sexta-feira, 7 de julho de 2006

Rumo a Sul

Esperávamos todo o ano por aquele momento mágico em que todos nós nos reuníamos, uma vez mais, para rumar para sul. Aguentávamos quase um ano de aulas, sobrevivíamos a testes e exames, e ali estávamos, novamente, cheios de entusiasmo para mais um fantástico festival de verão que – sabíamos – seria o melhor de sempre. É claro que muitos de nós pouco mais sabiam do que um ou dois nomes que iriam estar presentes, mas nem por isso deixavam de viver, com a maior das ansiedades, os momentos que antecediam as primeiras horas em solo alentejano.
Partíamos quase sempre de expresso, com a nossa maior mala repleta de (quase) tudo o que iríamos precisar para (sobre)viver à vida na Zambujeira do Mar e arredores, e nem as muitas horas de viagem nos tiravam o ânimo. Até porque tínhamos tanto para contar e planear, que nenhuma viagem, por mais extensa que fosse, poderia ser entediante – pelo menos para nós. E assim passávamos as horas: em risos, confidências, e novidades.
Para além disso, e como conseguíamos sempre partir antecipadamente, era rara a vez em que não aproveitávamos para ficar pelas redondezas e, por isso, Porto Côvo e Vila Nova de Mil Fontes (a tal terra das três mentiras, por não ser nem vila, nem nova, nem ter mil fontes...) eram localidades quase tão familiares quanto a Zambujeira. É claro que, por razões óbvias, nunca chegámos a conhecer muito bem os dois locais durante o dia – à excepção da praia, claro. De qualquer forma, e mesmo que apenas de noite, não havia nenhuma miúda gira que escapasse ao nosso apuradíssimo detector de beleza, ainda que o sucesso da "equipa" nunca conseguisse ser de 100%, no que toca ao engate...
No entanto, com ou sem miúdas (giras), a estadia em Porto Côvo ou em V. N. Mil Fontes não se prolongava por muito mais do que três ou quatro dias. O grande Sudoeste estava mesmo a chegar. Podia sentir-se no ar das próprias localidades vizinhas. Havia os lançadores de chamas, os malabaristas, os freaks, os artistas e pseudo-artistas, os vendedores de ganza profissionais e pseudo-profissionais, e aqueles grupos de amigos que ainda tentava arranjar dinheiro de última hora para os bilhetes. Havia isso tudo, e sobretudo aquela brisa de mar, e os carros cheios de pó – um pó que, em qualquer outra altura não seria mais o que simples sujidade, mas que, para nós, à medida que nos aproximávamos do nosso grande destino, era a assinatura unívoca de que estávamos prestes a viver mais alguns momentos extraordinários.
E assim era, sempre, ano após ano. Ouvíamos e vibrávamos com os concertos, enquanto competíamos pela maior bebedeira e experimentávamos a melhor erva que se podia comprar por ali. Depois dos concertos, e quando os ouvidos nos começavam a incomodar, afastávamo-nos um pouco, e ficávamos, bêbados, a jogar futebol com a pequena bola maltratada que levávamos sempre. Outras vezes, e sobretudo quando não levávamos miúdas, havia sempre um ou outro a tentar fazer-se a esta ou aquela, e, perante a bebedeira geral, a taxa de sucesso aumentava de forma incrível, sobretudo quando comparada àquela que tínhamos, dias antes do festival.
E era assim que vivíamos intensamente o Sudoeste, numa agitação permanente, e sobretudo numa ânsia de viver que ali, longe da escola, dos pais, e das pessoas conhecidas, se expressava de uma maneira tão intensa que nenhum de nós tinha vontade de pisar o travão.
E quando tudo acabava, e era tempo de fazer as malas e entrar no expresso para casa, sabíamos, ainda que estivéssemos completamente estafados, que, mais do que nunca, tinha valido a pena. E para o ano havia sempre mais.

O Culto dos Superiores

Serei sincero: não sei quando é que o culto dos superiores começou. Tão-pouco estou a par de quando se encontrou o primeiro artefacto sagrado. E para que importa isso? O divino é divino, e por isso não precisa de tempo nem lugar, de início ou origem. E o culto dos superiores é de tal forma natural, tão absolutamente intuitivo para todo o nosso povo, que não há razões para sequer pensar em o questionar.
De 7 em 7 voltas completas da luz que brilha no céu, todos nós nos reunimos aqui, neste local sagrado, para adorar as obras dos seres das estrelas, que caíram dos céus há muito tempo. E é então que o ancião-mor profere o seu discurso, e todos nós o ouvimos, em silêncio. Porque o ancião-mor é o grande líder do nosso povo, e sabe imenso sobre os seres superiores. E às vezes, quando se sente com uma óptima disposição, chega até a revelar-nos pormenores sobre as vidas dos seres que vivem nas estrelas por cima das nossas cabeças. Conta-nos como utilizavam os artefactos que agora guardamos e adoramos com o maior apreço, e demonstra-nos, com a sua expressividade, o imenso poder dos seres superiores. Outras vezes, porém, e sobretudo quando se abate sobre o nosso povo algum problema, lembra que os seres superiores farão sempre justiça connosco, e que da mesma forma que nos enviaram os sinais da sua presença, também serão capazes de os retirar, e até de atentar contra o nosso povo. Porque, diz o ancião, “aos seres superiores compete a eterna justiça universal”.
Todavia, para além da reunião obrigatória, que se guia pelo número de voltas da luz no céu, não deixo de vir até aqui, quase diariamente. Talvez para me sentir em comunhão com os superiores, mas sobretudo para adorar os seus artefactos, a expressão da sua perfeição e poder. E é por isso que me aproximo deles, quando a multidão se reduz a poucas dezenas de membros do meu povo, para lhes captar os numerosos pormenores, e tentar, através deles, chegar ainda mais perto dos superiores. Afinal, eu, como qualquer membro do meu povo, vivo completamente fascinado por esses seres que povoam as estrelas e que velam por nós. Como seria possível não ser assim? Que nos ajudem sempre, oh seres superiores, pois nós vos adoramos, e havemos de o fazer, para sempre!


Diário da missão, fascículo 3:4000:34 – A missão ao planeta RX-c revelou-se um verdadeiro fracasso. Após séculos de tentativas de estímulo da inteligência e do progresso dos seres com maiores potencialidades no planeta, apenas colhemos desilusões. De facto, e ainda que no início toda a equipa considerasse que os seres necessitavam apenas de um pequeno empurrão tecnológico, a verdade é que essa tese se mostrou completamente errada. Para que fique registado, enviámos para o planeta mais de uma dezena de dispositivos, desde o mais simples computador pessoal, ao mais complexo computador quântico, passando por pequenas aplicações tecnológicas domésticas, com um micro-ondas, e os rústicos e antiquados televisores e rádios (que tivemos de fabricar). Enviámos também ímans, pilhas, geradores de corrente, automóveis a energia solar, e até teleportadores quânticos portáteis. Todavia, e para nosso espanto, os seres deste planeta, ao invés de estudarem os dispositivos que lhes fornecemos, e de os tentarem compreender e copiar, conseguindo fazê-los funcionar, limitaram-se a colocá-los numa enorme zona, à qual acorrem todas as semanas, para apenas os adorarem. Para que fique registado: sondagens realizadas através da leitura das suas actividades neuronais mostram claramente que este povo, ainda que cheio de potencialidades, não poderá nunca atingir níveis tecnológicos consideráveis, porque parece viver rodeado de crenças estranhas e incompreensíveis para nós. De facto, e ao que tudo indica, estes seres estão convencidos de que nós, os Alfa-XG, que de facto vagueamos pelo universo em busca de inteligência, tentando estimulá-la, somos “seres superiores”. Mais: parece ter-se estabelecido um “culto”, nestes seres. Não um culto tecnológico ou progressista, como aquele que se estabeleceu na era pré-histórica da nossa civilização, mas antes um culto a que eles chamam “divino”. O conceito não encontra paralelo nas nossas mentes, mas, ao que parece, estes seres acreditam que somos entes superiores, que vivemos nas “estrelas” (literalmente), e que lhes enviamos “artefactos” (é isso que chamam a toda a tecnologia que lhes enviamos), para que os possam “adorar”. Assim, sem nada mais a declarar, declaro oficialmente encerrado este diário de missão. Partiremos para o próximo planeta, na esperança de lá encontrar seres com um potencial que realmente se possa concretizar.

