segunda-feira, 12 de julho de 2010

Visões de Um Outro Mundo: Cap1.2

“O fim depende sempre do início”, escreveu um pequeno extraterrestre no meu sonho, sorrindo e fitando-me, como se eu fosse o único alvo da sua afirmação em português correcto. Depois interroguei-me “mas como pode um E.T. escrever tão bem português?”, e o meu cérebro, forçado a pensar, despertou-me rapidamente. Desta forma, quando acordei, eram apenas as três dimensões da sala que me rodeavam.

Talvez seja estúpido iniciar assim o meu primeiro esboço de arte literária, mas de um amador como eu não se pode esperar muito mais. E também é verdade que a afirmação do E.T., escrita a branco sobre o negro do xisto, se agarrou tão afincadamente à minha memória que, uma semana depois do sonho, ainda a recordo como se estivesse diante dela. Por isso não consegui deixar de a referir, sabendo, contudo, que se começasse a escrever daqui a um mês, o resultado seria totalmente diferente. Paciência: fica para um outro eu.

Todavia, o facto de citar um extraterrestre atrevido não me faz escapar à constatação de que não faço a mínima ideia do que tudo isto vai tratar.

Há pouco tempo lembro-me de caminhar pela Rua Augusta e de ver na montra de uma rua paralela o livro “O Início de um Livro é Precioso”. Bem, não sei se era mesmo esse o título, mas pouco importa. Também não me recordo do autor ou autora (sou péssimo para nomes). Lembro-me, isso sim, de entrar nessa livraria, cheio de esperança de que nessas páginas estivesse a resposta à minha inquietação (quem sabe, poderia dizer-me como é que se começa um conto). Contudo, bastou-me ler algumas linhas para o meu interesse cair imediatamente para zero e, daí a um tempo de Planck (não sei se nos contos se pode esclarecer alguns leitores, mas, de qualquer forma, não hesito em explicar que o tempo de Planck, para quem não sabe, é um tempo mesmo muito, muito, muito pequeno), fiquei completamente desmotivado para o seu conteúdo.

Hoje, inicio este conjunto de palavras por escrever, e a preocupação pelo princípio parece desvanecer-se, por cada letra que pinto no papel. Sinto-me solto, até. Como se durante toda a minha vida tivesse escrito abundantemente. Por isso decido deixar-me levar pela vontade do sistema mão-caneta-mente, libertando-me de todas as preocupações – relegando-as para os críticos literários (que, como é óbvio, nunca lerão estas palavras, a não ser que gostem de perder tempo, ou então para mostrarem a autores em ascensão o tipo de texto que não devem escrever).

Parece-me a mim que, na maior parte dos contos, a personagem principal é apresentada logo nas primeiras linhas. O problema é que o meu conto ainda não tem qualquer personagem… É só palha. Mas também tem muitas letras, uma caneta amarela que parece mágica, e um físico que nem sequer é físico a armar-se em escritor. Sim, a combinação não é brilhante, mas é o que se pode arranjar.

Bem, acho que está na hora de inventar uma pessoa qualquer. Caso contrário, até eu perderei o interesse por estas páginas em branco, e nem mesmo tu – caneta amarela – conseguirás motivar-me.

Então aqui vai: olá, eu sou a Manuela, tenho 34 anos, e sou a nova personagem deste conto. Ainda não sei onde moro, porque o parvo do escritor não me deu nenhuma casa, mas no futuro gostava de dar paz ao mundo inteiro, mesmo sabendo que o mundo inteiro é só um monte de palavras ocas sem sentido. Para quem quiser votar em mim, é só ligar para o 444555322. Não posso dizer já o custo da chamada, porque o chato que me escreve ainda não sabe e não ficava bem estar a…

Agora a sério: apresento-vos Johanne Ribeiro, a verdadeira heroína desta história (ainda) sem argumento. Mas não pensem que é uma personagem qualquer. Johanne é bem diferente de todas as outras. Melhor, muito melhor. E alerto-vos já para o facto de ser uma verdadeira deusa do século XXI, daquelas que subjuga Afrodite com um simples sorriso. Ah, e morena. Sim, porque Johanne, acima de tudo, é extremamente inteligente. E mais: é estudante de doutoramento no Caltech. Para trás ficou um percurso brilhante em todos os graus académicos.

