quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

A Vampira Vegetariana

Lea descobriu desde cedo que não era uma criança como todas as outras. Os pais sempre lhe disseram que ela era especial. Como eles. Porém, ela nunca compreendeu verdadeiramente a extensão de tal conceito. Afinal, os seus pais pareciam ser do género “demasiado protector”, e raramente a deixavam sair de casa. Culpavam o sol. Porque aumentava o risco de cancro, e porque era perigoso. Assim, Lea nunca tinha grande oportunidade de conhecer outras crianças, de brincar com elas, de saber do que gostavam, e como eram os seus pais. Talvez assim - pensava - seria mais fácil perceber por que razão ela era tão especial. Ou talvez nem sequer fosse. No fim de contas, talvez os seus pais lhe dissessem isso para que se sentisse melhor. Para se sentir realmente especial, quando, no fundo, ela talvez fosse tão especial como qualquer outra criança no mundo.
Afinal, o que havia de diferente na sua vida? Os seus pais trabalhavam bastante, e sobretudo de noite, mas de certo eram empregos fantásticos, porque em casa nunca faltava comida, e da mais deliciosa. De facto, a sopa era sempre tão fresca, e sabia sempre tão bem, embora nunca tivesse visto os seus pais a fazê-la. De qualquer forma, tinha que ser confeccionada por um chéf verdadeiramente fantástico, provavelmente um conhecido do emprego dos pais. Por outro lado, a sua família não era religiosa. Mas isso talvez fosse normal na sociedade moderna. Afinal, e tal como lhe diziam os pais, como é que se pode acreditar em deus, bem ou mal, quando existe a Ciência para mostrar a verdade, e quando as descobertas que se têm feito acerca do mundo não necessitam da existência de deus para as explicar.
Quando Lea completou 12 anos, os pais fizeram questão de a levar a visitar o local de trabalho. Afinal, parecia que queriam que ela continuasse o negócio de família quando crescesse. E, no fim de contas, por que não? Ver não magoava, e estava tão farta de ver os mesmos sítios todos os dias, que até visitar o emprego dos pais lhe parecia o melhor dos presentes de aniversário.
Saíram pouco depois do pôr-do-sol, no carro do pai. Roupas negras - de certo tratava-se da política da empresa em que trabalhavam. De qualquer forma, Lea estava demasiado curiosa para conter todas as perguntas que lhe brotavam na mente.
- Como é o vosso trabalho?
- Algo que começarás a fazer connosco em breve filha.
- Mas o que fazem.
- Trabalhamos bastante para conseguirmos a melhor comida para os três.
- Sim, a comida é sempre fantástica. É um amigo vosso que a faz?
- Que a faz?
- Sim, a sopa deliciosa que trazem sempre para casa depois do emprego. Nunca sabe exactamente ao mesmo, o que é óptimo porque nunca enjoamos, mas parece ter uma consistência fantástica. De certo trata-se da obra de um dos melhores cozinheiros da cidade.
- Bem, filhota, já começas a ser crescidinha. Está na altura de começares a compreender.
- Sim, digam.
- Não é sopa, filha.
- Não é sopa? Créme?
- Também não.
- Oh, então é um cozinheiro ainda mais sofisticado! De que país é?
- Não há nenhum cozinheiro, filhota. É sangue. Sangue humano.
- Como?
- Sim filha. Pensámos que pudesses descobrir por ti própria. Como eu ou o teu pai descobrimos. Mas talvez em nós o desejo de sangue era demasiado grande, e por isso os nossos pais tiveram que nos treinar bem mais cedo do que tu. Eu comecei ainda mais cedo do que o teu pai. E foi na caça que nos conhecemos. Antes de nasceres.
- Mas então nós...
- Somos vampiros filha, sim. Sempre te dissemos que éramos especiais. Mesmo muito. Por isso não te deixamos sair de dia, por isso nada de crucifixos, ou alho. Por isso o sangue.
- E o vosso trabalho é...
- Caça. Caçamos pessoas, e depois bebemos o sangue deles, ou então drenamos para levar para ti, ou para matar a fome durante o dia.
- Não acredito!
- Calma filhota.
- Calma, como posso ter calma?
- Talvez seja melhor voltarmos para casa?
- Sim, quero voltar para casa, e já!
Lea voltou para casa com os seus pais, e, assim que lá chegaram, correu de imediato para o seu quarto, e fechou a porta atrás de si. Como podia ela ser um vampiro? Matar pessoas para beber o seu sangue? Haveria algo mais horrível do que isso? Não, ela refusava-se a matar pessoas, nem que para isso tivesse que morrer ela mesmo.
- Lea, estás bem? Acalma-te, tens de tentar aceitar o que tu és. Nada te pode mudar.
- Deixei-me em paz! Odeio-vos. São os piores pais do mundo!
Lea passou 2 dias sem sair do seu quarto, ignorando todos os apelos dos seus pais, e por vezes vendo televisão. Até que, ao fim desse tempo, e com o estômago literalmente a dar horas, começou a passar um programa sobre vegetarianismo. Sobre a forma como era mais do que possível substituir toda a carne e peixe somente por vegetais. Era até mais saudável. Se ao menos ela fosse uma rapariga normal, então seria vegetariana. Matar humanos era horrível, mas não o era também matar um animal e comer a sua carne? Só o pensamento causava-lhe arrepios (mais do que o facto de ter bebido sangue de humanos ao longo de toda a sua vida).
Todavia, ao terceiro dia, Lea não conseguiu aguentar a fome que lhe corria no corpo. Precisava de sangue, de comida. Mais: precisava de uma caçada. Os seus pais estavam certos: tinha que aceitar quem era. Assim Lea saiu do quarto, sorridente, e, sem os seus pais saberem, saiu de casa. Para a sua primeira caçada.

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