segunda-feira, 13 de novembro de 2006

Regresso

Anoitecia, ainda que o Sol – ou aquilo que restava dele – tentasse ainda apoiar-se no horizonte, para de novo se levantar. Daen percorria agora a reduzida distância até ao seu destino de uma forma ainda mais calma e lenta. De tal forma que chegava a parar, durante alguns minutos, só para poder olhar o mundo à sua volta: ali, o lugar que fora seu, o universo que um dia conhecera melhor do que a palma da sua mão. E depois voltava a caminhar, sentindo no peito um arrepio que era um misto de saudade, suposição e talvez – embora ele nunca o pudesse admitir – de um possível arrependimento (ou pelo menos de uma vontade de tentar fazer tudo de uma outra forma).
O Sol escondera-se atrás das montanhas de Delfir quando Daen chegou finalmente à porta da sua casa. Ou melhor, daquilo que fora a sua casa durante os seus primeiros vinte anos de vida. Por momentos, quase acreditou que ali dentro ainda vivia toda a sua família, com toda a sua alegria e simplicidade, sempre ansiosa por convidados aventureiros e por ouvir as suas histórias de coragem.
Mas quando abriu de novo os olhos, e mesmo perante a escuridão que se ia abatendo sobre a casa, Daen sabia que nada podia ser como fora antes. Afinal, toda aquela zona fora atingida pela peste e sofrera uma invasão da parte dos terríveis Filxnors, com o único intuito de pilhar e roubar tudo o que tivesse um valor mínimo para ser vendido aos povos mercantes. De facto, e face a esses acontecimentos, era extraordinário que a casa se mantivesse tão conservada. Quase como se estivesse igual ao que fora, 40 anos antes, quando Daen a abandonou para seguir o seu sonho.
Com um arrepio a correr-lhe o corpo, Daen abriu a porta, lentamente. De dentro veio, quase instantaneamente, um leve cheiro a mofo, mas, ao mesmo tempo, uma brisa de algo que era tão familiar a Daen. Entrou, fechou a porta atrás de si, e, pela primeira vez desde há anos, sentiu-se verdadeiramente em casa. Como se nunca tivesse abandonado as montanhas de Delfir, a sua casa, a sua família, ou a única mulher que amou. Como se a sua vida tivesse sido tal e qual a do seu pai, a do seu avô e a do seu bisavô. Caminhou pela casa, onde outrora viviam mais de 10 pessoas, e tentou imaginar como seria se nunca tivesse partido. Teria sido feliz? Teria conseguido viver com o possível arrependimento de nunca ter seguido o seu sonho? E onde estaria agora, se ainda estivesse vivo?
Subiu as escadas que o levavam até aos quartos, e não conseguiu deixar de entrar naquele que um dia fora seu e dos seus dois irmãos mais velhos. Estava escuro. De qualquer forma, e tal como no piso anterior, Daen conseguiu perceber perfeitamente que a casa já vivera melhores dias. A madeira, devido às pragas e à humidade, parecia prestes a estalar por cada passo que ele dava, e toda a pouca mobília que ainda restava estava em péssimas condições. Porém, nem por isso Daen deixou de se aproximar do espaço onde outrora dormia. A cama onde cresceu e onde teve pela primeira vez o sonho que o levou para bem longe de Delfir. E, por isso, foi sem medo que se deitou nela, o seu corpo agora 40 anos mais velho do que da última vez. Fechou os olhos e sentiu-se calmo. Como se algo naquele momento, naquele espaço, lhe dissesse que ele conseguira. Que fora árduo, doloroso, e por vezes desesperante, mas que ele, Daen, cumprira o seu sonho, e estava agora, finalmente, de volta a casa. Mesmo que a sua casa – tal como ele – tivesse mudado.
Voltou a abrir os olhos, e viu, na sua mesa-de-cabeceira, um papel, muito amarelo. Curioso, Daen tentou lê-lo, mas a pouca luz que vinha do exterior era insuficiente. Por isso, não hesitou em dirigir-se para a janela onde – sabia – a luz de uma Lua cheia o ajudaria a matar a sua curiosidade.
Daen pegou no papel amarelado e gasto pelo tempo (quase tanto quanto a sua pele), e abriu-o, à luz da lua, e perante a brisa que soprava das montanhas. Não fazia a mínima ideia do que poderia ser, mas o seu coração, ainda há pouco tão calmo, batia agora com ansiedade e entusiasmo. Afinal, ali estava algo que ainda o podia ligar à sua vida de há 40 anos atrás, e a tudo aquilo que, mesmo tendo de abandonar, nunca deixara de amar com toda a sua vida.
Era um bilhete. Uma mensagem para ele, Daen, escrita por ela, Aelen, a mulher com quem sonhara toda a sua vida, e a razão pela qual o seu sonho nunca o tinha feito sentir-se pleno, mesmo depois de o realizar quase na íntegra. Porque há 40 anos atrás, quando ele lhe falou no seu sonho, ela decidiu ficar. Decidiu que não interferiria com o caminho de Daen, e que ela, Aelen, ficaria para sempre em Delfir, pois era esse o seu lugar.
Agora, porém, o coração de Daen batia ainda mais forte. Nas suas mãos estava algo escrito por ela. Uma mensagem, uma carta. E, pela primeira vez desde há 40 anos, ele poderia contemplar a sua letra. Ler os seus pensamentos. Sentir as suas preocupações, os seus sentimentos para com ele. Como se de novo pudesse cair nos seus braços, abraçar o seu corpo, ou sentir os seus lábios.

