sexta-feira, 3 de novembro de 2006

Diário do Bordo do Capitão Fx-45034-gl, Entrada 6M-5000

Foi pela manhã do 2º dia do ano 5675 do calendário de bordo que os nossos sistemas de monitorização do espaço exterior alertaram o computador central de que havíamos atingido mais um ponto de passagem obrigatório da nossa longa expedição rumo aos segredos mais bem guardados de toda a galáxia local. É certo de que, a navegarmos há quase 6000 anos, todo o contacto com o planeta-mãe havia sido perdido há muito, sendo certo de que não havia qualquer forma de comunicar os resultados por outro modo se não o de um feixe electromagnético altamente concentrado. Por outro lado, a energia dispendida para comunicar os resultados era de tal ordem (devido à distância a que agora nos encontrávamos), que o próprio computador central havia apoiado a decisão de enviar resultados de 500 em 500 anos, e só se houvesse uma quantidade de informação igual ou superior a 600 mil terabytes.
De qualquer forma, assim que dirigi os meus sensores electromagnéticos para o sistema que estávamos prestes a estudar, fiquei completamente deslumbrado. De facto, e ainda que a imagem “visível” (aquela que, se fosse humano, viria) fosse incrível, a verdade é que ter a capacidade de discernir este sistema que se apresenta mesmo à nossa frente, em todos os comprimentos de onda, faz-me sentir uma plenitude existencial indescritível. É óbvio que me sinto assim quase sistematicamente, pois serão talvez poucos os sistemas incluídos neste “roteiro de turismo científico” que não possam ser classificados com os mais belos adjectivos que a língua humana criou, mas gosto sempre de referi-lo neste diário do bordo.
Mas vamos ao que interessa. No fim de contas, não foi para descrever (apenas) numa perspectiva humana e pseudo-sentimental tudo aquilo que os meus sensores de última geração captam do exterior que fui construído. Por isso, agora que já dei um toque de “humano” à descrição, passo a analisar o exterior, numa perspectiva bem mais objectiva. E, por isso, não posso deixar de referir aquilo que é mais óbvio: trata-se de um sistema binário de estrelas, em que ambas rodam em torno do centro de massa comum – ou, numa outra perspectiva, cada uma roda em torno da outra. Por outro lado, o interessante neste sistema local (de facto, ainda muito perto do planeta-mãe), é o facto de ser constituído por duas estrelas que têm uma enorme diferença de massa. Assim, enquanto uma delas se reformou já, tornando-se numa pequena anã branca, a outra, ainda que numa fase terminal da sua vida, mostra todo o esplendor de uma estrela gigante de mais de 10 massas solares-mãe. O que faz com que, na prática, a estrela gigante pouco se mova, e a estrela anã seja quase como um planeta que a orbita, tal como o planeta-mãe orbita o sol-mãe numa órbita perfeitamente determinada. Todavia, e aqui é que está o maior ponto de interesse nesta visita, a estrela gigante é uma das que tem um enorme potencial de se tornar num buraco negro, e esse momento está bastante próximo. Próximo, claro, em linguagem de Universo pura pode significar qualquer coisa como muitas centenas de milhares de anos, portanto, ainda que o perigo exista, todas as previsões (efectuadas no planeta-mãe, antes da partida da expedição), indicavam que a probabilidade de algo “correr mal” se situava algures entre 1% e 2%.