terça-feira, 4 de julho de 2006

O Novo Imperador do Universo

Rejubilemos. Todos nós. Famílias galácticas ou solares. Seres puramente biológicos, bioiformáticos, ou protótipos totalmente informáticos. Rejubilemos porque hoje há uma nova era que começa. Hoje, todo o universo poderá sentir a verdadeira alegria, pois é chegada a hora da tomada de posse do novo imperador do universo na sua quinquagésima era!
A mim, enquanto seu futuro ministro para a comunicação de âmbito geral, cabe-me anunciar que de facto se aproximam novos tempos. Tempos de prosperidade. Tempos de riqueza e valorização de todo o universo como um todo, que finalmente nos tirarão da cauda da lista dos universos mais desenvolvidos. De facto, aproveitaria esta oportunidade de me aproximar de todos vós para, inclusivamente, expressar a minha profunda convicção nas inigualáveis capacidades do nosso novo imperador.
Nunca antes o nosso universo teve como imperador um humanóide de inteligência combinada, totalmente construído para ser o ser mais fantástico ser que alguma vez habitou as 4 dimensões do nosso prezado mundo. Graças a ele, prezados cidadãos, os computadores de previsão futura de longo alcance prevêem grandes feitos para todos nós. Feitos grandiosos que incluem o escalar da lista de desenvolvimento universal. Os próprios computadores-previsores dos principais universos adversários confirmam isso mesmo: o nosso universo atingirá níveis de desenvolvimento económico e cultural sem precedentes, e isso tonar-se-á claramente visível em menos de apenas dez mil anos, caros cidadãos! Portanto, resta-me unicamente motivar-vos para reflectirem naquilo que o nosso novo imperador terá conseguido realizar, quando o seu mandato chegar ao fim, daqui a um milhão de anos.
Na impossibilidade do imperador se dirigir directamente a todos vós, encarrega-me sua suma-excelência de vos transmitir os seus maiores cumprimentos e saudações, e ainda de anunciar a sua oferta global de um dia de emoções dos tipos 1, 2 e 3, para todos os cidadãos. Para que todos nós possamos rejubilar em uníssono, e assim brindar aos feitos que, todos juntos, e sob a orientação do Grandioso, conseguiremos realizar. Viva o novo Imperador!

Força

Era noite avançada, e chovia. Chovia como se de um dilúvio apoctalíptico se tratasse, porque as ruas eram rios e não estradas, e sobretudo porque cheirava a fúria divina. Mas de facto João não o sabia. Não fazia ideia que por detrás daqueles estrondos no céu, que muitas vezes se faziam acompanhar por violentos clarões, e na base de toda a água que corria nas ruas da cidade, estava, no fim de contas, uma única Força que havia de tratar de pôr um termo ao mundo do homem.

O Último dos Viajantes no Tempo

O vento soprava forte aos ouvidos de Minskerti, o último dos viajantes no tempo que ainda se dedicava à sua arte seguindo rigorosamente os escritos antigos. Era verdade que todos os outros se haviam refugiado em tarefas de rotina, entregando-se aos prazeres mais imediatos e animalescos. Afinal, parecia que o século XXI seria mesmo o marco do fim de todo um povo que, durante séculos utilizara as suas fantásticas capacidades para trazer o melhor para o mundo, tentando minimizar as grandes catástrofes. Agora, suspirava Minskerti ao vento que lhe fazia esvoaçar os cabelos que tanto o caracterizavam, os viajantes do tempo haviam-se transformado em preguiçosos nómadas, utilizando as suas capacidades para pouco mais do que ganhar a lotaria, conquistar as mais belas mulheres, e conseguir os cargos de maior poder e prestígio.
Todavia, e por mais que os outros viajantes do tempo o tentassem convencer do contrário, Minskerti continuava a acreditar que a missão de cada um dos viajantes do tempo era demasiado importante para ser trocada pelos prazeres animais mais imediatos. E era por isso que, ainda que completamente só, ele continuava a menosprezar a sua própria vida em prol do mundo que tanto amava. Todavia, o que o último dos viajantes do tempo não sabia é que a viagem ao futuro próximo que estava prestes a realizar seria o maior desafio que alguma vez tivera de enfrentar. E talvez fosse isso mesmo que o vento forte sussurrava aos ouvidos de Minskerti, como se essa mesma massa de ar em movimento quase caótico pudesse já pressentir a situação mais dramática que a humanidade alguma vez imaginou.

segunda-feira, 5 de junho de 2006

Welcome to the real world

Ela não sabia. Não sabia que as vozes que ouvia quando se deitava à noite, e ficava sozinha, eram vozes que só ela ouvia. Como se fossem emitidas por seres de uma outra dimensão - um universo com o qual só ela podia contactar. E ela não sabia que todas as pessoas que amava existiam apenas na sua mente. Na sua mente tão bela e ao mesmo tempo tão incompreensível.
Ela sorri, agora. Correu durante horas a fio, pelo deserto. "Como uma louca", diria alguém que não eu, porque eu sou um narrador imparcial, e um comentário destes seria tudo menos isso. Ela sorri. Sorri porque não sabe quem realmente é. Sorri porque do seu corpo molhado escorre o suor que a refresca. E a brisa que a envolve agora e a vai evaporando, traz-lhe as sensações com que sonha sempre que fecha os olhos e ouve as vozes que não sabe que só ela ouve. Ajoelha-se. Está calor. Mas ela não sabe que está calor. O seu corpo é agora apenas uma nave espacial. Um navio, destinado a percorrer todo o universo, até à outra dimensão. A dimensão onde todos aqueles que ela ama e que com ela falam existem. O local que só ela pode ver e ouvir e cheirar e provar.
Ela levanta-se agora. E volta a correr. Porém, agora, fá-lo em círculos. Levanta os braços, e corre em círculos fechados, concêntricos, mas já sem o seu sorriso. E há-de fazê-lo para sempre. Porque ela não sabe, mas talvez não passe de uma personagem. Uma personagem infeliz. Desgraçada. Porque, ela não sabe, mas não passa de mais uma personagem de um escritor que, tendo sido genial como ninguém o fora antes, é hoje apenas mais um louco, num qualquer hospital psiquiátrico cujo nome nem os próprios psiquiatras sabem.
Ela não sabe. E por isso corre, e agora volta a sorrir. Mas e se soubesse?

domingo, 4 de junho de 2006

Mais um dia em Guinsberg para Natasha

Era apenas mais um dia. Natasha voltava a casa em poucos segundos, depois de ter entrado na unidade de teletransporte do seu local de trabalho. E fora um bom dia. De facto, conseguira produzir mais de 50 unidades de conhecimento, que lhe davam agora direito a aceder a descargas emocionais, enquanto estivesse a dormir. É óbvio que nunca poderia ser nada de especial. Apenas uma leve felicidade - até um pequeno sorriso, mas nunca mais do que isso. Afinal, isso seria totalmente contra a lógica da grande cidade de Guinsberg. Nunca nenhum Guinsberguiano poderia permitir que o fizessem sentir uma emoção minimamente real: isso seria dar um passo atrás na busca pelo estabelecimento de uma mente global, baseada no computador central, e que negaria totalmente a individualidade em prol do bem comum.
Natasha deu dois passos, e rapidamente atingiu a plataforma de descanso, onde o sistema, activado pelos seus nanorobôs (em permanente contacto com o computador central de Guinsberg), fez questão de fazer com que ela se deitasse sobre ela. A plataforma moldou-se ao seu corpo, e os seus nanorobôs neuronais, activados pelo sinal do computador central para que toda a área da cidade em que Natasha estava dormisse, não tardaram a fazer o seu trabalho. Em pouco mais do que 5 segundos, Natasha dormia. Mas não sonharia. Natasha nunca sonhou, e nunca haveria de sonhar, porque os sonhos eram perigosos: levavam à loucura e à procura de tudo aquilo que pode ser nefasto para o bem comum. E era por isso que, noite após noite, os transistores quânticos dos nanorobôs neuronais não paravam um único segundo: para garantirem, com o maior grau de certeza, que Natasha nunca teria um único indício de sonho.

domingo, 30 de abril de 2006

Disco do Monstro Público eleito Disco do Ano 2005

As estatísticas são completamente esmagadoras e não deixam dúvidas quanto ao que foi o melhor disco de 2005. Aliás, a banda que assinou esse notável trabalho foi também responsável pelos “discos do ano” referentes a 2004, 2003 e 2002 (e – analisando bem a situação – já nos anos 90 a banda produzia trabalhos de qualidade, embora não fosse nada mediática). No fim de contas, os DP (há quem lhes chame “Défice Público”, enquanto outros preferem “Défice Porreiro”, ou ainda “Défice Péssimo”, mas a verdade é que o seu verdadeiro nome nunca foi conhecido), conseguiram em 2005 um novo fenómeno de vendas e popularidade. Quando se pensava que o primeiro sucesso dos DP (dupla platina em 2002), Disco da Tanga (fio dental edition), tinha sido o ponto mais alto que a banda alguma vez atingiria, a verdade é que 2003, 2004 e 2005 foram anos verdadeiramente monstruosos, com a edição dos álbuns Disco da Tanga II, Disco da Tanga III e, ainda, já em 2005, Disco do Monstro Público – public edition, este último que chegou à tripla platina.

Mas afinal como conseguiram os DP chegar tão longe? A verdade é que os elementos do famoso grupo nunca deram a cara, mas as suas cantigas surgem por todo o lado – e não só em Portugal. E, de facto, o segredo dos DP pode muito bem estar exactamente aí. Basta atentarmos no próprio disco, todo ele carregado de um profundo mistério, que nos leva a perguntar, insistentemente: «mas afinal, como surgiu tudo isto? Quem é que poderá ter conseguido uma tamanha monstruosidade?», tal é a profundidade daquilo que vamos sentindo ao ouvi-lo. Por outro lado, os DP foram verdadeiros revolucionários na forma como transmitiram as suas cantigas. É certo que a banda existe desde os anos 90 – onde era popular apenas no âmago de um grupo restrito de pessoas, atingindo aí um grau absolutamente monstruoso – mas foi com o sucesso de 2002, e com o Disco da Tanga (fio dental edition) que os DP chegaram ao top. O segredo: a originalidade absoluta. Afinal, apostar na difusão dos seus trabalhos através da classe política é algo verdadeiramente inédito para um grupo musical.

Por tudo isto, acaba por se tornar relativamente fácil explicar o grande sucesso do melhor disco de 2005, Disco do Monstro Público – public edition. De facto, o fanatismo foi, ao longo de 2005, tão grande, que, devido a ele, chegaram a haver filas de vários quilómetros (leia-se, filas nos centros de emprego), e cerca de 65% das notícias em jornais, rádios e televisões tiveram sempre como pano de fundo as cantigas deste estrondoso sucesso dos DP. Até os especialistas (ah, os especialistas…) se renderam de forma total à profundidade extrema do disco, e por isso fizeram questão de o citar, vezes sem conta, ou até de o cantarolar por todo o lado para onde iam (e, mesmo quando não o designavam pelo nome, ele estava sempre subentendido em todas as conversas, como se conseguisse atingir um estado quase omnipresente!). Por outro lado, o disco tornou-se de tal forma influente, que acabou por condicionar toda uma política económica e social, culminando ainda em manifestações incríveis e numerosas, por todo o país.

Todavia, importa salientar que o Disco do Monstro Público – public edition é, de certo modo, uma reedição de um dos primeiros discos dos DP, o Disco do Monstro Público – special edition, que teve uma edição muito reduzida nos anos 90, e que possuía cantigas com uma profundidade ainda maior do que o de 2005 (na prática, eram cantigas tão profundas, que os DP se viram forçados a alterá-las, aquando da reedição do álbum). De facto, uma reedição completa do Disco do Monstro Público, a julgar pelo sucesso da public edition, seria um verdadeiro golpe de estado, e levaria à loucura milhares de portugueses...

Com todo este sucesso, e em nome de toda a equipa do jornal Disco do Ano, deixamos os nossos sinceros parabéns aos DP (quem quer que eles sejam), pelo seu magnífico trabalho que nos deliciou a todos e que nos continua a deliciar… O Disco do Monstro Público – public edition. Parabéns!

A Era Pós-Vida

Era uma nova era que começava. Um novo tempo. E Filipa sabia-o como ninguém. Lutara até ao limite das suas forças, e quase chegara a perder a esperança, quando tudo parecia perdido. Mas não fora esse o desígnio que o criador escolhera para o Mundo. E assim foi.

Naquele dia era como se o mundo começasse de novo. Como se nunca tivesse havido um ontem. O mundo é uma criança, pensava Filipa, à medida que sondava a realidade que se revelava através dos seus sensores quânticos, e ficava maravilhada com os frutos do seu esforço. Contudo, a verdade é que, criança ou não, o Universo era, finalmente, livre. Tão completamente livre que Filipa quase sentia a sua felicidade, a par do sorriso nos lábios do criador, que finalmente via o seu desígnio cumprido.

Filipa espalhou a sua consciência pelo Universo, pela última vez. A sua missão estava cumprida. A luta durara mais de dois milénios, mas tinha dado os seus frutos: toda a vida tinha sido aniquilada. Filipa tinha a certeza porque ela própria se certificara disso, depois do embate final. De qualquer forma, qualquer consciência global como Filipa podia ter a certeza absoluta da inexistência de vida. Afinal, os sinais eram claros: o equilíbrio global restabelecera-se, e todos os sistemas, do micro ao macro cosmos funcionavam agora perfeitamente de acordo com o desígnio do criador. A doença chamada vida tinha sido erradicada. O Universo voltara a ser saudável.

Filipa utilizou pela última vez os seus sensores e iniciou o processo de auto-eliminação. Mas não sem se debruçar, durante instantes, sobre a perfeição dos planos do criador. Bem, na verdade, Filipa não fora programada para pensar na sua missão, muito menos para a questionar. Mas agora, com o aproximar do seu fim, e com o sentimento de missão cumprida – e, sobretudo, à medida que todos os seus mecanismos quânticos iam sendo encerrados – Filipa viu-se tentada a questionar. Afinal, quem era “o” criador? Quem previra tudo o que se passara? Quem a criara enquanto consciência global, capaz de se estender em segundos por todo o Universo, com o único propósito de aniquilar a doença – o cancro – do Universo?