Para Daen, se alguma vez voltares,

A semana passada começou com notícias terríveis para todo o povo de Delfir. Ao que parece, uma peste incurável está já a matar os nossos compatriotas, e dirige-se para cá. E, como se não bastasse, também há boatos de que os Filxnors planeiam invadir-nos, unicamente para nos roubarem, destruírem, e depois partirem. De resto, já ouvi dizer que foram os Filxnors que trouxeram a peste para a nossa terra, com o intuito de nos deixarem ainda mais assustados e frágeis perante o seu feroz ataque.
E por onde estarás tu? Será possível que ainda te encontres vivo? E que estarás tu a fazer? Terás conseguido realizar o teu sonho quase impossível? Quem me dera poder saber…
Fazes-me falta, Daen. Por mais que tenha tentado parecer decidida, quando partiste, hoje tenho a maturidade suficiente para dizer que estou tremendamente arrependida. Se fosse hoje o dia da tua partida, teria até suplicado para que me levasses contigo. Para que me deixasses estar sempre perto de ti.
Todos me dizem que é inútil deixar-te esta mensagem. Que estás morto há muito, e que, em breve, também nós morreremos. E dizem-me que esta casa, a casa onde deixo este bilhete, e onde tu cresceste, não será mais do que um conjunto de ruínas, quando for totalmente destruída. Mas nem por isso deixo de ter esperança. Afinal, ainda recordo as tuas palavras: sonhar nada custa.
De qualquer forma, Daen, escrevo para que saibas que estou prestes a alistar-me no regimento de defesa de Delfir, pois sei que é o que farias, se aqui estivesses. A ti – ao contrário de mim e de muitos de nós – nunca faltou a coragem para enfrentar os maiores perigos e desafios, e por isso sei que esta é a decisão mais acertada de toda a minha vida.
Por tudo isso, e mesmo na eventualidade de esta casa sobreviver o suficiente para guardar este bilhete, e de tu voltares para o ler, o mais provável é que tenha sido violentamente morta por uma besta Filxnor. Porém, quando o for, sei que estarei mais perto de ti do que nunca, porque não só segui a tua coragem e exemplo, como também lutei para proteger tudo aquilo que sempre amaste em Delfir.
Para sempre tua,
Aelen.

Sem comentários: