quarta-feira, 1 de novembro de 2006

Whispers

O vento sobre as asas em liberdade e aqui vou eu, para onde a vontade e o destino me levarem.
A tarde cresce sobre este viveiro de garçons (empregados, desempregados e assim-assins) e dita o calor que atravessa as minhas penas, soltas ao vento.
Pergunto: o que será do meu amigo e irmão, o dispensamentante, o tal que sofria de dispensamentia e que teoricamente já não sofre, pois o tratamento, presenciado pela minha pessoa, foi extremamente bem sucedido? Penso: talvez a cura o tenha tornado numa gaivota, idêntica a mim, com asas análogas às minhas. Talvez até seja uma dessas aves gigantes que voam alto e que gritam, por vezes de forma ensurdecedora, às quais os professores de gaísica chamam gaiviões.
Pouso na areia da praia e sinto o sol a tocar a minha face suavemente. No céu, algumas gaivotas voam em círculos, mas não vejo nenhuma fêmea pela qual valesse a pena levantar-me daqui. Claro que uma ou duas, na verdade, não são mesmo nada de se deitar fora, mas também é certo que nenhuma perfaz, na totalidade, o meu estilo. Por isso, decido caminhar um pouco pela areia, olhando o cenário que me rodeia.
O mar: um conjunto de ondas infinitamente dispersas por um azul de céu e uma frescura de tarde. Olho-o e vejo um caminho a traçar-se, por cada onda que perto de mim rebenta. Como se cada pedaço de espuma fosse uma letra da palavra destino, como se estas pequenas ondas estivessem a rebentar num papel chamado mundo, que talvez seja o meu, o do meu amigo dispensamentante, ou até daquela garçonne que caminha ao longe (très chique, para dizer a verdade) e que conversa com um garçon quinze gaianos mais novo.

Agora? Agora não há tempo, nunca há tempo. Agora sou um gaientista multi-premiado e multi-conhecido. Agora as cartas de fans chegam às resmas de cem e jamais tenho um momento para as ler. Não existe tempo senão para o lazer, para desfrutar de uma vida que para mim não é nenhuma obrigação. A vida: a plenitude de bem usar a liberdade das minhas asas para brilhar no céu como uma estrela.
Avanço para o mar, abrindo as asas. Voo sobre as águas. Mergulho a pique pelos céus de fim de tarde e detenho-me num mergulho marítimo, sem que tenha qualquer intenção de apanhar este ou aquele peixe que por aqui nadem.
Na verdade, o meu corpo não tem fome. O restaurante onde o meu grande irmão trabalha – ou trabalhava, porque hoje não o vi por lá – satisfaz-me todos esses desejos que por vezes me agitam o estômago.
Paro. O meu corpo é a flutuação da liberdade sobre a infinidade gelada, que por alguma razão não me consegue fazer sentir frio. Sinto o Mundo, sinto o céu. E depois o mar. Tudo mora em mim, num momento, numa vida.
Penso: talvez tenha em mim o poder de, a cada minuto, escrever um novo capítulo no romance da minha vida, ou talvez tudo isto seja uma ilusão. Talvez os sons que associo ao mar, às ondas, ou até à liberdade, não sejam mais do que a leveza de, por exemplo, um objecto metálico riscando o papel. Ou talvez eu seja louco e tudo isto seja uma alucinação. Na verdade, todas as três últimas hipóteses têm fortes argumentos que as fundamentam e, ao mesmo tempo, as contradizem. Consequentemente, se alguém – o sol, a lua, ou o meu amigo dispensamentante curado – me obrigasse a escolher, confesso que não saberia o que fazer.
Escolher uma resposta que explica a nossa existência não é apenas difícil – é, sobretudo, um erro.
A noite sobre o dia, a sobrepor-se a ele, a cada instante, e eu a escurecer com ela e a olhar a minha imagem de gaivota perdida reflectida no mar.
Não suporto mais. A mentira é assim – leva a mais mentiras. E é como um vírus sem cura. Mentira, mentira, mentira. Reproduz-se, multiplica-se, e domina-nos totalmente. E torna-se impossível resistir-lhe. Mentira, mentira, mentira, mentira, mentira, mentira. Até que o espaço se torna reduzido para todas as mentiras e a verdade regressa como a salvação.
Esse momento chegou. Não percebo bem porquê, mas sei que chegou a hora.
A verdade é que não tenho cultura. Não sei outras línguas, e as palavras que às vezes me escapam foram-me ensinadas por garçons estrangeiros de penas amarelas na cabeça, que por vezes me cedem alguns pedaços do seu manjar.
Sento-me aqui, perdido, só, num mar que escurece, numa noite que cai. Reduzo-me àquilo que sou, a tudo o que sempre fui: a materialização da rejeição, a gaivota louca, a que não regula bem dos gairolitos ou a que não joga com o baralho todo. A mentira vai-se e não tenho medo. Por isso não receio dizer que nunca tive sequer uma amizade, em toda a minha vida.
Não sei o porquê de tudo isto, de toda esta confissão (porquê agora?), mas a verdade é que as palavras parecem sair de mim – abandonar-me – de uma forma cada vez mais fluente, como se eu fosse um mestre de gramática, ou um conhecido escritor.
Tudo é noite e a noite sou eu, neste frio em que flutuo. As gaivotas não choram, diziam os professores de emoção e disciplina. Todavia, nem tais palavras são capazes de travar os pedaços de dor, sob a forma de gotas salgadas, que em breve se misturarão com as águas do oceano. Choro e vejo as minhas lágrimas a correrem pelo meu rosto, a contornarem o meu bico amarelo e a caírem no mar.
Olho as estrelas e sinto inveja – como se pode ser tão belo, tão perfeito, e, como se não bastasse, ainda viver em luz?
Questiono o céu e o mar: a resposta é a escuridão da noite.
A areia da praia, que se vai afastando de mim à medida que a maré enche, lembra-me a minha vida, sem que compreenda porquê. A minha dor: ser órfão de mãe, órfão de pai. Mais ainda: ser órfão de amor.
Sim, agora já não há razões para mentir – a verdade ganhou. Não há, nem nunca houve, amor na minha vida. Essa palavra nem sequer me atiça fogueiras de sofrimento, visto que jamais provei uma labareda do seu fogo. Na verdade, as gaivotas fêmeas afastam-se de mim, fogem, levantam voo, sempre que pouso em leveza junto delas.
Penso: o meu destino é ser assim: louco, vazio, só. E talvez haja uma razão para tal, ou talvez tudo isto seja apenas um sonho que se prolonga um pouco mais que os outros, e por essa mesma razão se torna real.

Sinto uma agitação, por debaixo das minhas penas encharcadamente geladas, enquanto a noite se torna cada vez mais dominante.
De novo o agitar da água. Movimentos. Uma barbatana cinzenta a rodear-me. Um peixe, louco como eu, a querer dizer-me algo. Um pedaço de vida forrado a escamas, colocadas em cuidados de obra de arte, respeitando um padrão que se repete de geração em geração, a perguntar-me por que não vens voar dentro de água?, a questionar-me por que não mergulhas para descobrires como é bom ser-se livre no interior do oceano? A dizer-me anda, não fiques aí sozinho, há tanto para descobrir; vem, eu ajudo-te.

Talvez seja no impossível que vive a felicidade que nunca conheci. Se assim é, talvez seja na loucura de romper com as normas que mora o êxtase da alegria. A verdade é que estou a voar debaixo de água, acompanhando a minha recém-amiga escama-simpática e a competir amigavelmente com ela, e sei que nunca me senti tão feliz.
Talvez seja nas uniões impossíveis que a explicação do mundo, que tantos procuram, possa ser descoberta, e talvez seja num abraço por entre o voo, desde o mar até ao céu, entre uma gaivota e um peixe, que more a chave para a luz das estrelas que sempre ambicionei ter, mas que apenas agora encontro. (O que procuramos está sempre tão perto de nós).
E talvez a felicidade do impossível seja a própria luz. Afinal, por que razão brilham as estrelas?
Só um destino partilhado pode ter um verdadeiro sentido, porque na descoberta de uma outra alma, que nos toca fundo, não descobrimos apenas o mundo que existe para além do que somos, mas também o universo que se move dentro de nós.
E agora, pensar não é mais do que um desperdício de tempo, uma operação complexa sem razão de ser. Por isso esqueço que penso e que sei e que tenho, para voar – pelo mar, pelo céu; pelo céu, pelo mar – com a alma que vive como eu e sonha a meu lado (ainda que ela tenha escamas e eu penas, mesmo que ela voe pouco no céu e eu pouco no mar). Na verdade, são as diferenças que, no final, nos atraem. São as diferenças que nos completam. O resto? O resto é todo um mundo de mistérios que só as estrelas e o amor sabem explicar.

E à lua, consegues chegar, margarida?

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