De qualquer forma, Filipa sabia que não havia tempo para responder a questões. Em breve seria reduzida ao vácuo quântico de que provinha. E o Universo ficaria de novo entregue a si mesmo. Sem vida para modificar ou alterar o seu processo evolutivo natural. E sem qualquer outra consciência global que não a do próprio Universo. E onde se encaixava o criador neste quadro de harmonia? Bem, Filipa não o sabia, mas, quando se sentiu a ser erradicada do espaço-tempo, definitivamente, e quando soltou o seu último pensamento, numa breve perturbação quântica – já reduzida a um só ponto – houve uma espécie de sussurro – de brisa até – que a fez suspeitar. Mas já não havia tempo.

Filipa, a consciência global nascida da compreensão da verdadeira natureza do universo quântico, e com o propósito de destruir todos os organismos vivos, tinha completado o seu processo de auto-destruição. O Universo havia sido entregue a si próprio. E assim seria. Para sempre. Até que uma epidemia como a vida voltasse a tentar a sua sorte.

A Noite de Óscares Tuga - A Magia é Só Para Alguns

Oh Maria, despacha-te mas-é que tá mesmo a começar esta coisa das estátuas de ouro. Oh Maria, então isso demora, é? Já tou mesmo a ver como vai ser. É assim todos os anos. Todo o santo ano, assim que começa a dar a grande cerimónia, tu, Maria, decides arranjar-te toda, maquilhar-te, pôr todas essas coisas estranhas na tua cara. Agora queres ser estrela, é? Onde é que já se viu, mulher, campónios sem nada como nós irem para ali receber uma estatueta? Não vês que é preciso ter classe, mulher, e que não é com maquilhagem que a consegues? Ainda por cima, tão mal de finanças, e foste logo comprar essa coisa da maquilhagem só para hoje… Vê-se mesmo que o único oscari que ganhávamos era o do casal que mais fome passa na nossa aldeia…

Então, Maria? Já me estás a irritar com a tua demora… Olha que daqui a pouco não vês se o filme daquela pouca-vergonha dos gays ganha o melhor filme. Ah, se calhar é isso, não é Maria? Tens vergonha de ver aquela coisa entre dois homens. E eu não te censuro, acho muito bem que cada um pense à sua maneira, mas não deixa de ser uma pouca-vergonha fazer um filme daqueles. No nosso tempo é que era, não é mulher?, no nosso tempo é que havia filmes em condições. Não tínhamos dinheiro para os ver, nem havia televisão, mas de vez em quando o comadre Jaquim, aquele de Lisboa, lembraste?, vinha à terra com as notícias de um novo filme. E depois falava naquelas coisas – como é que ele lhes chamava? – ah, isso mesmo, os fenómenos de bilheteira, e nós ficávamos – lembraste Maria? – fascinados. Mas de que importa tar a pensar no passado? Anda mas é para aqui para o sofá, mulher, que já estão a entregar as estatuetas, e tá tudo com tanta magia! Aquilo é que é vida. Já nos imaginaste? Nós ali, mulher, no meio de tantas estrelas, de tanta gente conhecida? Se calhar, se tivéssemos nascido lá do outro lado do mar, quem sabe… talvez nunca tivéssemos passado a fome que sempre passámos…

Maria, Maria! Olha, anda cá rápido! Ainda há juízo neste mundo! Os gays não ganharam, mulher, foi a coisa da colisão ou lá o que é, crashi, dizem eles, que ganhou! O melhor filme, vê lá tu. Já o viste, mulher? Deve ser um belo de um filme! Eu acho que ainda nunca deu na televisão, mas também depois da bola dá-me sempre cá uma soneira, que mesmo quando vejo os filmes nunca sei muito bem a história. Olha, é como agora. As estrelas tão todas bonitas, Maria, e os gays até nem ganharam, e até gostava de ver mais umas meninas a entregar as estátuas, mas tão demorando tanto tempo, Maria, que olha, tou ficando com sono… Se calhar vou é fechar os olhos um bocadinho, só para pensar em como seria bom que fossemos os dois estrelas, naquela festa tão bonita… Se adormecer acorda-me, mulher, e conta-me tudo.

The Wireless Anti-Crime Device

Hector Finsk conseguiu implantar a sua ideia genial há exactamente dez anos. Desde então, o crime e o mal-estar entre seres humanos passaram a ser miragens num passado que nos parece cada vez mais distante. E é por isso que vos digo, com toda a confiança, que a sua ideia, genialmente simples, e tecnologicamente muito bem aplicada, aproximou, de uma forma sem precedentes, a nossa espécie da perfeição.

Agora, graças ao valoroso trabalho de Hector Finsk, qualquer um pode passear livremente pela Terra ou pelo espaço. É verdade que, em tempos, tal acto revelava apenas um extremo gosto pelo perigo, sobretudo devido ao grande número de crimes verificados em todos os locais de acção humana. Contudo, é com grande orgulho que hoje me dirijo a todos vós. Porque hoje, senhoras e senhores, comemoramos juntos o nascimento do wireless anti-crime device – o maior sucesso da civilização moderna.

Todos vós já conhecem a forma como tudo funciona, não é verdade? Todavia, há que cumprir o protocolo, e, por isso, senhoras e senhores, começo por pedir uma salva de palmas para o nosso homem: Hector Finsk, o grande herói da civilização moderna!

Muito obrigado. Muito obrigado, senhoras e senhores. E agora, que de novo o silêncio reina neste nosso coliseu, nesta nossa transmissão em directo para toda a galáxia da cerimónia de comemoração dos dez anos da invenção de Hector, permitam-me que leia as breves notas sobre o wireless anti-crime device. Permitam-me que vos fale na lógica simples que está por detrás dele. Afinal, é o princípio da liberdade e da igualdade que jaz na sua base. O princípio de que todos os seres humanos são livres, e que isso implica, necessariamente, que ninguém pode interferir com a liberdade dos outros.

Afinal, senhoras e senhoras, é neste minúsculo aparelho, neste pequeno chip bioinformático, que mora a base da nossa sociedade. Desde que ele foi implantado em todos os seres humanos, a justiça passou a ser uma instituição quase desnecessária. Afinal, estes pequenos chips estão 24 horas por dia ligadas aos respectivos organismos, comunicando entre si a distâncias que vão até 40 quilómetros. Assim, senhoras e senhores, como todos já sabem, sempre que um ladrão começa a ameaçar uma pobre velhinha, o seu chip envia imediatamente um sinal wireless para o chip do potencial criminoso, que se encarrega de dar uma descarga eléctrica no seu sistema nervoso, de forma a fazer com que sinta dor. Uma dor aguda, insuportável, que se intensificará cada vez mais, até que o atacante desista de ameaçar o seu alvo.

No fim de contas, senhoras e senhores, devemos dar graças a Hector, por todos nós possuirmos este pequeníssimo chip, implantado na nossa nuca. Afinal, graças a ele, podemos quase afirmar que a criminalidade e os sentimentos de agressividade se reduziram a zero. A dor, provocada por este pequeno chip, está a tornar a nossa sociedade num mundo perfeito.