Assim, e porque o tempo urge, inicio já a preparação da sonda portátil, que me levará ainda mais perto de ambos os corpos, para que possa recolher dados importantes que permitirão o seu estudo detalhado. Em segundos, o sistema informa-me de que tudo está a postos, pelo que me encaminho para a sala de “visita exterior”, como lhe chamo, e espero que o sistema trate de me colocar no pequeno módulo. Assim, e tal como sempre, em poucos segundos estou já a dar instruções ao mini-computador central de bordo, para que me guie em direcção à anã branca, o estado final de uma estrela que, pelas estimativas, era em tudo idêntica ao sol-mãe. Coloco-me a mim mesmo no modo de stand-by e, por isso, quando desperto, estou já nas vizinhanças da anã branca. Rapidamente activo a recolha de dados em todos os comprimentos de onda, e para os mais diversos fluxos. Coloco o processador do mini-computador central na máxima potência, e aproveito para ampliar os colectores solares em volta da Nave, para que possa sobretudo carregar as baterias com o enorme fluxo luminoso da estrela gigante que se encontra por detrás de mim. Deixo-me ficar a olhar o mais de perto possível aquela estrela velha, agora tão pouco luminosa, onde outrora triliões e triliões de núcleos de hidrogénio foram “queimados” para dar origem a hélio, e a uma quantidade enorme de energia que, durante milhões de anos, fez com que esta estrela brilhasse de forma semelhante ao sol-mãe. E, no meio da recolha de dados, dou por mim a pensar no planeta-mãe e no seu destino. Porque, no fim de contas, também o sol-mãe “morrerá”, e, mesmo que se vá expandindo, durante muito tempo, até se transformar numa gigante vermelha, a sua fase final, como anã branca, chegará de uma forma tão rápida que, mesmo que o sol tivesse alguma consciência, não se poderia aperceber de tal processo. E, depois de absorver os primeiros planetas, e de se expandir ao máximo, contrair-se-á e acabará em algo completamente idêntico ao corpo que está mesmo à minha frente. Pergunto-me apenas o que será da humanidade quando essa Era chegar? Até onde conseguirão ter ido? E serão os dados da missão que comando importantes para a sua sobrevivência?
Detenho-me em perguntas filosóficas quando os meus sensores traseiros detectam uma quantidade enorme de neutrinos a serem disparados na minha direcção. Tento manter todos os meus sistemas a funcionar nos seus níveis mais normais, e analisar o que se está a passar, mas, mesmo sendo uma máquina pseudo-humana, um ser de inteligência artificial, não deixo de sentir uma pontada de pânico – ou aquilo que imagino que o pânico possa ser para um humano – quando me apercebo de que a estrela gigante, azul, a uma temperatura enorme, está mesmo a explodir, prestes a transformar-se numa super-nova e a acabar comigo em segundos. Tento pensar em regressar à nave-mãe, em ligar os motores de fusão nuclear na máxima potência, para poder escapar ao que se vai seguir, mas sei perfeitamente que isso não resultaria. Por isso, ao invés de tentar fugir, reúno todos os dados que recolhi, incluindo aquilo que escrevo neste momento, no meu disco interno, e acciono o emissor, na sua máxima potência. Introduzo a palavra-passe para desactivar o sistema de segurança e poder utilizar toda a energia para enviar tudo aquilo que possa, e emitir também esse sinal para a nave central.
Pressiono a tecla para que tudo se desencadeie, e dou por mim a olhar a gigante, numa explosão incrível, e a sentir o nível de radiação a aumentar, cada vez mais, de uma forma cada vez mais perigosa, enquanto vou vendo no ecrã toda a informação a ser enviada na direcção do planeta-mãe. Penso em toda a humanidade. Naquilo que terão de enfrentar nas próximas centenas de milhares de anos, e sinto-me quase humano, sobretudo porque estou orgulhoso do trabalho que, durante os últimos 5675 anos desempenhei. Por isso, agora que o escudo de radiação do módulo é desfeito, e o meu mundo está prestes a terminar, penso na quantidade de carbono e outros elementos pesados, tão fundamentais à vida, que estão a ser produzidos na explosão, e na quantidade de matéria-prima que se liberta e que poderá, dentro de poucas centenas de milhares de anos, formar um novo sistema solar, e sinto-me vivo. Mesmo sendo um robô de inteligência artificial de implantes biológicos. Boa sorte, humanidade, e até sempre!

Sem comentários: