quarta-feira, 27 de outubro de 2004

Fim

Perdi a originalidade
algures no percurso tempestuoso
através dos vales do metro perfeito
e a língua soltou-se
em forma vazia
como se nada mais soubesse falar.

Disseram-me que era tão
pequena a minha poesia
que eu, na ânsia de escrever
a poesia que queriam de mim
adubei a terra dos meus versos
mas quando colhi o silêncio e o amor
já não era poeta.

terça-feira, 19 de outubro de 2004

Whispers

Sempre que um dia termina, as estrelas nascem e há luz. Muito mais luz do que de dia, ou do que em qualquer cidade do mundo. Porque a luz das estrelas distantes brilha mais do qualquer outra visão fantástica que possamos ter.
A luz que vem de tão longe é o próprio tempo a segredar-nos a vida, e a sua brevidade. A luz, quase tão velha como o tempo, percorre todo o universo, para que possamos saber o que é a palavra sonho, a chocar risonha contra a nossa retina.

Diluição

Era a primeira vez que entrava naquele bar. Talvez por isso, quando caminhei em direcção ao balcão, tenha sentido tantos olhares a dirigirem-se a mim, analisando-me, temendo-me até. Claro que tal reacção não durou muito mais do que alguns segundos. A minha baixa estatura e o meu olhar cansado não metiam medo a ninguém, e, devido a isso, os presentes rapidamente se aperceberam de que não havia nada a temer.

Para dizer a verdade já nem sei o que pedi, porque bebi tudo isso como se de ar se tratasse. Dava golos, tentando diluir no álcool (ou naquela coisa que me ardia o estômago), o desespero. Alguns matulões aproximavam-se de mim e perguntavam-me, rindo, se estava bêbado. Eu olhava-os, e via milhões deles. Respondia-lhes que não sabia e que isso não me importava. Dizia-lhes que havia uma ânsia que inquietava, uma desilusão que me preenchia quando olhava o mundo, um sonho desfeito em nada quando me olhava no espelho do futuro. Chamavam-me louco e saíam, a rir, talvez com menos álcool no sangue, mas também com muito menos em que pensar.

Durante semanas aquele bar diluía-me a dor que surgia de dentro, como reacção ao que fora de mim havia. Todavia, cada noite em que chegava a casa e ficava três horas para acertar com a fechadura, e mais duas para conseguir rodá-la da forma certa, sentia-me mais vazio. Deitava-me a ver o mundo a espiralar, e sentia a minha ânsia muito mais diluída em todo o álcool que bebera. Mas logo vinha a dor física, e então era como se todo o álcool se evaporasse, e a ânsia que gritava em mim doesse tanto como a minha cabeça.

No que me tornei eu?

segunda-feira, 11 de outubro de 2004

De noite

Agora a sério, onde foste a noite passada, que eu fiquei toda a noite acordado e não vi sequer a tua sombra em bicos de pés a atravessar o corredor?

domingo, 3 de outubro de 2004

Ruas desertas

Nas ruas desertas parece não haver a mesma poesia
que as contempla durante o dia. Não é que saiba
como são durante o dia – porque de dia o meu
ser dissipa-se como a escuridão – mas ainda assim,
agora que o silêncio perscruta a calçada suja, mesmo
que só eu caminhe, sinto rumores de milhares de
passos. E há vozes e pastas e corridas. Talvez
por isso me sinta tão bem na solidão de ser noite.
Ser dia é ser o desconcerto. É negar os sonhos.
É cair à voz da crítica. Porque só à noite é que
podemos escutar o universo, sem que a estrela da
morte interfira.