E é por isto, por tudo isto e muito mais, que hoje, na comemoração da primeira década do wireless anti-crime device, tenho orgulho – mesmo muito orgulho – em anunciar que o aparelho foi já incorporado no próprio código genético humano. Isso mesmo! Isso mesmo! Cantemos vitória, porque há uma nova era a surgir no horizonte. A partir de hoje, todos os novos cidadãos do universo poderão gozar, do primeiro ao último dia, da sua liberdade, sem nunca a verem ameaçada pelos outros, porque serão, desde cedo, educados pelos estímulos do chip.

Pois brindemos todos a Hector Finsk, e ao novo wireless anti-crime device completamente gerado pela base genética dos novos humanos, deste mundo que começa agora! Viva!

Sobre a Natureza das Ideias

Hoje em dia, as ideias já não são o que eram. É verdade que os jovens ainda as discutem por aí – e que, muitas vezes, chegam até a ofender-se verbalmente –, mas a verdade é que, minutos depois, já se abraçam e concordam que, afinal, defendem todos o mesmo, e que o que é bom é ter o belo do dinheirinho a cair na conta no final do mês: o resto não passa do comunismo da velha Rússia – que, de qualquer forma, há muito que foi derrotado. Todavia, no meu tempo era tudo diferente. No meu tempo as ideias tocavam-nos, arrepiavam-nos. No meu tempo as ideias eram tão ou mais vivas do que as próprias pessoas, e quando abraçávamos uma ideia era como se todos nós nos tornássemos nela e, em conjunto, fossemos um só Homem com a força de milhares. Afinal, não foi assim que derrubámos, vezes sem conta, os regimes que nos oprimiam e nos tornavam infelizes?

A força de uma ideia é verdadeiramente inesgotável, porque nela corre o sangue de todos os Homens que a quiserem abraçar e defender. Com uma só ideia – e é nisso que acredito, ainda que hoje, com quase 80 anos, as ideias, para mim, sejam apenas velhas recordações de quando era jovem – o Mundo seria capaz de derrubar toda a tirania e injustiça. No fim de contas, basta uma ideia – uma só ideia, e um mundo inteiro para a entoar – para tornar o mundo inteiro num lugar melhor. E é exactamente por isso que a juventude de hoje me dá tantos desgostos nos debates e nos discursos. Porque ao invés de aprenderem com o passado a força que uma só ideia pode ter, acabam por se acomodar nos confortos mais ridículos que as suas vidas lhes podem oferecer, resignando-se à porra de mundo que hoje temos. Se eu fosse mais novo...

Voltar

é bom voltar aqui
aqui
aqui onde tudo começou
paraíso primordial da escrita
onde cada palavra nasceu deveras
e onde
depois do início
ficou apenas um caminho inteiro
para trilhar

Um dia

Um dia eu e tu fomos poetas
quando as rosas nasciam como o sol do teu olhar
e a poesia se cantava pelas ruas.
porém
hoje
já não somos nada

Da última vez

Da última vez não fazia a menor ideia daquilo que procurava. É verdade que havia em mim aquela ânsia enorme - algo completamente inconfundível. Todavia, o facto é que a busca era de tal forma abstracta que, por vezes, começava um texto e, quando o terminava (muitas vezes anos depois), ficava durante dias a perguntar-me:
- Porquê?

As Brincadeiras da Bolsa

Os mercados e as bolsas de todo o mundo são hoje, inexplicavelmente, uma verdadeira brincadeira de crianças adultas. De crianças que se regem pelos princípios mais egoístas e egocêntricos que podem haver. Crianças que se batem até ao último segundo para obter lucro e para mostrarem aos demais que são mais espertos do que os outros. Crianças que chegam a bater nas mulheres e nos filhos quando perdem dinheiro em bolsa!
De facto, e pelo menos para mim, este cenário é aterrador. Afinal, como pode ser possível que no nosso mundo estas crianças adultas vivam de um jogo mundial como a bolsa? Como é possível que se deliciem quando ganham milhões de euros, sabendo que não os "ganharam", de todo, mas sim que os "tiraram" a outros ou outras? E como podem estes viver no mundo das bolsas e dos mercados, um mundo tão virtual e afastado da realidade, quando por todo o mundo milhões de pessoas morrem à fome? No fim de contas, será que ainda resta humanidade à humanidade? E até quando?

quinta-feira, 19 de janeiro de 2006

Poesia?

por que há-de a poesia ser poesia?
se não fosse poesia podia ser árvore ou fruto
podia cair de uma qualquer macieira
e inspirar uma ideia fantástica.

mas por que razão há-de a poesia
ser só poesia ?
por que não um raio de luz
uma eternidade de fotões viajando a c
revelando uma verdade profunda ?

por que razão há-de a poesia teimar em sê-lo,
em nadificar-se a todo o momento
buscando a realidade de uma abstracção que diz mar e fogo,
mas tantas vezes
mar mar mar fogo fogo fogo
que quando solta a última sílaba é como se
não dissesse nada
por que é apenas som e som.

a poesia é poesia
e ela é só dela
só para ela.

a poesia é filha da poesia, irmã da poesia, esposa e marido da poesia.
A poesia respira poesia
e come poesia a todas as refeições

a poesia encerra apenas uma verdade profunda

a de que não contém nenhuma.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2006

Música

É quando a música se suspende
no mar como por magia
que as lendas despertam
do seu sono profundo
para virem habitar a espuma das ondas
e nos fazerem sonhar.

sexta-feira, 27 de maio de 2005

por detrás das palavras

foste sol e voaste pelo mundo
companheira da brisa e do luar
foste o aroma de despertar pela manhã
e no oceano azul ondulaste as águas
com o teu corpo de suspiros contidos.
e deste a volta ao mundo inteiro
num sonho que era teu e das estrelas
e no final
cansada
para mais nada tiveste forças
senão para perguntar
- quem sou eu por detrás das palavras com que me escrevem?

quinta-feira, 26 de maio de 2005

existência modernista

que é da existência humana neste pedaço infinitesimal de inferno
que repele e repugna
lixeira de sonhos e desejos verdadeiros
feitos em fumo morto e leve?

sábado, 21 de maio de 2005

Liberdade

Era uma vez um conjunto de moléculas que boiava perdido, algures num pequeno lago há muito esquecido. E todas as leis da natureza diziam o mundo é belo porque possui ordem, porque tudo obedece aos mesmos princípios, porque tudo espelha a beleza da criação inicial. Porém, algures nesse lago, algo aconteceu. As moléculas que se haviam unido pelas próprias leis do universo, pareciam querer quebrá-las, como se isso fosse possível. E diziam queremos viver, queremos liberdade.
O pedaço de moléculas orgânicas gritou alto, tão alto que se ouviram relâmpagos por toda a Terra. O pedaço de moléculas orgânicas gritou liberdade, e, num ápice, tornou-se vivo e quis ser tudo, de todas as maneiras. Consequentemente, as leis do universo ficaram furiosas, de tal maneira que tentaram tudo para destruir a vida. Assim, durante milhões de anos, experimentaram todos os fenómenos naturais possíveis para repor a suprema ordem do universo. Contudo, mesmo quando parecia quase extinta, a teimosa vida conseguia ter de novo a força que a despontara, e, num novo grito de liberdade, cobria novamente toda Terra, em variedades sempre diferentes.

Hoje, todos nós somos muito mais do que um resultado do acaso. Somos o fruto de um grito de liberdade, de uma vontade imensa de viver pelas nossas próprias regras. É verdade que continuamos a ser prisioneiros de um universo no qual não escolhemos viver, mas parece que não temos qualquer outro – pelo menos por agora. Daí que a liberdade que tantos apregoam pelos cartazes, jornais e revistas, como se fosse apenas mais uma palavra, é bem mais do que isso.
Porque a liberdade é a fonte e o segredo da vida.