Para os interessados, ela encontra-se, de momento, livre. Teve uma relação de dois anos com um colega de curso, mas facilmente se fartou das suas paranóias, quando, nos três meses finais, passaram a viver juntos. Agora baixinho, para que não nos oiça: Johanne tem um carácter um pouco, digamos… difícil. Embora extremamente amável e amiga de todos, sofre de um certo… “síndrome de independência”. Quer isto dizer que necessita do seu próprio espaço, e precisa, sem dúvida, de se sentir rodeada por coisas que lhe digam algo. Escusado será dizer que os garanhões californianos já desistiram dela há muito. Não por ter deixado de ser apetecível, mas por ela ser, no dizer de Mr. Camarinha, “um caso particular das mulheres difíceis: uma impossível”. Claro que, no início, esse facto era um estímulo adicional à conquista de Johanne, por parte de todo o tipo de engatatões, com idades compreendidas entre os 16 e os 56. Contudo, as sucessivas derrotas fizeram a grande comunidade Camarinhae concluir, em assembleia-geral extraordinária, que Johanne ou dava para o outro lado, ou então tinha sexo matemático. Talvez por isso todos afirmem, agora, que ela não é tão espectacular quanto os seus olhos vêem – mas a verdade é que à noite todos sonham com ela.

É realmente estranho criar uma pessoa assim, de um instante para o outro. Todavia, é ainda mais impressionante a sensação que essa vida provoca em mim. Como se caminhasse para a independência. Quase como se, daqui a instantes, eu não fosse mais do que um observador da vida de Johanne Ribeiro.

Ah, mas falta ainda esclarecer esse maravilhoso apelido luso, herdado de seu pai, José Ribeiro, um português que emigrou para os Estados Unidos aos 18 anos em busca de uma fortuna “desmesuradamente grande”, como um dia referiu. Todavia, as suas expectativas saíram furadas, e José não chegou sequer à pequenina unha do pé de Bill Gates. Mas nem por isso deixa de se considerar o homem mais rico do mundo, e isto desde que Johanne nasceu, no dia 4 de Fevereiro de 1982.

E claro que a forte ligação entre José e Johanne implica muitas conversas na língua lusitana. Por isso, o português é uma das languages que a nossa heroína carrega no seu currículo, invejado por muitos jovens norte-americanos. E a verdade é que Johanne fala-o soberbamente – muito melhor do que alguns paspalhos que às vezes vão à televisão armar-se em espertos.

Por outro lado, o facto de falar tão bem a língua lusitana facilita-me bastante a vida. Isto porque, nos últimos pormenores, foi como se ela me tivesse ditado as frases e eu me limitasse a escrever tudo aquilo que ela queria.

Ouço o telemóvel e salto de susto, como se despertasse de um sonho abruptamente. Mas, no fim de contas, não é nada de especial. É apenas o meu professor de física de partículas a pedir-me para lhe entregar aquele trabalho que terminei há uma semana e que me tenho esquecido de lhe levar, consecutivamente. Claro que esse constante esquecimento seria motivo de teses de doutoramento para inúmeros psicólogos e psiquiatras, sobretudo se lhes falasse da minha estranha relação com a amarela. De qualquer maneira, a explicação para todas as peculiares sensações que agora me afectam torna-se auto-evidente quando olho para o relógio e leio “1:01”. E, de súbito, lembro-me que amanhã tenho aula de mecânica quântica pelas 9 da manhã. O mais estranho é que nem isso me dilui a excitação para a escrita. O facto de ver Johanne à minha frente, a sorrir-me, parece ser mais forte do que o mecanismo orgânico que descarrega hormonas a dizerem “vai dormir, já!”. Mas o melhor talvez seja mesmo ir para a cama. Amanhã estarei mais sóbrio e então poderei continuar este monte de lixo literário.

Depois, já na cama, pareço ouvir Johanne a dizer “boa noite”, a dizer “sleep well, sweet dreams”. Acho que preciso mesmo de descansar, sobretudo porque logo pela manhã a teoria quântica vai puxar ao máximo por todos os meus neurónios.

Até amanhã, Johanne.


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