segunda-feira, 12 de julho de 2010

Diário de uma Guinsberguiana

Guinsberg, ano 503, mês 4, dia 20

Ainda não compreendi muito bem por que razão decidi começar a escrever. Talvez devesse recorrer à unidade de cuidados mentais do computador central, contando-lhe as estranhas sensações que tenho tido, ou talvez o melhor fosse mesmo dirigir-me ao hospital de normalização, já ali ao lado. Estou certa de que qualquer uma das anteriores opções desembocaria na solução optimizada para o que sinto. Ficaria mais calma, segura de mim – poderia até voltar a olhar o mundo inteiro num sentimento de perfeição, como sempre o fiz. Mas não. Por incrível que pareça, e pela primeira vez na minha vida, acho que estou a agir contra os princípios fundamentais que tanto prezo, respeito e adoro. E talvez seja por isso que sinto uma vontade tão imensa de desabafar, de expor os meus problemas sem que me normalizem de imediato, ou me critiquem cruelmente.

Assim, aqui estou eu, Qu-4579-Al, a planar magneticamente no meu quarto e a operar sobre o meu computador quântico utilizando apenas o pensamento. Penso em ideias e palavras, e a projecção holográfica diante de mim mostra-me conjuntos de símbolos que interpreto como letras. Algo verdadeiramente ridículo. Mas nem por isso cesso de escrever. Porque no fundo de mim há algo que me fala com a voz de quem passou toda uma vida encerrado num calabouço. Há algo que deseja despertar-me. E eu cedo e deixo-me levar por este corrupio de ideias totalmente ilegais – pelo menos até o computador central de Guinsberg enviar o sinal diário para que todos iniciem as suas tarefas produtivas. Até lá são menos de duas mil batidas de coração.

Se a perfeição existe, então a sua concretização chama-se Guinsberg, a maior e mais bela cidade da galáxia Fitacita, o local onde nasci e onde resido. Onde me posso realizar totalmente trabalhando para o bem comum e sabendo que todos os sistemas trabalham o mais afincadamente possível para me manter sempre a 100%. Em Guinsberg, nada foi feito ao acaso. Embora erguida sobre um imenso pântano, há mais de 500 anos, a cidade mantém-se totalmente inalterável e na vanguarda citadina no que diz respeito às 4 galáxias plenamente colonizadas. Aqui não existe microorganismo algum que possa pôr em risco a saúde dos 250 mil milhões de habitantes que nela residem. Não só porque todos os Guinsberguianos têm direito a mais de 1 milhão de nanorobôs na sua circulação sanguínea, mas também por esses estarem em permanente contacto com a maior base de dados alguma vez concebida: o computador central de Guinsberg.

Existem tantas razões para se viver aqui que todos os dias os computadores fronteiriços da Cidade se enchem de milhões de candidaturas. Vêm maioritariamente de sistemas solares da galáxia, mas muitos – extra-galácticos – chegam a mostrar-se dispostos e percorrer todo o meio intergaláctico para se mudarem para a Cidade. Todavia, o perfeito funcionamento da cidade condiciona totalmente as novas admissões, e, nos meus 22 anos de existência, foram menos de mil aqueles que conseguiram a tão desejada cidadania Guinsberguiana.

Na verdade, o principal entrave à entrada de estrangeiros é o próprio sistema político vigente na cidade, que, pelo que sei, é único em todo o Universo. O seu ideólogo, Gh-58096-00, chamou-lhe iqualitismo-produtivismo e, desde então, não há ninguém que duvide de que ele é a concretização de uma utopia com que a minha espécie sempre sonhou. Sobretudo porque em Guinsberg não há qualquer necessidade de eleições – muito menos de políticos. Assim, a gestão de toda a cidade está a cargo do computador central, que a todo o instante inquere as milhares de milhões de mentes em Guinsberg e toma as decisões tendo em vista todas as opiniões. Por isso, só Guinsberg vive num clima verdadeiramente democrático, onde os cidadãos não precisam de fantoches intermediários para defender as suas posições, ou opiniões.

De súbito, sinto o sinal telepático do computador central a percorrer-me a mente e a fazer-me sentir uma enorme vontade de sair deste meu quarto. Por isso, desligo todo o equipamento com que escrevo, da forma mais rotineira possível, com vista a mostrar que não estive a fazer nada de ilegal e calo todos os meus pensamentos até que regresse do trabalho.

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