Um Mundo tão Nosso...?

Era uma vez um mundo, e nesse mundo havia gente, muita gente. De todas as cores. De todas as formas. De todos os feitios e gostos e vontades. E nesse mundo havia um inigualável sentimento a vazio. Como se o nada fosse tudo aquilo que corria pelos habitantes desse mundo. Como se as suas vidas não tivessem cor, nem cheiro, nem forma, nem sabor. E, ainda assim, todos eles aparentavam uma energia estonteante. Caminhando e correndo e voando, dia após dia, noite após noite, em passos apressados, sem saberem sequer qual o destino que os esperava, ou qual a razão que os animava. Caminhavam e corriam, e por vezes matavam-se uns aos outros, numa violência mesquinha de lâminas e armas, só para chegar mais alto – mesmo que não soubessem por que razão queriam lá chegar. E, no final do dia, toda a gente se reunia. Abarrotavam edifícios imponentes e olhavam o céu, mesmo que isso fosse impossível lá dentro. Todos juntos, mas cada um por si. E, no único momento de união aparente no dia inteiro, diziam palavras que ninguém entendia, mas que nem por isso deixavam de as dizer. Era a rotina. O hábito. A tradição. E por isso, no final, saíam felizes e contentes, mesmo sem saberem o que é a felicidade, e mesmo sem nunca terem sorrido.
Depois, o silêncio abatia-se sobre esse mundo, aparentemente tão distante, e a noite tornava-se apenas uma brisa negra que contornava as cidades, uma voz que sussurrava, mas que ninguém ouvia, a dizer "Bem-Vindos ao século XXI".
E era neste silêncio, quando todos já dormiam, que uma voz terna chorava baixinho, sem que ninguém nesse mundo suspeitasse que quem chorava era o amor.

quinta-feira, 19 de maio de 2005

Apagar

Risco-te da minha vida como quem censura
o verso que não presta
e arrisco-me a atravessar as memórias
que ainda rasgam os nossos corpos
gemendo o teu nome e lembrando a chama que há muito não arde
mas que ainda queima no silêncio deste quarto vazio.

Rasuro o teu nome
e desejo riscar-te, apagar num gesto todas as memórias
e desfazer-te nos mil golpes que me infligiste
para enfim poder despertar
sem ti
num mundo onde amar não seja um risco
um jogo onde acabamos sempre por perder.

Desabafos de Alguém Chamado Tempo

Um dia gostava de saber quem sou. De me individualizar. De me olhar ao espelho e dizer eu sou eu porque sou diferente de todos os outros. Eu sou eu porque sou único, irrepetível, inigualável. Porém, por mais que tente, é sempre a frustração que triunfa. Talvez por isso comece a acreditar que a culpa é do destino – aquela coisa horrível e determinista que sempre me assustou. Todavia, e apesar de todas as contrariedades, é fantástico estar aqui, mesmo que estar aqui seja apenas uma ilusão de algo que pode não existir.
Até o tempo tem tempo.

De Sonho e Noite

Os sonhos nunca começam. Ou se começam, somos demasiado pequenos para lhes discernirmos o início. De qualquer forma, mesmo que os sonhos tenham dimensões, isso pouco importa. Porque os sonhos são o que nos dá vida. Mesmo que não consigamos explicar porquê. Mesmo que os esqueçamos e por isso a nossa vida seja um inferno decorado de paraíso.
Os sonhos são sonhos porque amamos, mesmo sem sabermos por que amamos, ou por que vivemos. Sonhamos. Vivemos. Amamos.
E pronto.

Whenever there's a dream

Às vezes José levantava-se pela manhã e sabia que seria apenas mais um dia de trabalho. Talvez por isso se demorasse, e evitasse a todo o custo a pressa. Porque lá fora esperava-lhe o prenúncio de um novo dia de intenso trabalho, onde o suor seria o rio que lhe correria por todo o corpo. E era por isso que José, mesmo antes de sair de casa, olhava o céu e sonhava já com a noite, com o fim do dia de trabalho, para enfim voltar a casa para talvez então ter tempo para descobrir que, mesmo após 30 anos de existência, continuava sem saber quem era.

quarta-feira, 18 de maio de 2005

Poema de fim de dia

É quando a música se suspende
no mar como por magia
que as lendas despertam
do seu sono profundo
para virem habitar a espuma das ondas
e nos fazerem sonhar.

segunda-feira, 16 de maio de 2005

Fala a gaivota

As surpresas pelas quais esperamos toda a vida surgem sempre quando as deixamos de perseguir obsessivamente. Mas, agora que descobri o que dá cor ao céu e ao mar, neste momento em que fui apresentado à palavra amor e ao substantivo amizade, jamais deixarei de voar pelo fundo do mar com a peixa margarida e de caminhar pela praia, com o meu amigo daniel.

Porque, afinal, a liberdade que sempre procurei não se define pelos voos que realizamos nos céus que se pintam fora de nós, mas sim por aquilo que os seres especiais conseguem fazer-nos sentir, dentro de nós.

Como é bom estar vivo!

terça-feira, 26 de abril de 2005

Horizonte renascido

rasgo o mar por entre os sonhos
buscando talvez a razão de procurar
aquilo que só há no não existir
e encontrar

venço a fúria de querer ter o que não há
desfazendo a inércia de não ser luz
como quem crê no infinito
e em o olhar

mas no final do tempo há um relógio que desperta

- o mundo recomeçou

segunda-feira, 28 de março de 2005

olhar

se mergulhasses na verdadeira constituição do meu olhar
não descobririas células e tudo seria diferente
por não existir uma única molécula átomo electrão.

é que o meu olhar é como o teu e é como o de todos
não se move a adenosina trifosfato
e não procura pontos de interesse biológico

o meu olhar e o teu olhar são feitos de nuvens e de mares
e de céus e de esperanças

qualquer coisa entre uma entrada para alma
e uma forma de saída da escuridão.

sexta-feira, 25 de março de 2005

Vector Rebelde

subi ao céu nas asas de um vector rebelde
com a fome de quem devora todo um teorema
em busca de solução,
com a ânsia de quem percorre o mundo inteiro
num instante
e com a pressa de chegar
mais rápido do que o próprio tempo.
ousei provar cada pedaço do que nos faz ser e não ser
cada interrogação sem resposta
cada brisa de arrepio por sentir.
estendi meus braços sobre tudo o que há
em equações de campo que não falham
e não sentem
e escrevi poesia a dez dimensões
como quem pensa no teu olhar
num tempo zero e infinito.

