Olha, é como agora. As estrelas tão todas bonitas, Maria, e os gays até nem ganharam, e até gostava de ver mais umas meninas a entregar as estátuas, mas tão demorando tanto tempo, Maria, que olha, tou ficando com sono… Se calhar vou é fechar os olhos um bocadinho, só para pensar em como seria bom que fossemos os dois estrelas, naquela festa tão bonita… Se adormecer acorda-me, mulher, e conta-me tudo.

The Wireless Anti-Crime Device

Hector Finsk conseguiu implantar a sua ideia genial há exactamente dez anos. Desde então, o crime e o mal-estar entre seres humanos passaram a ser miragens num passado que nos parece cada vez mais distante. E é por isso que vos digo, com toda a confiança, que a sua ideia, genialmente simples, e tecnologicamente muito bem aplicada, aproximou, de uma forma sem precedentes, a nossa espécie da perfeição.

Agora, graças ao valoroso trabalho de Hector Finsk, qualquer um pode passear livremente pela Terra ou pelo espaço. É verdade que, em tempos, tal acto revelava apenas um extremo gosto pelo perigo, sobretudo devido ao grande número de crimes verificados em todos os locais de acção humana. Contudo, é com grande orgulho que hoje me dirijo a todos vós. Porque hoje, senhoras e senhores, comemoramos juntos o nascimento do wireless anti-crime device – o maior sucesso da civilização moderna.

Todos vós já conhecem a forma como tudo funciona, não é verdade? Todavia, há que cumprir o protocolo, e, por isso, senhoras e senhores, começo por pedir uma salva de palmas para o nosso homem: Hector Finsk, o grande herói da civilização moderna!

Muito obrigado. Muito obrigado, senhoras e senhores. E agora, que de novo o silêncio reina neste nosso coliseu, nesta nossa transmissão em directo para toda a galáxia da cerimónia de comemoração dos dez anos da invenção de Hector, permitam-me que leia as breves notas sobre o wireless anti-crime device. Permitam-me que vos fale na lógica simples que está por detrás dele. Afinal, é o princípio da liberdade e da igualdade que jaz na sua base. O princípio de que todos os seres humanos são livres, e que isso implica, necessariamente, que ninguém pode interferir com a liberdade dos outros.

Afinal, senhoras e senhoras, é neste minúsculo aparelho, neste pequeno chip bioinformático, que mora a base da nossa sociedade. Desde que ele foi implantado em todos os seres humanos, a justiça passou a ser uma instituição quase desnecessária. Afinal, estes pequenos chips estão 24 horas por dia ligadas aos respectivos organismos, comunicando entre si a distâncias que vão até 40 quilómetros. Assim, senhoras e senhores, como todos já sabem, sempre que um ladrão começa a ameaçar uma pobre velhinha, o seu chip envia imediatamente um sinal wireless para o chip do potencial criminoso, que se encarrega de dar uma descarga eléctrica no seu sistema nervoso, de forma a fazer com que sinta dor. Uma dor aguda, insuportável, que se intensificará cada vez mais, até que o atacante desista de ameaçar o seu alvo.

No fim de contas, senhoras e senhores, devemos dar graças a Hector, por todos nós possuirmos este pequeníssimo chip, implantado na nossa nuca. Afinal, graças a ele, podemos quase afirmar que a criminalidade e os sentimentos de agressividade se reduziram a zero. A dor, provocada por este pequeno chip, está a tornar a nossa sociedade num mundo perfeito.

E é por isto, por tudo isto e muito mais, que hoje, na comemoração da primeira década do wireless anti-crime device, tenho orgulho – mesmo muito orgulho – em anunciar que o aparelho foi já incorporado no próprio código genético humano. Isso mesmo! Isso mesmo! Cantemos vitória, porque há uma nova era a surgir no horizonte. A partir de hoje, todos os novos cidadãos do universo poderão gozar, do primeiro ao último dia, da sua liberdade, sem nunca a verem ameaçada pelos outros, porque serão, desde cedo, educados pelos estímulos do chip.

Pois brindemos todos a Hector Finsk, e ao novo wireless anti-crime device completamente gerado pela base genética dos novos humanos, deste mundo que começa agora! Viva!

