sexta-feira, 7 de julho de 2006

O Culto dos Superiores

Serei sincero: não sei quando é que o culto dos superiores começou. Tão-pouco estou a par de quando se encontrou o primeiro artefacto sagrado. E para que importa isso? O divino é divino, e por isso não precisa de tempo nem lugar, de início ou origem. E o culto dos superiores é de tal forma natural, tão absolutamente intuitivo para todo o nosso povo, que não há razões para sequer pensar em o questionar.
De 7 em 7 voltas completas da luz que brilha no céu, todos nós nos reunimos aqui, neste local sagrado, para adorar as obras dos seres das estrelas, que caíram dos céus há muito tempo. E é então que o ancião-mor profere o seu discurso, e todos nós o ouvimos, em silêncio. Porque o ancião-mor é o grande líder do nosso povo, e sabe imenso sobre os seres superiores. E às vezes, quando se sente com uma óptima disposição, chega até a revelar-nos pormenores sobre as vidas dos seres que vivem nas estrelas por cima das nossas cabeças. Conta-nos como utilizavam os artefactos que agora guardamos e adoramos com o maior apreço, e demonstra-nos, com a sua expressividade, o imenso poder dos seres superiores. Outras vezes, porém, e sobretudo quando se abate sobre o nosso povo algum problema, lembra que os seres superiores farão sempre justiça connosco, e que da mesma forma que nos enviaram os sinais da sua presença, também serão capazes de os retirar, e até de atentar contra o nosso povo. Porque, diz o ancião, “aos seres superiores compete a eterna justiça universal”.
Todavia, para além da reunião obrigatória, que se guia pelo número de voltas da luz no céu, não deixo de vir até aqui, quase diariamente. Talvez para me sentir em comunhão com os superiores, mas sobretudo para adorar os seus artefactos, a expressão da sua perfeição e poder. E é por isso que me aproximo deles, quando a multidão se reduz a poucas dezenas de membros do meu povo, para lhes captar os numerosos pormenores, e tentar, através deles, chegar ainda mais perto dos superiores. Afinal, eu, como qualquer membro do meu povo, vivo completamente fascinado por esses seres que povoam as estrelas e que velam por nós. Como seria possível não ser assim? Que nos ajudem sempre, oh seres superiores, pois nós vos adoramos, e havemos de o fazer, para sempre!


Diário da missão, fascículo 3:4000:34 – A missão ao planeta RX-c revelou-se um verdadeiro fracasso. Após séculos de tentativas de estímulo da inteligência e do progresso dos seres com maiores potencialidades no planeta, apenas colhemos desilusões. De facto, e ainda que no início toda a equipa considerasse que os seres necessitavam apenas de um pequeno empurrão tecnológico, a verdade é que essa tese se mostrou completamente errada. Para que fique registado, enviámos para o planeta mais de uma dezena de dispositivos, desde o mais simples computador pessoal, ao mais complexo computador quântico, passando por pequenas aplicações tecnológicas domésticas, com um micro-ondas, e os rústicos e antiquados televisores e rádios (que tivemos de fabricar). Enviámos também ímans, pilhas, geradores de corrente, automóveis a energia solar, e até teleportadores quânticos portáteis. Todavia, e para nosso espanto, os seres deste planeta, ao invés de estudarem os dispositivos que lhes fornecemos, e de os tentarem compreender e copiar, conseguindo fazê-los funcionar, limitaram-se a colocá-los numa enorme zona, à qual acorrem todas as semanas, para apenas os adorarem. Para que fique registado: sondagens realizadas através da leitura das suas actividades neuronais mostram claramente que este povo, ainda que cheio de potencialidades, não poderá nunca atingir níveis tecnológicos consideráveis, porque parece viver rodeado de crenças estranhas e incompreensíveis para nós. De facto, e ao que tudo indica, estes seres estão convencidos de que nós, os Alfa-XG, que de facto vagueamos pelo universo em busca de inteligência, tentando estimulá-la, somos “seres superiores”. Mais: parece ter-se estabelecido um “culto”, nestes seres. Não um culto tecnológico ou progressista, como aquele que se estabeleceu na era pré-histórica da nossa civilização, mas antes um culto a que eles chamam “divino”. O conceito não encontra paralelo nas nossas mentes, mas, ao que parece, estes seres acreditam que somos entes superiores, que vivemos nas “estrelas” (literalmente), e que lhes enviamos “artefactos” (é isso que chamam a toda a tecnologia que lhes enviamos), para que os possam “adorar”. Assim, sem nada mais a declarar, declaro oficialmente encerrado este diário de missão. Partiremos para o próximo planeta, na esperança de lá encontrar seres com um potencial que realmente se possa concretizar.

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