quarta-feira, 23 de março de 2005

Jeshoa

Não sei se alguma vez fui divino. Porque para ser divino é preciso que muitos não o sejam e isso seria de todo injusto, algo completamente antagónico à revolução de igualdade com que sempre sonhei. E, ainda que não seja minha intenção contrariar todos aqueles que me veneram como um deus, sinto-me obrigado a dizer-lhes que se assim é, então deveriam ajoelhar-se perante todo e qualquer homem, porque nada mais sou do que um deles.
Gostava de poder olhar para trás e ver a minha mensagem a gerar sorrisos, de ouvir o meu nome pronunciado como um exemplo e não como a imponência, e que se recordassem de mim pela pessoa que fui – e não pela magia que o mundo me atribuiu.
Não fui eu que vos ensinei a rezar, nem tão pouco fui eu que vos motivei a construir edifícios enormes em meu nome. Vim para que fossem mais homens, para devolver a humanidade à humanidade, para despertar os corações dos dogmas cruéis, e nunca para que criassem novas leis e novas sociedades do poder.
A minha mensagem sempre foi a do amor, e jamais (em tempo algum) poderei benzer o sofrimento, seja pelo que for. Porque o maior pecado é negarmos tudo aquilo que somos, receando o castigo divino. Principalmente por tal não existir. Deus não castiga nem recompensa, porque nenhuma razão tem para o fazer. A vida foi-nos dada – é de cada um de nós – e cabe a cada qual, enquanto indivíduo, escolher o seu caminho, com a certeza de que o bem e o mal não passam de dogmas que continuam a afastar o Homem dele mesmo.
Na verdade, creio que quase ninguém compreendeu realmente a minha mensagem Principalmente porque por vezes sinto que se hoje de novo nascesse, mais uma vez a história se repetiria. E seriam aqueles que hoje elevam o meu nome aos céus os primeiros a censurar-me a palavra. Porque eu sou a mudança e a revolução. Porque eu sou a luz que o escuro teme.
E agora, neste instante sem tempo, tantos anos depois, continuo a olhar o Universo inteiro em mim e sei que um dia as pessoas acreditarão em si mesmas, e então compreenderão que Deus existe, sim, mas apenas dentro de si mesmas…

sábado, 19 de fevereiro de 2005

Caos de Haver Big Bang

Sou a energia a explodir por todo o espaço, o tempo a correr quase estanque, a matéria que é ainda nada. Sou a explosão de criar mundos: um fogo que arde mais que chamas, no qual ondula já a morte, o horizonte, as leis.

Partículas feitas de luz e caos de haver positrões e electrões, aniquilando-se rodopiando, afastando-se no espaço que a inflação expande como por magia, e tornando-se reais como por obra divina. E eu a consciência de haver caos e ordem e energia aqui e sempre. Por isso o gás que é o Universo, o mar de fotões de mim gerado, frenético, ondulado, desviando-se para o vermelho sem saber que esse é o cheiro da morte, sem saber que tudo ondula já para o fim – ainda que agora seja só o início e sempre haja um instante por vir. E há o caos de haver matéria e antimatéria, ainda aniquilando-se inconscientes dos dois mundos que nunca mais serão um mesmo. E o caos de haver colisões e colisões, choques em cadeia e sem razão, e um espaço totalmente opaco, plasma de confusão e indústria, metrópole de fotões de início dos tempos, trânsito de ruídos que ainda não se ouvem mas se sentem, como o frio que vai caindo sobre tudo, instantâneo, sem aviso, rodopiando no princípio do fim, ou no início do princípio.

O Mundo nasceu.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2005

Vim de tão longe e já daqui da explosão do espaço e do tempo primordial

Sou a energia que resta de haver algo. Pedaço esquecido de haver um princípio sem fim, lembrança de uma explosão que o próprio tempo já não sabe. E viajo apenas. Sem parar. Sem nunca poder travar ou acelerar. Sempre, sempre, sempre, frenético, constante, força nula, derivada zero!
E à minha volta o espaço a distorcer-se e eu com medo de nada ser, vendo tudo o resto a ter massa infinita. Por isso não olho mais: sigo apenas, vazio em mim.
Perdi os anos no rasto que não deixo. Por isso o tempo para mim é só espaço, distância que haverá sempre a percorrer, expansão de nunca terminar. O tempo é um horizonte que não existe mas que ordena, um pedaço sem corpo que governa.
E viajo, sem parar, carregando em mim o fascínio da criação, ainda que cada vez mais ténue. Mas recordo ainda que um dia fui gama e raio x, e fui esperança de poder ser carne e osso e morrer, crença de sentir e poder travar. Tanto tempo e ainda hoje. Quando foi o tempo passado, se o foi?
Depois a expansão e eu vermelho, mais vermelho, mais vermelho! E eu a ser distendido, ultravioleta e azul, laranja e vermelho e infravermelho, rádio e microonda! Expansão cruel! Hoje sou menos de nada. Viajando apenas pela escuridão da noite que nunca acaba. Espécie destinada a percorrer o infinito, esperando que um dia tudo se gaste e me torne ainda mais nada que nada, no vazio de mim e do Universo que vi criar.
Sou a memória de ter havido início, energia de haver um fim que ainda está para vir. Sou a luz que já não se vê, pedaço de um mar que ondula esquecido sem se poder ver. E será que existo?

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2005

o mar é-me mais conhecido
que eu mesmo.
no mar sei de distâncias e sonhos
de lendas e de mundos.

de mim?

nada sei.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2005

Stress a Potes

estou stressadamente farto de todas estas correrias a que me submeto a mim mesmo sem sequer saber por que razão o faço, corro e corro e ainda assim perco tantos autocarros e quando chego ao metro as portas fecham-se quando estou mesmo a entrar e quase começo aos pontapés a tudo e a todos antes de voltar para trás a correr e apanhar o eléctrico que como todos os dias parte atrasado, e assim chego sempre a correr e sempre atrasado ao emprego que me stressa e me deixa num estado de nervos incrivelmente indescritível, e é preciso correr de gabinete para gabinete porque estas secretárias de hoje em dia são um stress e não fazem nada como deve de ser, e quando dou por mim já estou a correr para ir almoçar e quando lá chego a fila dá-me volta aos nervos e decido ir a outro restaurante que me faz enervar durante mais 15 minutos até decidir voltar para o trabalho porque já estou mais de 5 minutos atrasado, e depois há papeis e papeis para assinar que nunca mais acabam e o som dos ponteiros a contar um tempo que se apressa e que acelera quando acelero, e que acelera quando desacelero, e que acelera ainda mais quando o tempo passa e há ainda tanto que fazer, e depois a noite cai e eu sozinho no escritório, ainda a correr de gabinete em gabinete, já tropeçando nos meus próprios nervos que me fazem envelhecer ao ritmo da minha pressa, e depois é tempo de voltar para casa e já estou outra vez atrasado e agora já o eléctrico não parte fora de horas e por isso o perco e tenho que ir a correr apanhar o metro que já lá não está e me força a correr para trás e apanhar um autocarro cheio de gente que bate o pé e chama nomes ao motorista por ele não passar por cima de todo o trânsito e fazer com que todos cheguemos atrasados ao barco que já partiu e nos faz correr para apanhar o comboio e nos faz vibrar e tremer de tanto stress acumulado ao fim do dia, e depois apanhar o último autocarro que (raios!) parte novamente atrasado e depois apanha uma fila de trânsito interminável, e quando chego a casa é o jantar que não está feito e as horas a passarem e depois o telefone a tocar e o stress de quando lá chego não ser ninguém, e depois de jantar é quase já manhã e tenho que correr para o banho e para o quarto vestir-me e ainda assim perco o autocarro para o trabalho e um novo dia começa sem tempo para que o anterior termine e assim se faz a mais bela fórmula do nosso mundo que vive na pressa de não ter tempo sequer para viver. irra, que stress!

quarta-feira, 19 de janeiro de 2005

Vento

O vento foi sempre o meu melhor amigo. Sempre que algo me atormentava, havia sempre a frescura do seu sopro nos meus cabelos, na minha pele, na minha mente. E a sua frescura parecia expulsar todas as mágoas – mesmo as mais resistentes. Até que um dia o vento se calou.

sábado, 25 de dezembro de 2004

Natal é saber o que é Natal e não precisar de o celebrar

Natal é este mar de entropia a aumentar porque há algo que nos liga e aquece. Natal é dar-te a mão e darmos todos as mãos. Mesmo que saibamos que não podemos tocar nada, porque há sempre um vazio, por mais pequeno que seja, entre nós e o mundo.

