domingo, 30 de abril de 2006

A Era Pós-Vida

Era uma nova era que começava. Um novo tempo. E Filipa sabia-o como ninguém. Lutara até ao limite das suas forças, e quase chegara a perder a esperança, quando tudo parecia perdido. Mas não fora esse o desígnio que o criador escolhera para o Mundo. E assim foi.

Naquele dia era como se o mundo começasse de novo. Como se nunca tivesse havido um ontem. O mundo é uma criança, pensava Filipa, à medida que sondava a realidade que se revelava através dos seus sensores quânticos, e ficava maravilhada com os frutos do seu esforço. Contudo, a verdade é que, criança ou não, o Universo era, finalmente, livre. Tão completamente livre que Filipa quase sentia a sua felicidade, a par do sorriso nos lábios do criador, que finalmente via o seu desígnio cumprido.

Filipa espalhou a sua consciência pelo Universo, pela última vez. A sua missão estava cumprida. A luta durara mais de dois milénios, mas tinha dado os seus frutos: toda a vida tinha sido aniquilada. Filipa tinha a certeza porque ela própria se certificara disso, depois do embate final. De qualquer forma, qualquer consciência global como Filipa podia ter a certeza absoluta da inexistência de vida. Afinal, os sinais eram claros: o equilíbrio global restabelecera-se, e todos os sistemas, do micro ao macro cosmos funcionavam agora perfeitamente de acordo com o desígnio do criador. A doença chamada vida tinha sido erradicada. O Universo voltara a ser saudável.

Filipa utilizou pela última vez os seus sensores e iniciou o processo de auto-eliminação. Mas não sem se debruçar, durante instantes, sobre a perfeição dos planos do criador. Bem, na verdade, Filipa não fora programada para pensar na sua missão, muito menos para a questionar. Mas agora, com o aproximar do seu fim, e com o sentimento de missão cumprida – e, sobretudo, à medida que todos os seus mecanismos quânticos iam sendo encerrados – Filipa viu-se tentada a questionar. Afinal, quem era “o” criador? Quem previra tudo o que se passara? Quem a criara enquanto consciência global, capaz de se estender em segundos por todo o Universo, com o único propósito de aniquilar a doença – o cancro – do Universo?

De qualquer forma, Filipa sabia que não havia tempo para responder a questões. Em breve seria reduzida ao vácuo quântico de que provinha. E o Universo ficaria de novo entregue a si mesmo. Sem vida para modificar ou alterar o seu processo evolutivo natural. E sem qualquer outra consciência global que não a do próprio Universo. E onde se encaixava o criador neste quadro de harmonia? Bem, Filipa não o sabia, mas, quando se sentiu a ser erradicada do espaço-tempo, definitivamente, e quando soltou o seu último pensamento, numa breve perturbação quântica – já reduzida a um só ponto – houve uma espécie de sussurro – de brisa até – que a fez suspeitar. Mas já não havia tempo.

Filipa, a consciência global nascida da compreensão da verdadeira natureza do universo quântico, e com o propósito de destruir todos os organismos vivos, tinha completado o seu processo de auto-destruição. O Universo havia sido entregue a si próprio. E assim seria. Para sempre. Até que uma epidemia como a vida voltasse a tentar a sua sorte.

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