Sobre a Natureza das Ideias

Hoje em dia, as ideias já não são o que eram. É verdade que os jovens ainda as discutem por aí – e que, muitas vezes, chegam até a ofender-se verbalmente –, mas a verdade é que, minutos depois, já se abraçam e concordam que, afinal, defendem todos o mesmo, e que o que é bom é ter o belo do dinheirinho a cair na conta no final do mês: o resto não passa do comunismo da velha Rússia – que, de qualquer forma, há muito que foi derrotado. Todavia, no meu tempo era tudo diferente. No meu tempo as ideias tocavam-nos, arrepiavam-nos. No meu tempo as ideias eram tão ou mais vivas do que as próprias pessoas, e quando abraçávamos uma ideia era como se todos nós nos tornássemos nela e, em conjunto, fossemos um só Homem com a força de milhares. Afinal, não foi assim que derrubámos, vezes sem conta, os regimes que nos oprimiam e nos tornavam infelizes?

A força de uma ideia é verdadeiramente inesgotável, porque nela corre o sangue de todos os Homens que a quiserem abraçar e defender. Com uma só ideia – e é nisso que acredito, ainda que hoje, com quase 80 anos, as ideias, para mim, sejam apenas velhas recordações de quando era jovem – o Mundo seria capaz de derrubar toda a tirania e injustiça. No fim de contas, basta uma ideia – uma só ideia, e um mundo inteiro para a entoar – para tornar o mundo inteiro num lugar melhor. E é exactamente por isso que a juventude de hoje me dá tantos desgostos nos debates e nos discursos. Porque ao invés de aprenderem com o passado a força que uma só ideia pode ter, acabam por se acomodar nos confortos mais ridículos que as suas vidas lhes podem oferecer, resignando-se à porra de mundo que hoje temos. Se eu fosse mais novo...

Voltar

é bom voltar aqui
aqui
aqui onde tudo começou
paraíso primordial da escrita
onde cada palavra nasceu deveras
e onde
depois do início
ficou apenas um caminho inteiro
para trilhar

Um dia

Um dia eu e tu fomos poetas
quando as rosas nasciam como o sol do teu olhar
e a poesia se cantava pelas ruas.
porém
hoje
já não somos nada

Da última vez

Da última vez não fazia a menor ideia daquilo que procurava. É verdade que havia em mim aquela ânsia enorme - algo completamente inconfundível. Todavia, o facto é que a busca era de tal forma abstracta que, por vezes, começava um texto e, quando o terminava (muitas vezes anos depois), ficava durante dias a perguntar-me:
- Porquê?

As Brincadeiras da Bolsa

Os mercados e as bolsas de todo o mundo são hoje, inexplicavelmente, uma verdadeira brincadeira de crianças adultas. De crianças que se regem pelos princípios mais egoístas e egocêntricos que podem haver. Crianças que se batem até ao último segundo para obter lucro e para mostrarem aos demais que são mais espertos do que os outros. Crianças que chegam a bater nas mulheres e nos filhos quando perdem dinheiro em bolsa!
De facto, e pelo menos para mim, este cenário é aterrador. Afinal, como pode ser possível que no nosso mundo estas crianças adultas vivam de um jogo mundial como a bolsa? Como é possível que se deliciem quando ganham milhões de euros, sabendo que não os "ganharam", de todo, mas sim que os "tiraram" a outros ou outras? E como podem estes viver no mundo das bolsas e dos mercados, um mundo tão virtual e afastado da realidade, quando por todo o mundo milhões de pessoas morrem à fome? No fim de contas, será que ainda resta humanidade à humanidade? E até quando?

quinta-feira, 19 de janeiro de 2006

Poesia?

por que há-de a poesia ser poesia?
se não fosse poesia podia ser árvore ou fruto
podia cair de uma qualquer macieira
e inspirar uma ideia fantástica.

mas por que razão há-de a poesia
ser só poesia ?
por que não um raio de luz
uma eternidade de fotões viajando a c
revelando uma verdade profunda ?

por que razão há-de a poesia teimar em sê-lo,
em nadificar-se a todo o momento
buscando a realidade de uma abstracção que diz mar e fogo,
mas tantas vezes
mar mar mar fogo fogo fogo
que quando solta a última sílaba é como se
não dissesse nada
por que é apenas som e som.

a poesia é poesia
e ela é só dela
só para ela.

a poesia é filha da poesia, irmã da poesia, esposa e marido da poesia.
A poesia respira poesia
e come poesia a todas as refeições

a poesia encerra apenas uma verdade profunda

a de que não contém nenhuma.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2006

Música

É quando a música se suspende
no mar como por magia
que as lendas despertam
do seu sono profundo
para virem habitar a espuma das ondas
e nos fazerem sonhar.