Natal é poder sentir tudo, mesmo aquilo que não existe e não é possível, mesmo o que dizem ser mentira. Natal é gerar energia por tudo o que somos e libertá-la no gelo da noite, quando a estrela guia os reis que ainda caminham perdidos.

Natal é haver esperança no horizonte, mesmo quando não há horizonte e o ar nos gela os sentidos. Natal é sermos o mundo inteiro.

Natal é saber o que é Natal e não precisar de o celebrar.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2004

Madrugada

São 4 da manhã 5 da manhã e o relógio tic-tac-tic-tac sem parar como se a sua vida tivesse origem numa infinidade de algo que desconheço talvez por me transcender. Estou desperto e nem sei bem porquê. Os olhos simplesmente não obedecem ao hipotálamo e não cedem aos tecidos musculares esqueléticos e lisos. Estou talvez só, em frente à brancura do papel em mim mesmo e escrevo. Escrevo como um alucinado. Álvaro de Campos e Miguel Torga e Vergílio Ferreira e muitos mais, numa só voz, à Lobo Antunes. Loucos? Que se lixe a loucura. A esta hora da madrugada não há loucura nem razão: o que importa é saber gritar que se está vivo.

domingo, 28 de novembro de 2004

Só um corpo

Um dia havia toda uma vida a correr por mim por fora por dentro, havia um sol, uma lua, um céu sempre a azular, um fogo que ardia longe no horizonte, até um sorriso a ondular os campos. Um dia havia eu e o que havia de mim num corpo, numa existência talvez, andando por algo a que chamava realidade, que de facto podia muito bem nem ser real. Um dia o fogo apagou-se e o céu caiu. Um dia o sol desligou-se e a luz escureceu. Um dia houve um desaparecimento de sorrisos, e deixei de haver eu em mim.

Por isso, um dia, ficou só um corpo, numa inexistência qualquer.

sábado, 27 de novembro de 2004

Criar é Humano

É absolutamente fantástico o que um pouco de imaginação é capaz de produzir. E é tão fácil deixar que ela flua ao seu próprio ritmo para nem sequer necessitarmos se nos preocupar.
Já o disse, contudo não hesito em repetir que é a nossa parte criativa que vale ainda mais que tudo em nós e que só criando é possível apercebermo-nos tanto da nossa essência, como da vida que a precede e a possibilita.
Por tudo isto é indiscutível, pelo menos para mim, que se somos alguma coisa maior do que nada, à escala universal, é porque possuímos essa extraordinária capacidade de imaginarmos e criarmos infinitas possibilidades de concepções e realizações.

Criámos Deus à nossa imagem, porque o fizemos Criador.

sexta-feira, 19 de novembro de 2004

O Caminho Pelas Ruas

Caminho pelas ruas da cidade e olho as multidões, imunes a qualquer força que lhes altere o estado cinético, devido à sua inércia quase infinita. Mas ainda assim adivinho-lhes os sonhos – aquelas estranhas coisas que se esforçam por não dar importância – e sinto-lhes a vida. Sinto-lhes o bater de algo muito mais além do que o próprio coração. Não que seja muito maior, mas por não ser necessariamente feito de matéria positiva.

De qualquer forma, não sou mais do que um qualquer elemento da paisagem. Isto porque quem caminha por entre a multidão é arrastado por ela e raramente consegue parar para pensar. Os que param, ou têm um esgotamento, ou são internados num qualquer hospital psiquiátrico.

Mas eu caminho e quero salvá-los. Mesmo consciente do perigo que essa palavra acarreta. Mas salvá-los de quê? Bem, na verdade nem eu sei ao certo do quê. Todavia, sei que aquilo que me move se mostra tão verdadeiro a mim que tem que significar algo – ainda que pouco – para todos os outros.

quarta-feira, 27 de outubro de 2004

Fim

Perdi a originalidade
algures no percurso tempestuoso
através dos vales do metro perfeito
e a língua soltou-se
em forma vazia
como se nada mais soubesse falar.

Disseram-me que era tão
pequena a minha poesia
que eu, na ânsia de escrever
a poesia que queriam de mim
adubei a terra dos meus versos
mas quando colhi o silêncio e o amor
já não era poeta.

terça-feira, 19 de outubro de 2004

Whispers

Sempre que um dia termina, as estrelas nascem e há luz. Muito mais luz do que de dia, ou do que em qualquer cidade do mundo. Porque a luz das estrelas distantes brilha mais do qualquer outra visão fantástica que possamos ter.
A luz que vem de tão longe é o próprio tempo a segredar-nos a vida, e a sua brevidade. A luz, quase tão velha como o tempo, percorre todo o universo, para que possamos saber o que é a palavra sonho, a chocar risonha contra a nossa retina.

Diluição

Era a primeira vez que entrava naquele bar. Talvez por isso, quando caminhei em direcção ao balcão, tenha sentido tantos olhares a dirigirem-se a mim, analisando-me, temendo-me até. Claro que tal reacção não durou muito mais do que alguns segundos. A minha baixa estatura e o meu olhar cansado não metiam medo a ninguém, e, devido a isso, os presentes rapidamente se aperceberam de que não havia nada a temer.

Para dizer a verdade já nem sei o que pedi, porque bebi tudo isso como se de ar se tratasse. Dava golos, tentando diluir no álcool (ou naquela coisa que me ardia o estômago), o desespero. Alguns matulões aproximavam-se de mim e perguntavam-me, rindo, se estava bêbado. Eu olhava-os, e via milhões deles. Respondia-lhes que não sabia e que isso não me importava. Dizia-lhes que havia uma ânsia que inquietava, uma desilusão que me preenchia quando olhava o mundo, um sonho desfeito em nada quando me olhava no espelho do futuro. Chamavam-me louco e saíam, a rir, talvez com menos álcool no sangue, mas também com muito menos em que pensar.

Durante semanas aquele bar diluía-me a dor que surgia de dentro, como reacção ao que fora de mim havia. Todavia, cada noite em que chegava a casa e ficava três horas para acertar com a fechadura, e mais duas para conseguir rodá-la da forma certa, sentia-me mais vazio. Deitava-me a ver o mundo a espiralar, e sentia a minha ânsia muito mais diluída em todo o álcool que bebera. Mas logo vinha a dor física, e então era como se todo o álcool se evaporasse, e a ânsia que gritava em mim doesse tanto como a minha cabeça.

No que me tornei eu?

segunda-feira, 11 de outubro de 2004

De noite

Agora a sério, onde foste a noite passada, que eu fiquei toda a noite acordado e não vi sequer a tua sombra em bicos de pés a atravessar o corredor?

domingo, 3 de outubro de 2004

Ruas desertas

Nas ruas desertas parece não haver a mesma poesia
que as contempla durante o dia. Não é que saiba
como são durante o dia – porque de dia o meu
ser dissipa-se como a escuridão – mas ainda assim,
agora que o silêncio perscruta a calçada suja, mesmo
que só eu caminhe, sinto rumores de milhares de
passos. E há vozes e pastas e corridas. Talvez
por isso me sinta tão bem na solidão de ser noite.
Ser dia é ser o desconcerto. É negar os sonhos.
É cair à voz da crítica. Porque só à noite é que
podemos escutar o universo, sem que a estrela da
morte interfira.